O poder e o direito de errar por último

O Estado da Arte dá continuidade à série “Passado a Limpo”, em que as instituições políticas brasileiras são analisadas por intelectuais e acadêmicos das mais variadas áreas. Hoje, o advogado Gabriel Heller escreve sobre a decisão do STF sobre prisão em segunda instância.

Estado da Arte dá continuidade à série “Passado a Limpo”, em que as instituições políticas brasileiras são analisadas por intelectuais e acadêmicos das mais variadas áreas. Hoje, o advogado Gabriel Heller escreve sobre a decisão do STF sobre prisão em segunda instância.

por Gabriel Heller

Como se explica a um cidadão brasileiro sem formação jurídica que, mesmo após ser considerado culpado de um crime por um juiz de primeiro grau e, em seguida, por um grupo de desembargadores ou juízes de segunda instância, um indivíduo não sofre as consequências previstas na lei penal (dentre elas, a prisão)? Como se explica à vítima de um crime que um caso, para ser julgado pela primeira vez, leve cinco anos e que, depois de toda essa espera, ainda caiba uma série recursos os quais, para serem julgados, ainda levarão outros tantos? Como se explica à sociedade que um político corrupto foi considerado culpado duas ou mais vezes e, ainda assim, não está preso?

O Supremo Tribunal Federal, chamado indiretamente a explicar esse sistema há poucas semanas, por meio das Ações Diretas de Constitucionalidade (ADC) nos 43 e 44 parece ter respondido da seguinte forma: “não há explicação para isso: procedamos à mudança”. Agora, cabe a todos entender o significado da decisão que o STF tomou pelo apertado placar de 6 a 5.

Foto: Nelson Jr./STF

Nas ADCs citadas, o Partido Ecológico Nacional e a OAB pediam que o STF, liminarmente, declarasse constitucional o disposto no artigo 283 do Código de Processo Penal, segundo o qual “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Em suma, estava em julgamento a validade da regra que estabelecia como necessário o trânsito em julgado da sentença condenatória para que o infrator fosse preso.

Essa redação do artigo 283 data de 2011 e veio convergir com o entendimento de então do STF, segundo o qual, por força do inciso LVII do artigo 5o da Constituição Federal, seria proibido proceder-se à execução antecipada da pena. Isso porque a Constituição, em regra que materializa o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, estabelece que ninguém será considerado culpado – e, portanto, preso – até o trânsito em julgado da sentença condenatória. As conhecidas exceções são os casos de flagrante delito e prisão temporária e preventiva.

Contudo, de 2011 para cá, a composição do STF mudou – e o entendimento jurídico de alguns ministros também. Embora o julgamento fosse formalmente referente ao artigo 283 do Código de Processo Penal, a pergunta que dele exsurgia era simplesmente a seguinte: “o que o STF entende por ‘considerado culpado’, ‘trânsito em julgado’ e ‘sentença penal condenatória’?” Em outras palavras, que sentido a Suprema Corte atribui ao inciso LVII do artigo 5o?

Comecemos pelo incontroverso: sentença penal condenatória é aquela que reconhece a responsabilidade do acusado pelo crime previsto na lei penal e lhe estipula uma pena. “Considerado culpado” significa nada mais, nada menos que ser tratado como responsável por um crime, isto é, ser reconhecido como cometedor de um crime e ter contra si imputada uma sanção, uma pena que decorre dessa condição de responsável ou culpado. Nessas questões, a bem dizer, a língua portuguesa deixa (ou deveria deixar) restrita margem de discussão ao universo jurídico, respeitadas as opiniões em contrário.

O aspecto estritamente jurídico do dispositivo constitucional mencionado trata do conceito de “trânsito em julgado”, incomum em qualquer outra seara da sociedade. Em qualquer ramo do Direito, trânsito em julgado sempre significou o momento em que uma sentença (ou acórdão, se decisão proferida em órgãos colegiados dos tribunais) passa a ser imutável e indiscutível, isto é, o momento em que não cabem recursos dentro de determinado processo contra a decisão prolatada.

É esse conceito de trânsito em julgado que impede, segundo a corrente derrotada no STF, que o réu seja preso em decorrência de condenação em segunda instância. Como, em tese, ainda cabem recursos que podem alterar a sentença proferida, essa decisão não é imutável e, portanto, não transitou em julgado.

Em contraponto a tal ideia, a nova corrente majoritária entende que, havendo condenação em segunda instância, é viável a execução provisória da pena, tanto por questões relativas à efetividade das decisões judicias quanto porque o Recurso Especial, julgado pelo STJ, e o Recurso Extraordinário, julgado pelo STF, não são dotados do chamado efeito suspensivo, que impede que a decisão recorrida produza seus efeitos. Ou seja, havendo condenação na segunda instância, eventual recurso contra ela, embora evitasse seu trânsito em julgado, não impediria que ela fosse executada – ou, no caso mais discutido, que o réu fosse preso.

Os argumentos atinentes à efetividade da prestação jurisdicional são fortes para qualquer pessoa consciente que se revolte ao ver indivíduos já condenados soltos, aproveitando a vida ou cometendo novos delitos. Os casos absurdos citados pelo Ministro Luís Roberto Barroso no seu voto mostram como o Judiciário não vem prestando um serviço efetivo. Da mesma forma, as condenações que o Brasil sofreu junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, citadas pelo Ministro Edson Fachin, deixam claro como nossa jurisdição penal funciona mal e como devemos fazer algo a esse respeito.

Contudo, nada disso apaga a letra clara e, com as devidas vênias, unívoca do inciso LVII do artigo 5o da Constituição. Nem os péssimos resultados da justiça penal brasileira – que também ferem a Constituição, diga-se –, nem as reprimendas internacionais tem força para afastar uma regra constitucional que é, além de tudo, cláusula pétrea, não podendo ser alterada nem por emenda à Constituição.

Quanto à ausência de efeito suspensivo dos recursos aos tribunais superiores, trata-se simplesmente de uma questão de hierarquia normativa: são “meras” leis que atribuem (ou não) o efeito suspensivo aos recursos, ao passo que é a Constituição, a lei das leis, que determina que não se tratará alguém como condenado até que a decisão seja imutável. A se aceitar o raciocínio de que a inexistência de efeito suspensivo permite a execução provisória da pena, teremos um inovador caso de lei infraconstitucional que prevalece sobre a Constituição.

Não custa lembrar que o STF já vinha reconhecendo o trânsito em julgado nos casos em que os recursos da defesa fossem claramente protelatórios – o que representava avanço da prestação jurisdicional e não violentava a Constituição.

Poucas coisas evidenciam mais o “drible” que a maioria dos Ministros deu à Constituição do que o projeto de emenda constitucional proposto pelo então Presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, em 2011, a chamada “PEC dos recursos”. Ciente de que o dispositivo constitucional não era passível de supressão, mas que algo precisava ser feito, o Ministro propôs que se adicionasse à Constituição norma estabelecendo que a admissibilidade dos recursos especial e extraordinário não impediria o trânsito em julgado das decisões recorridas. A ideia era redefinir, por uma norma de mesma hierarquia, o sentido de “trânsito em julgado”. E o fato de o Ministro ter elaborado uma PEC para tanto indica a consciência de que uma lei infraconstitucional não poderia se sobrepor ao constituinte originário.

A OAB se manifestou contrária à proposta, e por esse e outros motivos, ela não vingou. Como disse o Ministro Marco Aurélio na sessão que julgou as ADCs, agora, o STF, órgão judiciário e não legislativo, por 6 a 5, aprovou a PEC.

De todo modo, essa “puxada de tapete” da Constituição não traz grandes soluções.

Ela não resolve a demora na primeira e na segunda instância; ela não altera os procedimentos procrastinatórios anteriores à chegada aos tribunais superiores; ela não desestimula o criminoso por meio de penas mais duras pelos danos causados; ela não aumenta o irrisório tempo necessário para a progressão de regime; ela não aumenta o tempo máximo de encarceramento; ela não inibe a utilização de menores de idade em práticas criminosas. E por um motivo simples: cabe ao Poder Legislativo operacionalizar a maior parte dessas mudanças, ainda que sob o impulso do Judiciário, como tentou o Ministro Peluso.

Chegamos a essa situação de caos da segurança pública, caos do sistema penitenciário e “caos constitucional” por vários motivos. Legislação insuficientemente repressiva, Judiciário moroso, Administração incompetente e sem vontade, além do abuso do direito de recorrer e de nossa cultural leniência com malfeitos. O mal funcionamento do sistema de justiça penal e essa decisão extrema do STF para combatê-lo são produtos coletivos, com participação inclusive daqueles que pretenderam, por todas as formas e brechas que a legislação conferia, tirar das “garras” da justiça seus clientes.

É falacioso dizer que só os ricos têm acesso aos tribunais superiores e que a PEC os iguala aos “sem recursos” (no sentido pecuniário e judicial). Primeiro porque as Defensorias Públicas já atuam nos tribunais superiores. Segundo porque o andar de cima continuará contratando os mais influentes e persuasivos profissionais, que não raro lograrão a concessão de habeas corpus ou a atribuição de efeito suspensivo a seus recursos.

Ao contrário do que pode parecer, isso não significa que deveríamos passivamente aceitar o horrendo estado de coisas que levou o STF a tomar a decisão que tomou. Talvez a decisão do Supremo sirva para que se preste mais atenção à situação degradante e não reabilitante das penitenciárias; para que os criminosos façam uma análise mais detida do risco-benefício de delinquir; para que comecemos a mudar a cultura dos recursos protelatórios; para que a população cobre dos parlamentares endurecimento nas leis penais e processuais penais; para que o Legislativo extinga certas espécies e hipóteses recursais e pare de se omitir nesses temas. E quem sabe tudo isso faça com que o STF mude novamente seu entendimento e reconheça o direito que a Constituição atribui a cada um de nós, criminosos ou não.

Em resumo, apesar da discordância, espera-se que o novo entendimento do STF se preste a inaugurar um novo momento em que serão respeitados o direito das vítimas de ver seu algoz sofrer punição tempestiva e proporcional ao dano, o direito da sociedade de estar e sentir-se segura e protegida pelo Estado e, se não for pedir demais, um momento em que a Constituição será seguida e não re-escrita pelo STF.

Não costumamos ver problema em o STF re-escrever a Constituição quando os efeitos desse “novo texto” nos agradam. O problema é que não sabemos que direito o “novo texto” atingirá e se estaremos de acordo com o próximo exemplo da falta de autocontenção que vem caracterizando o Supremo na última década.

Um importante juiz e doutrinador alemão, inclusive traduzido pelo Ministro Gilmar Mendes, escreveu que interesses momentâneos, ainda quando realizados, não compensam o incalculável ganho resultante do respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que sua observância se revela incômoda. E é clichê dizer que os Ministros do STF são os onze que têm o direito de errar por último. De minha parte, entendo que eles têm esse poder, mas tenho dúvidas se eles têm esse direito.

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