por Adriano Moraes Migliavacca
Há, na poesia ocidental do século XX, um incômodo frequente, algo verbalizado por alguns poetas. Trata-se de uma tendência à incorporeidade, ao etéreo na relação do poeta com o objeto poético que aborda. John Crowe Ransom, em um prefácio ao seu clássico The World’s Body, reclama de uma poesia que se distancia cada vez mais dos fatos e do mundo propriamente ditos, de uma poesia que busca criar um mundo e não conhecer aquele que já existe. “Onde está o corpo e a substância sólida do mundo?”, pergunta o poeta. Allen Tate diagnosticou a mesma síndrome com o nome de “imaginação angélica”. T. S. Eliot foi talvez ainda mais preciso em seu ensaio sobre os poetas metafísicos do século XVII. Eliot comenta que, para John Donne, entreter um pensamento era uma experiência que modificava sua sensibilidade, algo tão concreto quanto sentir o odor de uma rosa. Esse tipo de sensibilidade se teria perdido no século XVII, um processo definido por Eliot como “dissociação de sensibilidade”, do qual, diz o poeta, nunca nos recuperamos.
A poesia do século XX foi, então, marcada por esse descolamento, essa dissociação que se aprofundou com a influência da poesia simbolista francesa do século XIX e seus herdeiros do início do século XX, entre eles, os surrealistas. Tal dissociação apresenta-se como um problema para a poesia, tal como vimos nas opiniões de Ransom, Tate e Eliot. É possível que essa sensibilidade original, na qual um pensamento é uma experiência concreta a ser fixada na página do poema, seja irrecuperável. No entanto, é possível que se encontre, na poesia provinda de outras realidades, exemplos que se aproximem dessa quase materialidade do pensamento. É inegável a influência da moderna poesia europeia na moderna poesia africana. No entanto, esta última se nutre também das tradições orais com que convivem seus poetas, e não há dúvida de que os influxos destas modificam a poesia composta por eles de maneiras bastante profundas. De que maneira, podemos perguntar, a sensibilidade presente nas tradições orais vem impactar a sensibilidade que é impressa nos poemas modernos escritos em línguas europeias? Vamos tomar como exemplo um poema do zulu, sul-africano, Mazisi Kunene, em tradução que eu mesmo preparei:
UMA DESPEDIDA
Eu que ao longo dos anos lhe cantei canções,
Parto
A haste rompeu-se
A jovem planta de ébano afunda no pântano.
Esses ventos ululam com sementes.
Hão de espalhá-las sobre o espaço aberto
Onde chuvas darão nascença a selvas.
Creio no grande dia
Que fará nossos caminhos se encontrarem:
Hei de acordar, pois, do deserto
Vendo você se aproximar com alguidares cheios d’água.
Sentaremos ao local do velho homem
Desatando os nós pela extensão da tarde,
Na fertilidade da figueira,
Na amplidão do salgueiro,
Nas savanas do antílope fugaz.
Minha tradução foi feita a partir do texto em inglês, que, por sua vez, é uma tradução do original zulu feita pelo próprio autor (Kunene trabalhava muito se traduzindo: frequentemente escrevia seus poemas em zulu e os traduzia para o inglês, publicando as duas versões). Segundo o crítico Ken Goodwin na seção dedicada a Kunene de seu livro Understanding African Poetry, o poeta zulu é talvez o poeta africano cujos referenciais são mais puramente africanos. O texto que temos, então, composto em zulu e traduzido pelo próprio poeta para o inglês, é, podemos dizer, enraizado o mais puramente possível na cultura zulu e, portanto, africana.
Eu creio que podemos encontrar nele exemplos dessa consciência de que falam os poetas norte-americanos citados no início deste artigo. O poema aborda a questão da passagem e da irrecuperabilidade do tempo. Há, portanto, a presença de noções de mortalidade, de tempo e de espaço, mas essas noções são apresentadas por imagens bastante concretas com uma simplicidade que agrega a essa concretude. A noção de tempo não é abstrata, ela se concretiza no ciclo da figueira, nos ventos que carregam as sementes da renovação das florestas, no mover-se do antílope pela savana. Da mesma forma, a noção de espaço se torna sólida e presente na amplidão do salgueiro, nas extensões da savana. O espaço surge dos próprios locais enquanto que o tempo surge dos fatos.
Temos algo parecido com a noção de mortalidade, que se mostra metaforicamente na planta de ébano que afunda no pântano, aliás outra conjugação de uma referência temporal com uma referência espacial. Há uma diferença entre o tempo da planta de ébano e o tempo das sementes levadas pelo vento. O primeiro é um tempo irrevogável: uma vez submersa, aquela planta de ébano individual se perde por completo; por sua vez, o tempo que se articula no movimento das sementes pelo vento é o tempo cíclico, no qual a morte individual é anulada pela renovação cíclica da vida, os indivíduos mortos serão sempre substituídos. No entanto, não se pode perder de vista a ênfase na unicidade do indivíduo representada na planta de ébano. No âmbito humano, irrecuperável, se mostra na despedida do eu lírico de sua companhia; por sua vez, o tempo cíclico está presente na crença do eu lírico que, não obstante a separação dele e da pessoa a quem se dirige sua despedida, seus caminhos irão se encontrar novamente, um reencontro que ele projeta no futuro, em um “grande dia”. Os dois tempos, então, se fazem experimentar na vida humana. Os fenômenos e objetos naturais presentes no poema são mais do que metáforas para a passagem do tempo na vida humana; eles são a própria realidade que dão origem e estruturam os tempos humanos. A noção cíclica do tempo, que permite ao eu lírico projetar em sua mente um possível reencontro, surge da queda das sementes sobre a terra e o renascimento das florestas que ocorrerá. Da mesma forma, a noção de irrevogabilidade dos fatos, da despedida, surge em grande parte da observação de uma planta de ébano afundando no pântano. É como se a natureza toda se fizesse o campo onde se estrutura o pensamento humano.
O pensamento, aliás, como dissemos, mostra neste poema uma concretude impressionante, nutrido pela gama de fatos naturais. O pensamento do eu lírico sobre sua despedida e possível reencontro é tão concreto quanto o deslocar-se do antílope sobre a savana ou as sementes que cairão sobre a terra. Não é por menos que Kunene chama um de seus poemas de “O triunfo do pensamento”.