por Leandro Oliveira
No meio dos esforços da Segunda Guerra, Winston Churchill foi solicitado a cortar o financiamento dos museus. Ele deveria centrar gastos no orçamento de combate. “Mas se não é pelas artes, pelo que então estamos lutando?”, teria dito o Primeiro Ministro inglês. Com o colapso das defesas antiaéreas, uma população doméstica para quem o abastecimento de alimentos era limitado, e o temor de uma invasão iminente, Churchill, um dos maiores estadistas da história do século XX, teria expressado o que afinal eram as verdadeiras prioridades. Se a resistência não fosse para preservar a Cultura da Barbárie, seria para preservar o que?
Não há documentos que comprovem a veracidade do diálogo, mas o fato é que ele sobrevive no anedotário em torno do primeiro ministro britânico exatamente por sintetizar parte do que poderíamos chamar por ideário Conservador, que Churchill encarnava tão bem. É a cultura, e não a política, que determina o sucesso – inclusive material – de uma sociedade. Hoje a ideia é investigada por autores de escolas variadas como Lawrence Harrison e Samuel Huntigton, Robert Putnam, além é claro de Francis Fukuyama ou Thomas Sowell. É puro realismo. Afinal, já vimos acontecer, no meio do colapso absoluto de uma economia de guerra ou uma crise humanitária por catástrofes naturais, pouco explica porque algumas comunidades ou nações se reconstroem e dinamizam enquanto outras não – e parece ser menos pela vontade política ou injeção de dinheiro, e mais pelo esteio onde os indivíduos reconhecem valores e responsabilidades comuns, causas e objetivos que a todos fortalecem. A Cultura, por meio da arte, mas também do conhecimento, dos costumes e hábitos, é o que garante os vínculos sensíveis por meio dos quais toda uma comunidade pode reconhecer a si mesma – e, reconhecendo-se, cultivar a fraternidade e a esperança, alimentos indispensáveis para a prosperidade e uma vida social saudável.
Se a resistência não fosse para preservar a Cultura da Barbárie, seria para preservar o que?
Mas no Brasil, distante de bombardeios aéreos, os museus pegam fogo. E não nos enganemos: um incêndio, como o que vimos no Museu Nacional do Rio de Janeiro, não se improvisa – a forma como foram tratados por anos o prédio e o acervo anunciava uma tragédia. Um gestor da área não precisa ser Churchill para saber que museus, escolas de arte, orquestras sinfônicas ou teatros de repertório não podem ser deixados à própria sorte: em uma sociedade complexa como a de cultura de massa, estas instituições simplesmente não são capazes de manter-se de pé autonomamente. A democratização do acesso exige delas uma equação economicamente insolúvel.
Diante disso, impressionavam os últimos movimentos do governo do estado de São Paulo. No último dia 1 de Abril, o governador João Doria Jr. havia decidido levar adiante seu segundo projeto para a antiga Secretaria de Cultura. O primeiro havia sido a mudança do nome do órgão executivo – hoje, Secretaria de Cultura e Economia Criativa. Agora, deixando claro o que compreende pelo aposto, executava a mais convencional e pouco criativa das ações econômicas em épocas de penúria: realizou cortes. Sim, escusado dizer, o panorama da economia do estado, como de todo país, requer por parte dos agentes públicos o redimensionamento de gastos. No entanto, tudo parecia ter sido feito em abstrato, sem análise das particularidades dos contratos, sugestão de melhorias na gestão ou qualquer trabalho com os agentes da área. De um modo que poderíamos chamar por perverso, o governo avalizava restrições orçamentárias indistintamente, eximindo-se de todo o senso de proporções requeridos pelo breviário de uma boa administração – pública ou privada. A pasta, que em 2010 já ocupara exíguos 0,71% do total do orçamento do Estado ver-se-ia, após cortes anuais sucessivos, reduzida a pouco menos da metade disso – algo como 0,34%. Como resultado, o contingenciamento de 127 milhões de reais deveria engessar ou inviabilizar a atividade dos principais equipamentos e programas culturais do país, alguns de prestígio internacional como a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), a Pinacoteca de São Paulo, o Museu do Futebol ou a São Paulo Cia. de Dança, além de outros de formidável apelo para a comunidade cativa de cerca de três milhões de usuários da Biblioteca de São Paulo, as Fábricas de Cultura, as Oficinas Culturais, a Escola de Música do Estado de São Paulo, o Museu da Imagem e do Som, o Museu Afro Brasil, ou o Theatro São Pedro.
A Cultura é o que garante os vínculos sensíveis por meio dos quais toda uma comunidade pode reconhecer a si mesma
Tudo se tornava mais tragicamente curioso pois, nos últimos vinte anos, o modelo de gestão da Cultura por parceria com OSs, implementado pelo governador Mário Covas, resultou no mais bem sucedido e eficiente modo de operação da complexa cadeia produtiva do setor. Ele prevê, em contratos plurianuais, o repasse de verbas mediante uma série de contrapartidas – metas, custos e práticas com auditoria externa e fiscalização do MP e do TCE. Com as OSs contratadas fica ainda a responsabilidade pela manutenção de edifícios públicos históricos de grande porte, como o Complexo Júlio Prestes. Isso não sai barato – quando se faz barato, arrisca pegar fogo.
Neste sentido é que se torna mais flagrante a miopia por parte do poder público paulistano, não apenas por desprezar tal ativo político, mas com ele todo o histórico de excelência acumulado. Já em 2016, o Theatro São Pedro – ainda dirigido pelo Instituto Pensarte, e um espaço de ópera com pretensões meramente regionais – foi a primeira casa brasileira do gênero a ver uma de suas produções estampada na capa de uma revista internacional especializada. Do mesmo modo, desde muito antes, a Sala São Paulo é elogiada reiteradamente como uma das melhores salas de concerto do planeta por jornais como o The Guardian, de Londres. Os cortes menosprezam o fato da Pinacoteca do Estado ter sido recentemente elencada pela Stasher – uma plataforma internacional de avaliação de destinos turísticos – como um dos três pontos de visita mais atrativos do Brasil (ao lado, imaginem, do Cristo Redentor). Desconsideram, ainda, que a exposição itinerante “Museu do Futebol na Área” figurou no ranking da revista The Art Newspaper como uma das mais visitadas do ano de 2018 em todo mundo. O contingenciamento, nas dimensões e na oportunidade com que seria realizado – sem aviso prévio, e já ao final da execução de um primeiro trimestre de atividades – seria o ponto culminante para um inevitável sucateamento destas iniciativas.
Ficaríamos, afinal a perguntar: como poderia um estado que não honra os compromissos estabelecidos em contratos assinados e referendados, pleitear parcerias com a iniciativa privada, leia-se, empresas que trabalham, as bem-sucedidas, de acordo com metas e resultados que derivam de um planejamento de longo prazo?
A manutenção de projetos de alto impacto – seja em cultura, seja em pesquisa médica, seja em organização de eventos empresariais – requer programação com antecedência, em contratos cujos termos se dão, por vezes, em moeda forte. Na Cultura, como em qualquer parte, a sempre desejável atração de patrocinadores, parceiros e patronos locais, requer previsibilidade, confiança e transparência. Tais solavancos financeiros e rupturas contratuais, tão típicos do improviso governamental que por décadas afastou plateias e talentos do cenário brasileiro, no médio prazo, apenas reduzem a respeitabilidade e a interlocução de nossas instituições tanto com o mundo quanto com a comunidade local. Já lutamos essa batalha. O Brasil a combate desde sempre.