por Felipe Pimentel
Dificilmente chamaríamos de canção a música do Radiohead Fitter Happier (Mais sarado, mais feliz). Não há ritmo, tampouco melodia, somente uma voz abafada e computadorizada anunciando uma série de dizeres e acompanhada de notas desconexas longínquas, essas, por sua vez, misturadas a vozes de radialistas. O texto diz:
Mais sarado, mais feliz, mais produtivo,
Confortável,
Sem beber demais,
Idas regulares na academia
(três vezes por semana),
Se dando melhor com seus funcionários atuais,
Na boa,
Comendo bem (nunca mais comidas de micro-ondas e gorduras saturadas),
Um motorista mais paciente,
Um carro mais seguro (o bebê sorrindo no banco traseiro),
Dormindo bem (sem pesadelos),
Sem paranoia,
Cuidadoso com todos os animais
(Nunca mais lavar as aranhas nas tomadas).
Mantendo contato com os velhos amigos (curtindo um drink uma vez ou outra),
Frequentemente checando o crédito (moral) no banco (um buraco na parede),
Favores por favores,
Ligado, mas não amando,
A Caridade colocando suas ordens
Nos domingos no supermercado na periferia
(Sem matar traças ou colocar água quente nas formigas),
Lavagem de carro (também aos domingos)
Não mais temeroso do escuro ou das sombras do meio dia
Nada tão ridiculamente juvenil ou desesperado,
Nada tão infantil – em um ritmo melhor,
Mais lento e calculado,
Sem chance de escapatória,
Agora empregando-se a si mesmo,
Preocupado (mas não impotente),
Um poderoso e informado membro da sociedade (pragmatismo sem idealismo),
Não chorará em público,
Pouca chance de doença,
Pneus que aderem na chuva (uma foto do bebê com cinto no banco traseiro),
Uma boa memória,
Ainda chora com um bom filme,
Ainda beija com saliva,
Não mais vazio e frenético como um gato preso a um mastro
Que é jogado num inverno de merda (capacidade para rir das fraquezas),
Calma,
Mais sarado,
Mais saudável e mais produtivo
Um porco numa jaula de antibióticos.
À primeira vista, sua concepção parece se inserir no quadro típico dos anos 90 e início dos anos 2000, onde as novas gerações, órfãs de utopias diante do fim da Guerra Fria, buscavam denunciar uma suposta hipocrisia ou fracasso do modo de vida vigente, sem necessariamente oferecer alguma alternativa. Porém, há uma tensão especial aqui: a voz enuncia aparentemente desejos, mas o faz como mandamentos; o próprio fato de ela ser computadorizada a torna menos afeita a falar sobre vontades, tampouco a nossa busca pela felicidade; a ausência de melodia ou qualquer resquício de musicalidade nos angustia propositalmente, o que, somado aos dizeres aparentemente jornalísticos do fundo, nos comunica que aqueles dizeres sobre a nossa suposta realização, esse feito tão singular, são tão espetacularmente óbvios e genéricos que poderiam ser anunciados para todos. Mais ainda: não se trata somente de uma crítica social, mas de um desvelamento do modo de realização do sujeito contemporâneo: fuzilado por milhares de mandamentos de toda sorte, travestidos em desejos – no amor, amizade, saúde, família, trabalho ou consumo –, exaure suas forças na tentativa de conciliar demandas não só contraditórias e extensas, mas alheias – oriundas de uma voz que ninguém sabe de onde vem e como ecoa.
A obsessão pela saúde, convertida em culpa pelos deslizes e narcisismo pelo corpo, aliada ao devido trânsito social; a adesão aos exigentes mandamentos ecológicos e ambientalistas, imiscuídos nos mais ínfimos momentos cotidianos, também aliados a uma obrigação de saúde mental, esta ancorada em devidas relações familiares e amorosas; o trabalho como definidor do reconhecimento social, mas levado a cabo saudavelmente, e acima de tudo possibilitador de um modelo de consumo que saiba equilibrar a medida correta de objetos que confiram status sem ferir os princípios do anticonsumismo; a tentativa de encontrar um meio-termo nas ações, que menos parece a virtude de um bem agir e mais a falsificação das ações e o distanciamento afetivo de tudo e todos — de onde exatamente surgem essas demandas Não saberemos. Sabemos somente que elas tratam de um determinado modo de vida contemporâneo, que bem poderíamos chamar de cultura da performance, isto é, nas mais distintas áreas da nossa vida, 24 horas por dia, nos é demandado um alto nível performático: não somente no trabalho (como viram tão superficialmente os frankfurtianos), mas também nas nossas relações amorosas, saudáveis, leves e enriquecedoras; nas amizades, longevas, verdadeiras e profícuas; no sexo, espetaculoso, semiprofissional e performático; nos nossos valores morais, adequados, coerentes e agregadores; na nossa visão de mundo, engrandecedora, não-exigente e otimista. Quer dizer, há um verniz de adequação ao status quo que tem como efeito nada mais que a despersonalização de um lado, e a exaustão na busca de reconhecimento de outro.
Estamos todos preocupados se os olhares em torno percebem nossas performances e se nos avaliam bem, de modo que nenhuma atitude terá valor se não for certificada pelo olhar alheio – donde percebemos o horror das redes sociais nessa processo. O único empecilho desse processo é que, estando todos preocupados com a própria performance ao olhar do outro, ninguém está olhando para ninguém, tampouco para si mesmo – todos “performam-se”, mas sozinhos. O esgotamento mental e corporal diante de tamanhas exigências e seus terríveis efeitos costuma cobrar caro: no revés do narcisismo, a baixa autoestima ou adicção virtual; no revés da performance, a sensação de impotência; no revés do olhar alheio, a solidão.