A experiência de Richard Feynman no Brasil e o atual ensino das ciências humanas

O maior entrave à formação superior é uma metodologia às avessas que, desconsiderando os fatos, a experiência, a lógica e a ética de pesquisa, busca um resultado dado 'a priori'.

por Heloisa Pait

Um professor com espírito investigativo precisa exercitar a cada momento seu lado Richard Feynman, especialmente se der aulas nas ciências humanas. Feynman, um dos mais importantes físicos do século XX, esteve no Brasil por alguns anos dando aulas na década de 50. O centenário de seu nascimento foi comemorado este mês. Feynman criticou o ensino de Física no Brasil por ser baseado na “decoreba”, sem estimular o raciocínio científico ou a observação empírica. Ele achava os alunos inteligentes e interessados, mas com imensas dificuldades em conectar as leis físicas que aprendiam e a realidade que enxergavam. Com perguntas, Feynman dirigia seus olhares para tais conexões.

O material das ciências humanas é a própria vida social, que observamos com olhar atento a cada dia, desde a primeira infância, para podermos nela nos inserir. A investigação social é parte integrante da vida de qualquer ser humano minimamente ajustado: observamos comportamentos, os relacionamos a grupos e situações, narramos acontecimentos a partir de vários pontos de vista, inferimos motivações aos vários atores sociais, atribuímos significado às ações humanas e também debatemos com nossos parceiros a validade destas atribuições. Desde a despretensiosa fofoca familiar, até o relato mais completo de um jogo de futebol, nós brasileiros em particular somos exímios narradores, interpondo pequenas análises do comportamento em nossos relatos.

Entretanto, assim como Feynman, o professor das ciências humanas deve lembrar aos seus alunos que sua vida familiar, sua vida profissional, os grupos sociais a que pertence, no mundo físico e nas redes virtuais, é que são a matéria da qual falam os pensadores sociais. Costumo dizer aos meus alunos de sociologia que Georg Simmel, por exemplo, é um pensador brilhante que nos presenteou com alguns conceitos cruciais, em particular sobre a vida nas cidades, mas ele viveu na Berlim da virada do século XX e não tem respostas para todas as suas perguntas sobre a São Paulo do século XXI. Você é que deve andar pela cidade, observar as pessoas e conversar com elas para descobrir qual a experiência urbana de hoje.

Assim como Feynman, também vejo muitos alunos inteligentes e aplicados, com vontade de compreender e atuar no mundo em que vivem. Alguns chegam com lacunas de aprendizado do colegial, mas não é esse o maior entrave, nem de longe, que encontro nos cursos de metodologia para as ciências sociais, que tenho ministrado nos últimos anos. O maior entrave é uma espécie de metodologia às avessas que parecem ter aprendido no próprio ambiente acadêmico, principalmente na faculdade, mas, em anos recentes, no próprio ensino médio. Essa metodologia vai contra tudo o que um bom cientista valoriza: a atenção aos fatos e à experiência; o respeito à lógica e à própria ética de pesquisa – que não se guia, segundo essa metodologia invertida, pela busca da verdade, mas sim deliberadamente por algum resultado dado a priori e obtido sem o aval dos pesquisados.

Meu método de ensino se baseia, em linhas gerais, em construir pontes entre a experiência social e o uso pragmático dos conceitos das várias teorias sociais, através de exercícios práticos de observação da realidade. Dito assim, parece simples, e até ingênuo, e fica difícil explicar ao leitor toda a dificuldade em mostrar essas pontes aos jovens que, de modo geral, têm uma enorme gana de fazer exatamente isso! Vejamos exemplos. Perguntados sobre como eles obtêm informações, digamos, na vida civil, eles relatam usar uma série de mecanismos: os motores de busca como o Google, perguntas a amigos e familiares, perguntas lançadas nas redes sociais, investigações em publicações que poderiam conter a informação desejada, e assim por diante. Perguntados, por outro lado, sobre como obter informações científicas, a resposta se estreita, limitando-se à referência a umas poucas autoridades acadêmicas. Muitas vezes, os alunos buscam encaixar numa tese dada a priori as experiências humanas que coletam através de entrevistas. Mas uma vez admoestados a ouvirem de fato as pessoas, percebem a riqueza destas experiências e a beleza de se buscar compreendê-las de modo livre.

A escrita normal dos alunos, usada para relatar eventos próximos à sua realidade, pode às vezes apresentar alguns problemas de redação, mas no geral é expressiva e interessante. Os assuntos tratados são particularmente adequados para investigações mais aprofundadas, pois tocam em fenômenos sociais importantes e contemporâneos. Quando os mesmos alunos entram no modo acadêmico, a escrita se fragmenta, perde consistência e às vezes passa a ser incompreensível. Quanto à articulação do texto, o seu encadeamento lógico, ocorre o mesmo: em textos a respeito de fatos mais próximos os alunos não têm dificuldade em identificar eventos relevantes, propor possíveis interpretações e justificá-las. Já no modo acadêmico, a lógica se esvai: fatos sem importância recebem atenção desmedida e interpretação desconectada com o que foi observado. Alegam que se escreverem de modo claro e direto, como pedido, não serão valorizados, e no contexto acadêmico tal alegação parece justificada.

Tudo no universo das ciências sociais está em questão, especialmente desde o “linguistic turn”, ou seja, desde que se passou a usar conceitos da linguística e dos estudos literários para a compreensão de fenômenos sociais. Ferramentas de expansão do entendimento da complexa vida simbólica social se tornaram, entretanto, um meio de reforçar interpretações unívocas: já que tudo está em suspenso, então vale o dogma. Desta forma, a linguagem não mais representa e sim constrói a realidade; a vontade do sujeito é um produto do meio e não mais variável independente; as várias representações sociais são só encenações teatrais; os números, apenas artifícios alienantes de nossa experiência humana; e, finalmente, os meios de comunicação, meros instrumentos de opressão e não, bem, de comunicação. Nesse ambiente, cabe aos alunos desconfiar de dados quantitativos e especialmente da própria fala dos indivíduos pesquisados. Pois que sabem eles de suas próprias vidas, sufocados que são por tantos engodos? A verdade está dada a priori, e cabe à pesquisa apenas legitimá-la, conferir-lhe um status acadêmico aceito.

Não que se deva atribuir, como muitos fazem, a Saussure ou Foucault, a Marx ou a Adorno, a Freud ou Goffman, esse nosso desprestígio da realidade empírica, às vezes até tachado de empirismo. Os físicos que ensinavam os alunos que Feynman conheceu no Brasil preconizavam a mesma cegueira científica, e não era devido às leituras destes autores. A raiz deste estado de coisas parece ser mais profunda: a herança de nossa educação dogmática, atualizada a cada geração pelo estamento universitário, que encontrou no discurso marxista, e depois no pós-moderno, ferramentas de desvalorização do mundo real. Se isso é verdade, não será trocando um autor pelo outro, uma corrente pela outra, que sairemos desta situação, mas incentivando a pluralidade e o pragmatismo acadêmico que deixarão aos alunos a escolha entre o ensino essencialmente prático, o ensino essencialmente teórico e o ensino mais verdadeiro, onde prática e teoria se encontram na busca, comum, do conhecimento.

O ensino fundamental e médio tem seus problemas intrínsecos, relativos aos currículos, a questões sociais e gerenciais. Mas tais problemas não são empecilho para um bom ensino superior. Já o contrário é verdadeiro: sem formarmos jovens amantes das ciências, do conhecimento e da própria vida em sociedade, fica difícil oferecermos à sociedade os professores do ensino básico que ela merece. Culpar o ensino médio pelos problemas do ensino superior é culpar os mais pobres e esforçados que entram nas nossas faculdades por um fracasso que é nosso. Culpar o ensino superior pelas falhas do ensino médio é assumir as responsabilidades dos líderes do sistema de ensino desse país que, a cada geração, têm seu ingresso ao grupo dos países desenvolvidos adiado.

Para saber mais:

  • Feynman, Richard. O Senhor Está Brincando, Sr. Feynman? As Estranhas Aventuras De Um Físico Excêntrico. Rio de Janeiro: Campus, 2006.
  • Piaget, Jean. Problemas De Psicologia Genética. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1973.
  • Claudio Rama, Simon Schwartzman e outros. Diretrizes de Política Pública para o Ensino Superior Brasileiro. São Paulo: SEMESP, 2017.
  • Luiz Davidovich, coordenador. Subsídios para a Reforma da Educação Superior. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências, 2004.

COMPARTILHE: