A morte de mim, a morte da crítica, e a morte da consciência

Tenho me interessado bastante por um assunto um pouco distante das nossas mais caras ilusões, fantasias, aventuras e amores. Um dos traços desse distanciamento, a meu ver, corresponde ao tipo de leitura de um sujeito, e eu tenho lido basicamente muita teoria, biografia, química, neurologia, história da medicina, e pouquíssima ficção.
Cena de “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho

por Thiago Blumenthal

Tenho me interessado bastante por um assunto um pouco distante das nossas mais caras ilusões, fantasias, aventuras e amores. Um dos traços desse distanciamento, a meu ver, corresponde ao tipo de leitura de um sujeito, e eu tenho lido basicamente muita teoria, biografia, química, neurologia, história da medicina, e pouquíssima ficção. Talvez a vida adulta responda por muito desse comportamento, quase atávico, talvez um novo modo de pensar a vida e vivê-la. Aos 36 anos já não me prescrevo autorização alguma a consumir entretenimento barato ou ficção que não valha a pena. Pouco ganhamos com a literatura, em um sentido mais estrito e sob o exigente filtro da contemporaneidade, de modo que os meus interesses apontam a diversos campos um pouco mais técnicos, e um deles é justamente o da recepção crítica dessa arte toda que estamos a consumir, voluntária ou involuntariamente. Um assunto e uma proposta que podem ser melhor explorados em futuros textos – e que devo desdobrar em uma apresentação no congresso internacional da Abralic, a ser realizado em agosto no Rio de Janeiro (se a UERJ ainda estiver viva).

Esse texto poderia estender-se a questões como a do papel do intelectual hoje, das razões de estarmos lendo mais não ficção do que ficção (há estatísticas? Se há, valem para o Brasil? Bem, o que vale para o Brasil, terra cujo único paradigma é a pouca leitura…), e do papel predominante da internet e das redes sociais no mar diário de informações, mas o recorte que faço é um pouco mais peculiar e diz respeito ao artista que também é crítico, e, mais, crítico de sua própria arte. Sinto que vivemos em um momento propício a rompantes um tanto quanto exagerados de arte, de apreciação artística e, mais, da conjunção desses dois núcleos, e não há como observar esse fenômeno dos tempos sob uma ótica pessimista.

Um exemplo recente, e bastante popular, a cuja obra e repercussão boa parte da população brasileira teve acesso, é o do cineasta Kleber Mendonça Filho. Não me cabe o papel de crítico de cinema para avaliar seu Aquarius, longa-metragem que deu o que falar no ano passado depois da manifestação que o diretor e a equipe fizeram em Cannes, a respeito do processo de impeachment, então em andamento, a que chamavam de “golpe”, uma palavra que hoje já parece cair em desuso. Não importa. O que quero tratar aqui é que Mendonça representa muito bem essa figura mezzo artista mezzo crítico, posto que ele também foi (ainda é?) resenhista de cinema em Pernambuco – em tempo, hoje Mendonça é coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles.

Em declarações públicas à imprensa, o diretor de Aquarius se referiu à protagonista Clara, interpretada pela bela Sônia Braga, como representante de Dilma Rousseff. Não sei se foi em resposta a uma metáfora bastante torpe e vaga de parte da esquerda que enxergou na personagem algo de uma mulher sendo deposta de seu próprio espaço conquistado democraticamente. Há certos tipos de interpretação que deveriam ser taxados pelo governo golpista de Temer, a meu ver. Já que é pra ser golpista, vamos apelar.

A crítica literária, dos corredores da FFLCH aos rincões das federais Brasil afora, sempre me pareceu pouco séria em seu propósito. Há de tudo, desde teses que afirmam que determinado livro é “sobre a vida” até a psicanálise mais grosseira do “foi tudo um sonho” do personagem. Nos dois últimos decênios os desvarios ganharam feições ideológicas, feministas, e há até quem veja marxismo em Annie Hall, de Woody Allen. Nada contra. Pelo contrário, sou um sujeito progressista e aprecio de tudo nessa vida. Que venham. O caso é que Mendonça, infelizmente, parece ter caído nessa armadilha. O que raios Dilma tem a ver com Clara? Enfim, mas, como dizem por aí, “tudo é político”, e toquemos a vida.

Sintomático, contudo, é o próprio artista falando de sua própria obra. Como autor, fica complicado tirar-lhe a legitimidade de seu discurso e de sua argumentação. Fui eu que escrevi isso aqui, oras. Mais: o artista tem a chancela da imprensa, que replica e repercute tudo o que diz, de modo a orientar o próprio olhar do espectador para onde bem entender (ou leitor, ou telespectador, ou o que quer que seja).

Faz parte do jogo, evidente. Só pondero que há nesse circuito o risco de empobrecer tanto a própria obra quanto o próprio fazer crítico: a obra demanda explicação, como a piada mal contada, e a crítica dispensa, por assim dizer, o especialista, pois se é o autor quem diz, poxa, quem poderá contradizê-lo? A crítica assim se encontra contra a parede.

As redes sociais parecem ter exponenciado esse processo, uma vez que é lá que os autores ganham voz e podem falar de suas próprias obras, e compartilhar também os links que bem lhe cabem compartilhar a seus seguidores. Talvez sempre tenha sido assim, apenas os meios mudaram, o que geraria uma enorme e interessante discussão que pode ficar para outro momento. Ao mesmo tempo, há um paradoxo, pois quando há tantas opiniões saltando na nossa tela, a opinião que mais importa (seja ela do próprio autor, ou a do especialista) recebe o mesmo peso na hierarquia de informações do nosso Facebook pessoal.

No excelente livro The Death of Expertise (Oxford University Press, março de 2017), o crítico e professor Tom Nichols mostra como dados do tipo “Google” são cada vez mais relevantes não somente para o leitor médio, mas também para o próprio especialista. Há um drama geracional que não necessariamente será resolvido. Penso comigo que a questão da consciência, o “hard problem” , perpassa por esse território de informações que não mais serão filtradas por uma “consciência” que podemos chamar de nossa. Somos um outro etc etc.

Ao cabo, pego-me pensando em todos essas questões e me sinto tão longe de tudo, tão indiferente ao mundo, e talvez mesmo indiferente a mim mesmo. Como Kafka, o que eu tenho a ver com os judeus, mas que pergunta, mal tenho eu algo a ver comigo mesmo e já me boto por contente se estiver respirando em algum canto sozinho da sala. Então, que tenho eu a ver com os artistas, com os críticos, com Kleber Mendonça Filho? Não que eu tenha morrido, ou estivesse próximo de (nem que tenha a intenção de, embora o mundo agradecesse), mas não me envolver mais em nenhuma história, em nenhuma intriga amorosa ou caso indecoroso que me colocasse em risco ou sob a custódia do medo, bota a gente comovido como o diabo e tem um quê de morte.

COMPARTILHE: