A seleção brasileira e as mitologias da nacionalidade

Idelber Avelar comenta a relação do brasileiro com a seleção, oscilando entre o deslumbramento e o negativismo, dois pólos que definem a mitologia nacional em torno do esporte.

por Idelber Avelar

A relação entre nacionalidade e a seleção de futebol é um tópico que já foi tratado algumas vezes no ensaísmo brasileiro moderno. A premissa de que o futebol nos diz algo sobre quem somos como nação se reitera desde o clássico O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho, passando pelas crônicas de seu irmão Nelson Rodrigues, até o recente Veneno Remédio, de José Miguel Wisnik. Este último veio preencher uma lacuna importante na bibliografia. Enquanto que a vasta maioria das obras acadêmicas sobre futebol tratam de seus aspectos históricos, econômicos, sociológicos ou biográficos, Veneno Remédio se propõe como um ensaio sobre o jogo em si, sua lógica interna e seus paradoxos constitutivos. Para Wisnik, seria nesse terreno que o futebol se entronca de maneira mais reveladora com os dilemas que atravessam o ensaísmo de identidade nacional. 

Nenhum dos traços trabalhados por Wisnik em Veneno Remédio é tão relevante para se entender a relação do brasileiro com a seleção em época de Copa do que a esquizofrênica oscilação entre a euforia singularizante da nacionalidade e o fatalismo catastrófico, igualmente entendido como singular do país. De forma alternada, vemos a seleção, mais que os clubes, como expressão única do talento e da arte do nosso futebol e como expressão da burocrática e corrupta estrutura que o administra. Ante a canarinho, dificilmente há meios-termos, nuances, análises. Há deslumbramento e há negativismo. O polo negativo dessa oscilação nos proporcionou uma das grandes metáforas nacionais, o complexo de vira-latas, termo cunhado por Nelson Rodrigues para descrever o apequenamento em decisões que seria, pensava-se depois do Maracanaço de 1950, uma espécie de fatalidade nacional. O futebol nos lega, então, uma metáfora da nacionalidade que atravessaria décadas muito além da suposta superação da fatalidade que ela designa. 

Nessa própria suposta superação, conseguida com o título mundial de 1958, na Suécia, reinstala-se a oscilação que rege a relação do brasileiro com sua seleção nacional, agora no polo do deslumbramento. Firma-se como indiscutível a versão de que o Brasil teria ganhado a Copa da Suécia graças ao talento indomável de Pelé e Garrincha (o craque escolhido como o melhor daquela Copa, Didi, é menos frequentemente citado), enquanto se desconsideram os outros fatores que contribuíram para o título: um esquema tático inovador que realizava a transição do 4-2-4 para o 4-3-3, com a volta de um dos pontas, Zagallo, para recompor a marcação e fechar o meio; a preparação profissional e minuciosa em Poços de Caldas, Araxá e Rio de Janeiro; a equipadíssima delegação que contava com inovações como um médico, um dentista, um preparador físico e até mesmo um psicólogo em tempo integral. Todos esses fatores são regularmente ignorados inclusive por estudiosos do futebol como explicações para a vitória de 1958. Vencemos, diz-se, porque a genialidade de Pelé e Garrincha destruiu o futebol científico dos soviéticos e atropelou todos os adversários que se seguiram. Essa desconsideração dos fatores contextuais chega ao ápice na mitologia acerca do tricampeonato de 1970, uma das preparações mais meticulosas já feitas para uma Copa do Mundo, desde o cuidadoso trabalho de condicionamento físico até o bem planejado processo de adaptação à altitude mexicana. A importância desses fatores fica visível ao se considerar a quantidade de gols marcados pelo Brasil na segunda metade do segundo tempo durante aquela Copa, em um momento do jogo no qual seus adversários já se arrastavam pelo campo. No entanto, levá-los em conta é quase herético em muitas comarcas: o Brasil venceu porque Pelé, Tostão, Gérson, Carlos Alberto, Jairzinho e Rivellino eram gênios do futebol.  A seleção de 1970 permaneceria firme na mitologia nacional como uma espécie de encontro do país com sua essência, manifestação maior da verdade do talento e da singularidade do futebol brasileiro. 

O mundo não permaneceu alheio à mitologia que o Brasil inventou sobre si próprio quando o tema é futebol. Ainda antes do pentacampeonato, o jornalista francês Pascal Boniface se referia ao futebol como um terreno em que reina uma única superpotência – o Brasil – muito adiante de um conjunto de potências menores (Alemanha, Itália, Argentina, Inglaterra etc.). Nessa mitologia, as eventuais derrotas sempre devem ser explicadas por fatores endógenos ao próprio futebol brasileiro, sem que se leve em consideração a natureza dialógica do esporte e os méritos do adversário. Essa espécie de radical egocentrismo de análise chega ao seu ponto de colapso com a derrota do escrete de Telê Santana em 1982, invariavelmente descrita como “fatalidade inexplicável”, já que, apesar da ausência de Reinaldo, não havia ali gritantes erros de convocação, concessões retranqueiras, interferências da estrutura corrupta ou quaisquer  outros dos elementos com os quais explicamos nossas derrotas. Nas conversas brasileiras sobre a Copa da Espanha, só recentemente vem se firmando a consciência de que apesar dos escândalos de manipulação de resultados do calcio que precederam a viagem italiana à Espanha e de sua fraca campanha na primeira fase, a Itália de Paolo Rossi, Cabrini, Dino Zoff, Gentile, Tardelli e Antognoni era uma equipe notável, fortíssima na defesa e letal nos contra-ataques, talvez a melhor Itália de todos os tempos. A mitologia brasileira, no entanto, manteria sua vocação egocentrada até mesmo ao ler psicanaliticamente a tragédia de 1982 como recalque do que nos constitui. 

Nas últimas Copas, a miragem de singularidade nacional tem sido tematizada em debates acerca da existência de brasileiros que torcem contra a seleção, curiosamente entendida por alguns como um fenômeno exclusivamente brasileiro. A polêmica e a politização que a acompanha não são exatamente recentes. Por motivos regionais a seleção já foi hostilizada inúmeras vezes em território nacional, especialmente em estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia, onde é forte a percepção de que as estruturas do futebol brasileiro privilegiam o eixo Rio-São Paulo. O auge dessa hostilidade talvez tenha sido o amistoso – nunca essa palavra foi tão inadequada – entre a seleção gaúcha e a seleção brasileira realizado no Beira-Rio, em 1972, logo depois de uma convocação na qual não estava presente o lateral tricampeão do mundo Everaldo, jogador do Grêmio. O clima de guerra que precedeu aquele 3 x 3 foi tão violento que Paulo César Caju, meia-esquerda da seleção, chegou a declarar, em Porto Alegre: “Devolvam meu passaporte. Quero voltar para o Brasil”. 

Também a luta política atravessou a relação do brasileiro com a seleção ao longo dos anos. É conhecida a tentativa – retratada no filme O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger – de setores da esquerda brasileira de “secar” a seleção de 1970, dado o uso político do esporte feito pela ditadura durante o auge da repressão militar. Na versão lendária que se firmaria e que encontra representação na obra de Hamburger, ativistas e simpatizantes de esquerda teriam até se alegrado timidamente ante o gol de Petraš com que a Tchecoslováquia abriu o placar na estreia, ainda que tivessem ficado ligeiramente decepcionados com o fato de que um jogador do bloco comunista comemorasse um gol benzendo-se com o sinal da cruz. No entanto, segue a lenda, a avalanche de gols de Rivellino, Pelé e Jairzinho com que o Brasil venceria a partida demoliu quaisquer veleidades secadoras e, já na virada, os ativistas celebravam o show do escrete, em seus aparelhos ou mesmo nas masmorras do regime. Nenhuma lenda é tão ilustrativa das narrativas auto-congratulatórias com que o futebol brasileiro narra sua história, e especialmente a história de sua seleção. Que o fato tenha ou não tenha ocorrido tal como narrado, evidentemente, é o que menos importa para a consolidação da lenda. 

Na Copa de 2014, foi a vez da esquerda então governante fazer um uso político do esporte. A violenta política de remoções e o superfaturamento de obras foram coroados com o slogan “Vai ter Copa, sim, e se reclamar vai ter duas”, com o qual o oficialismo respondeu à campanha de resistência que se organizava sob a consigna “Não vai ter Copa”. A amarga ironia, claro, é que apesar do sucesso organizacional e futebolístico do torneio, para o Brasil, em certo sentido, não houve Copa, e sim a humilhante revelação do despreparo de uma comissão técnica já defasada em, pelo menos, uma década e meia com relação às inovações táticas do esporte, baseadas na ocupação de espaços, na multivalência das posições, na compactação do meio-campo e na valorização da posse de bola. Ao contrário de 1970, em 2014 foi fácil e cheia de recompensas a vida dos secadores. Em 2018, repete-se a polêmica, de novo com o sinal político trocado em relação à Copa anterior. 

Até mesmo nessa que é a mais comum das recusas aos símbolos nacionais – o ato de secar uma seleção nacional de esportes –, o futebol brasileiro insiste em ver sua singularidade. Essa mitologia se encontra hoje em agônico conflito, em tensa coexistência com a nova seleção, já não armada a partir do surrado vocabulário motivacional de Felipão, da autoritária carolice de Dunga e Jorginho ou das burocráticas e ultrapassadas pranchetas de Parreira. A chegada de Tite, antenado com os últimos desenvolvimentos táticos das melhores ligas do mundo e dedicado ao minucioso estudo dos adversários (tarefa que nosso nacionalismo sistematicamente desprezou, sempre escondendo-se sob o clichê de que “são os outros os que têm que tentar acompanhar o Brasil”), promoveu uma reviravolta que não se havia visto na seleção desde a entrada de Telê Santana, no começo da década de 1980. É possível, então, que a mitologia da singularidade brasileira tenha inclusive mais problemas para se reciclar caso o azeitado time de Tite traga mesmo o sonhado hexa. 

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