A sombra de Stálin:  a censura que não ousa dizer o seu nome

De 2016 para 2017, o número de russos que apoiam o legado do ditador passou de 37 para 46 por cento; mas a resistência à sua reabilitação é visível.

por Astier Basílio, de Moscou

Moscou, 26 de janeiro de 2018. Era noite quando seis policiais entraram no cinema Pioner. Um dia antes, o Ministério da Cultura resolveu cassar a licença concedida para as exibições da comédia A morte de Stálin (2017, direção de Armando Iannuncci). Até o impedimento legal, houve duas sessões. A multa imposta pela Justiça foi de 280 mil rublos (16 mil reais).

O Pioner fica na avenida Kutuzovsky. De lá é possível ver o Kundrinskaya. Edifício que faz parte de um conjunto chamado de “As Sete Irmãs”, espécie de emblema da arquitetura stalinista. Hoje em dia, a sombra do ditador que mandou exterminar milhões de compatriotas não se restringe apenas à paisagem arquitetônica.

Ano passado, o presidente Putin afirmou que “excessiva demonização” do ditador era uma forma de “atacar a União Soviética e a Rússia”.

A História e uma troca de socos

O tema, porém, está longe de ser consenso. Em 30 de janeiro, os historiadores Nikolai  Svanidze e Maxim Shevchenko se engalfinharam ao vivo ao debaterem sobre stalinismo. A baixaria, ocorrida na  Rádio “Komsomolskaya Pravda”, foi transmitida ao vivo pelo Youtube.

Mesmo na esfera governamental, o assunto inspira cautela. Em 2015, a Justiça russa, que sempre deu sinais de estar alinhada ao governo, negou-se a reabilitar Genrikh Yagoda, chefe do serviço secreto da URSS na época do Grande Expurgo.

A censura que não ousa dizer o nome

Veio de uma ex-atriz o discurso mais entusiasmado a favor da censura à comédia britânica. Na tribuna da Duma, a deputada Yelena Drapeko afirmou: “Nós devemos começar a viver com leis de tempos de guerra”.

O Ministério da Cultura realizou uma sessão privada da comédia. Cineastas e membros do conselho responsável pela área de cinema endossaram a proibição. Em carta, disseram que o filme “demoniza os cidadãos que derrotaram o fascismo” e que exibí-lo seria “um ato de masoquismo nacional”.

“Nós não temos censura”, comentou o Ministro da Cultura, Vladimir Medinsky. “Não temos medo de sermos duramente criticados em nossa história. Mas há uma fronteira moral entre uma análise histórica crítica e a zombaria pura”.

Os filmes proibidos

A “fronteira moral”, porém, foi ultrapassada algumas vezes. Em 2006, Borat – O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão, não passou na Rússia pois poderia “ofender alguns espectadores”. Em 2014, o drama histórico Obrigado a esquecer, dirigido por Ruslan Kokanayev, sobre massacre de tchetchenos durante o governo de Stálin, recebeu veto governamental sob a alegação de que não havia evidências históricas suficientes para comprovar o episódio.

Em 2015, foi a vez de Crimes Ocultos, de Ridley Scott. Acusado de “distorcer a história”, mais uma vez se usou o argumento da demonização do povo que venceu o nazismo, para justificar o veto.

Vencedor do Oscar cooptado

Vencedor do Oscar de melhor filme de língua não inglesa, em 1995, o veterano Nikita Mikhalkov foi um dos que assistiu à sessão privada do Ministério. O cineasta declarou: “… Isso nem é um filme, é uma pura especulação, e nós devemos tratá-lo como especulação, não vale a pena nem discutir”.

Uma reportagem do canal de TV Dozhd (“chuva”, em russo) fez um experimento. Mostrou trechos de Sol enganador 2 (2010), filme dirigido pelo próprio Mikhalkov, mas colocou o título da comédia britânica. Em uma das cenas, Stálin tem o seu rosto esfregado em um bolo de aniversário. “Estão tentando desonrar um grande líder”, comentou um rapaz, criticando, sem saber, a película de Mikhalkov.

Cinema sorriso da sociedade

A maior referência do cinema russo na atualidade é Andrey Zvyagintsev. Indicado ao Oscar, seu Leviatã (2014) venceu 12 festivais. A película, entretanto, desgostou o Ministro da Cultura. “Eu espero que no futuro, Andrei Zvyagintsev, uma pessoa de muito talento, possa utilizar o patrocínio do Ministério da Cultura para fazer filme sem essa tristeza e desgraças existenciais”.

Ao ser perguntado se financiaria outros filmes do tipo, Medinsky foi categórico: “Filmes focados não apenas em criticar as autoridades dos dias de hoje, mas de abertamente cuspir nelas, cheios de aflição e desesperança sobre nossa existência, não devem ser financiados com dinheiro de impostos”.

O ditador que amava comédias

Apesar de Lênin ter dito que “de todas as artes, o cinema é para nós a mais importante”, a atenção de Stálin para o assunto só foi despertada em 1935 quando, sem público, alguns cinemas se converteram em teatros.

“Ele [Stálin] era fortemente a favor de comédias, gênero evitado por cineastas soviéticos, considerado por eles como uma frívola distração em relação a filmes sérios e politicamente engajados, ou porque eles temiam zombar de aspectos da realidade soviética”, conta Sarah Davies em capítulo do livro Stálin: a New History (Cambridge University Press, 2005), obra que organizou ao lado de James Harris.

Era na sala de exibições particular, mantida no Kremlin, que muitas das decisões de Stálin eram tomadas. Não eram só filmes russos que entretinham o tzar soviético. Películas de Hollywood eram exibidas com frequência, especialmente Chaplin e faroestes estrelados por John Wayne, republicano e anticomunista ferrenho, que chegou a ser jurado de morte pelo regime. É o que conta Simon Sebag Montefiore, referência obrigatória no estudo da história russa, em “Why Stalin loved Tarzan and wanted John Wayne shot”, artigo publicado em 2004 pelo jornal The Telegraph.

A relação de Stálin com o cinema rendeu o interessante O círculo do Poder (1991), dirigido por Andrei Konchalovsky, irmão de Nikita Mikhalkov. O filme gira em torno do ingênuo projetista oficial de Stálin que, sem perceber, teve sua vida esmigalhada pelas hostes do stalinismo.

Aprovação e banimento

Na Rússia contemporânea, a aprovação a Stálin alcançou o seu maior índice em 16 anos. Os dados são de uma pesquisa do ano passado. De acordo com levantamento feito pelo Levada Center, grupo de pesquisas sociológicas, de 2016 para 2017, o número dos que apoiam o legado do ditador passou de 37 para 46 por cento.

Mas a resistência à reabilitação de Stálin é visível. Na Ingushetia, região administrativa russa, o nome de Stálin foi banido. A lei, votada em fevereiro do ano passado, proíbe a existência de monumentos, a nomeação de cidades e ruas, além de tornar ilegal expressar apoio público ao ditador soviético.

Em Surgut, na Sibéria, houve protesto quando, em setembro de 2016, foi erguido, por iniciativa de populares, um busto de Stálin. A estátua chegou ser suja de tinta vermelha. Um mês depois de instalado, a prefeitura deliberou pela remoção do monumento.

O passado é um campo de batalha

Em dezembro de 2016, o ativista Yuri Dmitriev foi preso. A acusação foi de pedofilia. Acharam em seu computador fotos de sua filha adotiva nua. Diretor de um memorial em homenagem às vítimas do stalinismo, Dmitriev alegou que as imagens eram para fins médicos.

Em janeiro deste ano, a justiça soltou Dmitriev, mas manteve, por mais três meses, a prisão domiciliar de Kirill S. Serebrennikov, o diretor artístico do Gogol Center, acusado de desvio de verbas. Comenta-se aqui que a motivação é política, já que no teatro vários espetáculos apresentados tocaram em temas espinhosos para o governo. Com quem converso, esta ação da Justiça evoca a atmosfera de perseguição dos tempos de Stálin.

Assassino do bisavô é revelado

“Aqui tudo pode acontecer”. É uma frase que tenho ouvido com frequência de amigos russos. E algo realmente incrível ocorreu em 2016. Após 6 anos de peregrinações pelo labirinto da burocracia do Serviço Federal de Segurança (FSB), a antiga KGB, o estudante Denis Karagodin recebeu do órgão os documentos relativos à execução de seu bisavô.

Stepan Karagodin foi morto pela polícia de Stálin após ter sido acusado injustamente de ser espião do governo japonês, em 1938. Durante o processo de investigação, Denis manteve um blog. E foi lá que publicou o nome dos assassinos. Uma das netas dos executores, que se identificou como Yulia, lhe enviou uma carta que pode ser lida como uma chama de esperança em relação a como a Rússia pode lidar com o seu passado sangrento. No trecho final, ela diz: “… Muito obrigado pelo seu trabalho incrível, por essa verdade difícil de digerir. Que nos dá esperança de que nossa sociedade despertará graças a pessoas como você. Muito obrigado e me perdoe”.

Ouça no Estado da Arte:

Podcast – A Revolução Russa

Leia também:

Música soviética em três tempos

A revolução permanente

COMPARTILHE: