por Rodrigo Coppe Caldeira
É peculiar ao missionário, que tenha um ideal ou um projeto social em perspectiva, o negar a realidade ou a eficácia das diferenças, das rupturas, das mutações. (Michel Mafessoli)
Reconhecer a ignorância torna-se, então, o outro lado da obrigação do saber, e com isso torna-se uma parte da ética que deve instruir o autocontrole, cada vez mais necessário, sobre o nosso excessivo poder.
(Hans Jonas)
No cenário do vale tudo das guerras culturais, essa versão secularizada das guerras religiosas de outrora, nada mais banal do que acusar de fascista aquele com quem não se concorda. Essa é uma das práticas mais corriqueiras, e baixas, nessa terra de ninguém que se tornou a esfera pública materializada pelas redes sociais. O recurso é bastante batido e tem história: é nada mais do que uma variação da reductio ad hitlerum, expressão criada pelo filósofo Leo Strauss. Todos nós, por motivos óbvios, não ficaríamos felizes em sermos comparados a Hitler. Mas atacar a pessoa utilizando-se desse recurso falacioso em vez de discutir seus argumentos é sinal de algumas limitações pessoais. O pior que poderia acontecer é termos que lidar com esse tipo de recurso, pasmem, no ambiente acadêmico. O que é um sinal muito preocupante para quem acredita que ele é um lugar de verdadeira liberdade.
A universidade é um espaço em que as diversas visões de mundo podem se apresentar a partir de perspectivas teóricas e serem criticadas abertamente utilizando-se de argumentos. Toda reflexão, tese ou teoria pode e deve ser duramente questionada sem prejuízo de que seja confundida com quem a profere. O pensamento só pode caminhar com crítica aberta e honesta. Esse é um pressuposto básico que deveria ser ensinado de maneira constante pelos educadores. Não há qualquer possibilidade de desenvolver o pensamento, sem termos garantida a liberdade da crítica. Mas não é o que acontece quando vemos emergindo também na universitas, esse lugar sagrado da liberdade, todo tipo de ortodoxias teóricas, impolutas e cerradas em si mesmas, incorrigíveis em seu anseio de se manterem em pé, mesmo quando seus propugnadores são incapazes de responder às questões mais cruciais, a não ser com um ad hitlerum.
Não é de hoje que os estudiosos somos dados a nos entregarmos de corpo e alma a certas narrativas teóricas. Se existe uma tentação que nos ronda constantemente é a de sermos vítimas de suas cristalizações. O que acaba por demonstrar nossas próprias ingenuidades, ou mesmo uma necessidade de fundo religiosa que é sanada momentaneamente pelas teorias totais. Vale lembrar que o século XX, mergulhado em sangue inocente, foi recheado delas. A qualidade da reflexão corre sério risco quando esta ou aquela teoria se impõe como inquestionável, não podendo ser falseada, um dos instrumentos fundamentais para garantir sua cientificidade, como apontou Sir Karl Popper em seu A lógica da pesquisa científica de 1959. Tais desenlaces, que levam a todo tipo de censura, velada ou não, aos questionamentos que as tem como alvo, engessam o debate, freiam a reflexão, embotam e esterilizam o pensamento. A presença da falácia ad hitlerum e congêneres no ambiente acadêmico é um desserviço imensurável e uma afronta às pesquisadoras e pesquisadores que levam a sério seu trabalho. Há que ressaltar que muitos propugnadores dessas teorias intocáveis não estão muito interessados na livre reflexão, mas em utilizá-las em prol de uma visão específica de mundo, nutrindo sua militância política. Desenha-se aí uma linha muito tênue entre teoria, que pode ser falseada, e doutrina política, geralmente avessa a críticas e com inclinação prosélita. É que não dá pra militar sem a certeza pelo o que se luta. O desejo e a certeza que o militante deve possuir em torno de suas premissas é inescapável. Não se milita com dúvida da causa. O que gera a impossibilidade de intercâmbio. A ciência se faz, ao contrário, questionando essas premissas o tempo todo. Daí os espaços que não somente devem tolerar o dissenso, o contraditório, a pluralidade de visões de mundo, a escuta, mas serem regidos por eles. São neles que experimentamos as possibilidades de crescimento reflexivo, onde as tensões teóricas se tornam terra fértil para o encontro daqueles que não estão cerrados em suas posições, mas abertos para a transformação. Capazes de cultivar o diálogo franco e aberto, buscando enxergar para além de seus próprios lugares e crenças, num movimento de transcendência – um sair de si em direção ao limite do outro.
Mas o recurso ad hitlerum é impenitente: instrumento nas mãos daqueles que não querem deixar se desorganizar e que geralmente vem acompanhado de um desprezo pelas ambivalências e complexidades humanas, o que leva quase sempre a dicotomizações e maniqueísmos chulos. Aqueles que o utilizam não são capazes de perceber que se tornam exemplo cabal do rótulo que visam colar em seus opositores. São exemplos vivos do paradigma da mente fascista, como ensinado por I. W. Charny, professor da Hebrew University of Jerusalem, em seu Fascism & democracy in the human mind: totalidade, soluções finais, perfeição; certeza absoluta, absolutismo, pensamento mágico; censura e supressão da informação; obediência, conformidade, intolerância à dissidência; superioridade, busca excessiva de poder e preconceito; exercício da violência em direção àqueles que dele difere e discorda.