Precisamos com urgência de um amplo debate sobre a criação de diretrizes éticas para a alocação de tratamento em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) durante a pandemia de COVID-19
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por Marco Azevedo, Darlei Dall’Agnol, Alcino Bonella e Marcelo de Araujo
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A pandemia da COVID-19 afeta a vida de praticamente todas as pessoas em nosso planeta. Para algumas, a pandemia será apenas um transtorno temporário. Para outras, porém, ela representa a morte de parentes e amigos, a perda de empregos ou falência de negócios. Os prejuízos, por enquanto, ainda são incalculáveis. A pandemia afeta também, de forma bastante dramática, o trabalho de profissionais de saúde.
Com o aumento exponencial de contaminações, o número de profissionais nos hospitais e emergências vai aos poucos se tornando insuficiente. Os leitos e equipamentos disponíveis nas UTIs vão ficando também cada vez mais escassos. Na impossibilidade de oferecer o mesmo grau de atenção e oportunidades de tratamento para todos os pacientes, profissionais de saúde se veem então diante de complicados dilemas morais. Qual critério deve ser adotado para a alocação de cuidados na UTI a partir do momento em que o sistema de saúde já não estiver mais em condição de atender a todos igualmente? A ordem de chegada? A gravidade da situação do paciente? A sua idade? Salvar o maior número de vidas possível? Sorteio? Essas são questões morais importantes e é de problemas como esses que se ocupa a ética ou filosofia moral.
O CFM (Conselho Federal de Medicina) tem um documento que estabelece diretrizes para a admissão e alta de pacientes em UTIs – a Resolução 2.156/2016. Esse documento estipula cinco tipos de prioridades. A prioridade número 1 é para pacientes “que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico”. Esta classificação é adequada para as situações de emergência no dia a dia dos hospitais e prontos-socorros. Mas durante uma pandemia ela pode se tornar insuficiente, pois em pouco tempo muitas pessoas podem ser classificadas como “prioridade 1”, sem que haja leitos para todas elas. É preciso então que haja um critério justo de desempate.
Em várias partes do mundo, profissionais da área médica, filósofos e filósofas, comitês de ética e instituições diversas vêm propondo diretrizes para uma alocação eticamente aceitável de recursos escassos entre pessoas diagnosticadas com COVID-19. No Brasil, por exemplo, a AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) publicou em 27 de março de 2020 um documento intitulado “Princípios de Triagem em Situações de Catástrofes e as Particularidades da Pandemia COVID-19”. Mais tarde, em 12 de abril, a AMIB publicou um documento ainda mais completo intitulado “Recomendações da Associação de Medicina Intensiva Brasileira para a Abordagem do COVID-19 em Medicina Intensiva”.
Consideramos, no entanto, que seria importante engajar a sociedade num debate mais amplo para a estipulação de diretrizes claras para uma distribuição eticamente bem informada de recursos médicos escassos durante a pandemia. Essas diretrizes precisam preencher alguns critérios. Em primeiro lugar, deve ficar claro que a proposta se aplica à situação excepcional pela qual estamos passando, e não à rotina normal de hospitais e prontos-socorros. Cabe aos órgãos competentes do governo declarar quando começa e quando termina esse período de excepcionalidade. Em segundo lugar, as diretrizes devem ser aplicadas de modo igual em todos os locais da União em que vigorar a excepcionalidade da situação. Em terceiro lugar, as diretrizes devem ser aplicadas igualmente a todos pacientes que precisam dos recursos escassos das UTIs, e não apenas aos pacientes diagnosticados com COVID-19. Durante a situação de excepcionalidade, os recursos escassos são necessários para salvar a vida das pessoas que precisam, por exemplo, de ventiladores mecânicos. Mas o simples fato de ter COVID-19, por si só, não confere a nenhum paciente nem mais nem menos prioridade sobre os demais pacientes.
Ainda assim, é inevitável que prioridades sejam estabelecidas. Daí a situação dramática que muitos profissionais de saúde terão de enfrentar no Brasil, tal como já vem ocorrendo, por exemplo, na Itália, Espanha, e Estados Unidos: profissionais de saúde terão de decidir, nas situações mais extremas, quem viverá e quem morrerá. Daí também a importância de um amplo debate público sobre os critérios que deverão ser adotados. Quaisquer que sejam os critérios, é fundamental que eles sejam aplicados de forma imparcial a todos os pacientes.
Durante a situação de excepcionalidade, as diretrizes devem ter como principal objetivo maximizar o salvamento de vidas individuais, de forma equitativa, por meio de uma utilização eficaz dos recursos imediatamente disponíveis. A proposta é “equitativa” porque todas as demandas serão igualmente consideradas. Ninguém será deixado de fora sem que a sua demanda seja comparada à demanda de outras pessoas que também precisam dos recursos das UTIs. Mas a natureza da situação colocada pela pandemia é tal que os recursos não poderão ser distribuídos igualmente entre todas as pessoas que necessitam de tratamento. Por essa razão, uma equipe de triagem terá de tomar a decisão sobre quem será admitido para tratamento na UTI, e quem não será admitido. Essa não é uma decisão fácil para as equipes de triagem. Deve ser inclusive do interesse dos profissionais de saúde que essa decisão, em última instância, possa ser compartilhada com a sociedade como um todo. O estabelecimento de diretrizes amplamente debatidas retira dos profissionais de saúde uma parte do peso dessas difíceis escolhas morais.
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As diretrizes devem conferir prioridade, em primeiro lugar, aos pacientes com maior probabilidade de recuperação. Nem a ordem de chegada nem a gravidade do estado do paciente serão consideradas relevantes para a equipe de triagem. A razão para adoção desse critério é simples: pacientes com maior chance de recuperação tendem a passar menos tempo na UTI. Consequentemente, um número maior de pacientes é beneficiado com a adoção desse critério.
Mas como seria possível decidir de modo objetivo quais pacientes têm mais probabilidade de recuperação? A comunidade médica já dispõe, para isso, de critérios como, por exemplo, o SOFA (Sequential Organ Failure Assessment Score), mSOFA, e APACHE II. Enquanto vigorar o período de excepcionalidade um critério que possa ser aplicado rapidamente talvez seja preferível. O qSOFA (ou quick SOFA) seria aqui uma opção. Pacientes eventualmente mais graves, mas com pior prognóstico de recuperação, terão, portanto, um nível de prioridade menor do que o de pacientes menos graves, mas com melhor prognóstico de recuperação.
Ainda assim, em função da excepcionalidade da situação, é possível que muitas pessoas tenham o mesmo prognóstico de recuperação, sem que haja recursos médicos disponíveis para todas elas. O que fazer nesses casos? Acreditamos que, nessas circunstâncias, profissionais de saúde, que adoeceram em consequência da exposição ao novo corona vírus, devam ter prioridade. Trata-se aqui, evidentemente, de uma prioridade concedida por razões meramente instrumentais: profissionais de saúde são necessários para a triagem de pacientes e para o tratamento das pessoas internadas.
Se ainda assim não for possível decidir quem será admitido para o tratamento na UTI, a ideia de “ciclos de vida” pode ser aqui evocada. Teriam prioridade, nesse caso, pessoas com até 40 anos de idade; em seguida, pessoas entre 41 e 75 anos; e num terceiro grupo estariam as pessoas com mais de 75 anos de idade. A ideia aqui é permitir que todas as pessoas tenham a oportunidade de passar por todos os ciclos que caracterizam uma vida humana com sentido, ao longo da qual passamos da infância para a adolescência, da adolescência à idade adulta e da idade adulta à senioridade. A pessoa mais idosa tem uma vida tão valiosa quanto a de uma pessoa jovem. Mas numa situação de excepcionalidade, quando outros critérios não forem mais suficientes para a equipe de triagem, a pessoa mais jovem terá prioridade para que ela também tenha a oportunidade de chegar à senioridade um dia. Contudo, se ainda assim for impossível decidir quem terá acesso aos recursos da UTI, dada a quantidade de pessoas precisando de tratamento, restará como última opção a possibilidade de um sorteio.
Seria desejável que os membros da equipe de triagem sejam diferentes dos membros que aturarão na UTI. Mas se o número de profissionais de saúde se tornar muito escasso, talvez essa exigência não possa ser atendida. É razoável que pacientes e familiares possam contestar as decisões tomadas pela equipe de triagem. Por outro lado, em situações de excepcionalidade, a existência de uma instância de recursos, por mais justa que seja, pode demandar tempo e esforços que poderiam ser aplicados de modo mais eficaz no salvamento de vidas.
Profissionais de saúde, com certeza, estarão sob enorme stress durante a pandemia. Mas ninguém poderá se concentrar na tarefa de salvar vidas, se tiver de trabalhar sob a sombra de eventuais processos judiciais, movidos por pacientes ou familiares. É por essa razão que seria também desejável o estabelecimento de proteção legal adequada para os profissionais de saúde em períodos de excepcionalidade. Com isso, evita-se o processo de judicialização da saúde em meio à pandemia.
O mais importante durante a crise que teremos pela frente é garantir o salvamento do maior número possível de vidas, com base em critérios eticamente aceitáveis e que tenham sido amplamente debatidos pela sociedade como um todo. Nosso objetivo aqui não foi estipular de modo definitivo esses critérios, mas o de iniciar um debate.
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Marco Azevedo é Professor de Ética (Unisinos) e Médico Emergencista (Hospital de Pronto Socorro/Porto Alegre).
Darlei Dall’Agnol é Professor Titular de Ética (UFSC) e Pesquisador do CNPq.
Alcino Bonella é Professor Titular de Ética (UFU) e Pesquisador do CNPq.
Marcelo de Araujo é Professor de Ética (UERJ) e Filosofia do Direito (UFRJ), e pesquisador do CNPq e da FAPERJ.
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Os autores são professores de filosofia com diversas publicações na área de ética, filosofia política, direito humanos, e bioética. Todos realizaram, em períodos diversos, estágios de pesquisa em bioética na Universidade de Oxford, no Reino Unido, com recursos da CAPES.