por Pedro Sette-Câmara
Ao entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1940, Manuel Bandeira era essencialmente um autor autopublicado — sua Lira dos Cinquent’Anos, que reunia seus quatro primeiros livros, era seu primeiro título publicado não por vaidade, nem por caridade. Machado de Assis, patrono e fundador dessa mesma Academia, publicou Quincas Borba ao longo de cinco anos numa revista de corte e costura. Recuando um pouco mais, José de Alencar gabava-se de ter vendido mil (sim, mil) exemplares de seu megasucesso O Guarani, publicado primeiro como folhetim no Diário do Rio de Janeiro (cujo diretor era o próprio Alencar).
Esses pequenos fatos apenas ilustram uma das desilusões que são o começo da maturidade: sem qualquer travo amargo, é preciso admitir que talento e mérito não trazem necessariamente reconhecimento, e que o reconhecimento vem com o esforço consciente. Obra nenhuma conquista seu lugar no cânon apenas por ser publicada. Se não conquista nem uma notinha na imprensa sem um trabalho de assessoria, por que conquistaria o reconhecimento das gerações presentes e futuras?
Fico topando com essa obviedade em meu trabalho como biógrafo de Bruno Tolentino e também como tradutor do livro Das Booty, escrito pelo homem que foi, aparentemente até o fim, o amor de sua vida: Simon Pringle.
O curioso é que, durante toda a tradução — o trabalho mais esmerado da minha vida —, eu tinha a certeza de que Das Booty seria o livro do verão. Numa frase, o enredo, verídico, é o seguinte: Bruno e alguns amigos (entre os quais um sujeito que teve poliomelite) transportam 130 quilos de haxixe do Marrocos à Inglaterra usando um barco e um Jaguar cor-de-rosa. Quem conheceu a persona exuberante de Bruno Tolentino o enxergaria facilmente no “Lúcio” do livro (Bruno era Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino), uma máquina espirituosa capaz de engabelar qualquer autoridade alfandegária com sua pose e seu domínio de idiomas, sua dificuldade em ser contrariado, e sua capacidade de aprender a navegar um barquinho de concreto numa tempestade no mediterrâneo. Simon capturou muito bem a ambiguidade em torno da pessoa de Bruno: ora verdadeiro gênio, ora verdadeiro charlatão — mas o charlatão mais charmoso do mundo.
Mais ainda, Simon deixou uma homenagem no livro ao que Bruno tinha de mais verdadeiramente genial, que era sua poesia. O livro está cravejado de citações, todas anotadas na tradução (menos uma, como vim a saber depois: perdi “os olhos não são sementes”). Se ler até Manuel Bandeira no Brasil dá uma leve sensação de underground, ler um poeta católico gay traficante poliglota contemporâneo, então, é o esoterismo do samizdat. Para quem passou anos maravilhado e intrigado com uma obra poética, Das Booty é um mapa de referências até então misteriosas.
Por exemplo, Tolentino dedicou A Imitação do Amanhecer, livro que considerava sua obra-prima, a um “Lord Glenalmond”. Glenalmond é o nome da escola secundária frequentada por Simon Pringle; Simon Pringle é o rapaz com quem o narrador de A Imitação do Amanhecer se deita tantas vezes.
Você pode achar que elementos biográficos são irrelevantes, mas tente ler Dante sem saber quem foi Beatrice Portinari, Petrarca sem saber quem foi Laura, Yeats sem saber quem foi Maud Gonne. Beatrice morreu aos 25 anos; mas Laura e Maud Gonne teriam apresentado visões nada canônicas de Petrarca (ex-seminarista tarado persegue mulher casada que o repele) e de Yeats (Gonne preferia soldados a escritores; aliás, Yeats chegou a pedir também a filha dela em casamento).
Agora, além de seu valor histórico e revelador, Das Booty é um livro divertido, ritmado, um verdadeiro page-turner. Um livro cômico de construção meticulosa. Para mim, o sucesso era mais do que certo: era inevitável. Eu também achava que talento e mérito logo se traduziriam em reconhecimento.
Eu não tinha a menor ideia do que poderia dar errado.
Duas vezes chegou-me a notícia de que Das Booty não vendia o que se esperava porque aparentemente Bruno Tolentino estaria passando por, digamos, uma canonização de pretensões mais próximas ao direito canônico. A primeira vez foi no Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada: Edson Filho, editor brasileiro do livro, foi quem mencionou essa espécie de censura moral: o augusto poeta católico não deveria ser visto como um traficante gay.
Mais recentemente, uma revista me procurou para uma entrevista — talvez eu devesse já ter explicado ao leitor deste artigo que trabalho numa biografia de Bruno Tolentino, e uma das perguntas tratava justamente da ausência de repercussão de Das Booty entre os próprios supostos leitores de Tolentino.
“Supostos” é um acréscimo meu mesmo. Alguém que leu A Imitação do Amanhecer, com vários poemas não apenas explicitamente homossexuais, mas que descrevem dois homens na cama, poderia se “escandalizar” com Das Booty, em que a consumação do amor entre Bruno e Simon resume-se a uma frase?
É por isso mesmo que eu nem consigo ver motivo para me indignar com um falso moralismo. Nesse caso, até o falso moralismo consegue falsear a si próprio — ou, como disse o próprio Tolentino no (amplamente ilegível, podemos admitir) prefácio de O mundo como Ideia, até as aparências já foram substituídas pelas parecências…
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Num diálogo no Facebook, o filósofo Olavo de Carvalho, de quem fui aluno, afirmou que Das Booty não seria a obra mais urgente sobre Bruno Tolentino. Talvez; mas, além de uma tese de mestrado já disponível no site da PUC-Rio, foi o que de mais substancial ganhamos até agora.
Para atar as duas pontas deste artigo, penso no lançamento da poesia completa de Alberto da Cunha Melo, que acontece nesta terça, 19/12, na Livraria da Vila, em São Paulo. Não cabe a mim reclamar de um Brasil que ainda não colocou Cunha Melo no pedestal em que eu acho — e eu acho mesmo — que ele deveria estar. Se eu realmente me preocupar com isso, cabe apenas a mim ler bem sua obra e escrever sobre ela, e não cobrar que outros façam isso.
No caso da obra de Bruno Tolentino, espero pagar algo de minha dívida pessoal com ele tentando descobrir quem é esse personagem dentro da nossa literatura. Porém, não posso reclamar de nenhuma contribuição sobre um personagem cuja importância é inversamente proporcional à bibliografia a seu respeito. Essa bibliografia é o lugar no cânon — e ele não é conquistado apenas pelo mérito.
Aliás, foi Ezra Pound ou T.S. Eliot quem disse que toda geração deveria refazer seu cânon. É isso que nos cabe: ler bem, escrever bem. Não reclamar dos outros. Isso eu deixo para quem se escandaliza com Das Booty em nome da Imitação do Amanhecer.