por Felipe Pimentel
Há um clichê psicológico de que nós tendemos a julgar e criticar as pessoas que possuem um traço nosso, uma espécie de ódio que alguém nos desperta porque revela alguma verdade que trazemos escondida. É uma realidade em muitos casos, mas acima de tudo uma pequena simplificação de algo mais interessante e profundo que pode nos ajudar a pensar sobre nós mesmos.
Existem casos interessantes e curiosos sobre esse clichê. Ocorre-me um belamente representado no celebre filme A Beleza Americana, no qual um dos personagens, ex-militar orgulhoso de sua participação na guerra do Vietnã, conservador e macho alfa, odeia homossexuais por seu próprio homossexualismo reprimido. É o caso mais simplório disso – mas não menos verdadeiro. Mas a estrutura dessa ideia traz algo ainda mais amplo.
Na nossa constituição subjetiva, há uma série de forças que trabalham conjuntamente para construir nossa personalidade. Elas normalmente nos custaram muito caro: são dívidas simbólicas que temos com quem nos cuidou, identificações com figuras de amparo ou afeto, repressões que controlam nossos instintos, proibições que interditam desejos que queremos recusar, traços de personalidade que mantemos para honrar a memória de alguém vivo ou morto. São forças atuantes inconscientemente, muitas vezes uma espécie de caminho afunilado que lenta e progressivamente cristaliza uma visão que temos de nós mesmos. Todas as vezes em que diferentes situações colocam a prova essas forças, nós repudiamos essas forças imediatamente: essas situações podem vir desde dentro – desejos que desviam delas e avançam rumo à superfície – ou desde fora – pessoas cujas ações ou personalidade escapam, justamente, das forças em questão.
Nesse último caso, que parece ser o do clichê acima citado, o que essas pessoas provocam é uma espécie de desmerecimento, ou mais, de deslegitimação daquelas forças que nos constituem e nos identificam. Cada vez em que elas agem fora dessas forças, é como se escarnecessem do tributo que pagamos a elas e, em última instância, como se elas mostrassem que essas forças não são necessárias como pensávamos. É aí que entra a raiva, o rancor e a contrariedade que nos causam.
Em primeiro lugar, porque com sua mera existência elas nos indicam que não é necessário pagar o preço que pagamos e que nossa personalidade não é tão consolidada quanto pensamos. Em segundo lugar, e decorrente disso, algo ainda mais grave, elas nos provocam uma espécie de exigência de que elas paguem o preço que pagamos.
Quer dizer, se para controlar meus impulsos agressivos eu tive que aderir a uma série de mandamentos morais, todo aquele que não adere a eles provoca-me imediatamente o ódio pelo livre trânsito de seus impulsos. Da mesma forma, serve para as forças que reprimem nossas eventuais impulsões homossexuais, o autocontrole do nosso autoritarismo, os nossos mais baixos instintos egoístas, os pruridos que controlam nossas performances para não sermos bobos, petulantes, exibidos, até mesmo mais espontâneos, leves e bem-sucedidos.
Isso não significa que essas pessoas revelam com seu traço que temos exatamente aquele traço reprimido. Muitas vezes não é exatamente o caso. Elas mais precisamente revelam que se não tivéssemos determinadas forças constituintes na nossa história nós seríamos assim.
Até aí, não temos muito a aprender. Essas forças são potentes e consolidadas. Mas não deixa de nos restar um alerta: sempre que alguém nos provoca alguma repulsa, alguma raiva aparentemente injustificada, podemos levantar as orelhas – talvez estejamos cobrando que ela pague o mesmo preço que pagamos para sermos quem somos. E nessa cobrança pode – ou não – esconder uma verdade sobre quem somos ou quem poderíamos ser.