por Ary Quintella
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Desde que cheguei à Malásia, no final de janeiro, ficou reforçada em mim uma indagação presente desde a adolescência, sobre quão parecida ou diferente a Ásia seria do Ocidente. Essa questão conduz a outra, que é a de entender se há algo que caracterize a Ásia, que a torne um continente diferente dos outros. O que faz da Ásia a Ásia?
Das janelas do meu apartamento em Kuala Lumpur, olho à minha volta e vejo só arranha-céus. Os bairros mais antigos ficam distantes, e não consigo ir lá com frequência. Recentemente, conversando com um amigo brasileiro que também mora na Malásia, comentei: “A cidade é tão ocidental. Qual é a diferença entre morar em Kuala Lumpur ou em São Paulo? O que a caracteriza como capital asiática? Até o parque perto de casa foi desenhado pelo Roberto Burle Marx”. Em tom paciente, ele respondeu: “Você mora no centro, que é novo e internacional. Mas há bairros mais característicos, que você aliás conhece. E fora de Kuala Lumpur o país fica decididamente asiático. Por que você não vai a Penang? Lá você perceberá que está na Ásia”.
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Penang é uma ilha na costa ocidental da Malásia, parte integrante do estado do mesmo nome, ao Norte do país, no Estreito de Malaca. Sua capital, George Town, foi declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO em 2008.
Como cheguei à Malásia no final de janeiro, e o confinamento foi decretado em março, proibindo inclusive as viagens internas, eu não pudera ainda sair da capital. Na verdade, esse amigo tampouco conhecia Penang. Sua família estava no exterior quando as fronteiras foram fechadas e não pôde até agora voltar. Minha companhia, me disse ele, seria bem-vinda na viagem que ele tencionava fazer.
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Aceitei a sugestão. Fomos no sábado e voltamos no domingo. O trem é moderno e confortável. O trajeto dura pouco mais de quatro horas, que passaram rapidamente. A paisagem, em alguns momentos, lembrou-me, talvez por saudades, a Mata Atlântica. Fiquei particularmente atento quando o trem atravessou o estado de Perak, cenário de um livro do romancista malásio Tash Aw, The Harmony Silk Factory, lançado em 2005.
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Ao chegar à estação de Butterworth, na parte continental do estado de Penang, é preciso ir à ilha de balsa ou de carro pela ponte. Optamos pela balsa. Em quinze minutos de travessia chega-se a George Town. A caminhada ao hotel foi um pulo.
Assim como Kuala Lumpur, mas numa escala menor, e por isso de maneira menos diluída, George Town é um microcosmo da Malásia. Lá convivem as três etnias do país, malaia, chinesa e indiana. Sai-se de um templo chinês, vira-se a esquina e vê-se um templo hindu ou uma mesquita. Escolho um restaurante indiano, mas aí vejo um chinês e um malaio ainda mais promissores. Em um passeio de poucos minutos, diferentes culturas se revelam. O centro histórico, de dimensões manejáveis, fascinante, mistura fachadas antigas com murais modernos, alguns deles obra do artista lituano Ernest Zacharevic. Mesmo as ruas mais pitorescas e estreitas são abertas ao trânsito, e o pedestre tem de evitar automóveis, bicicletas, motocicletas e riquixás.
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Por causa da pandemia, havia poucos quiosques de vendedores ambulantes de comida, algo por que George Town é famosa. São tantos os restaurantes e os quiosques, tão variada a oferta, que a ilha de Penang é considerada um centro gastronômico. O amigo com quem eu viajava provou ser um glutão. Direi apenas que almoçamos duas vezes no sábado; em uma delas, cada um de nós pediu, em um restaurante popular, um frango tandoori excepcional. No domingo, o café da manhã foi em um restaurante cantonês, simples e excelente. Os dim sum estavam perfeitos, assim como o bao de feijão vermelho, e o chá de jasmim. Duas horas depois, já estávamos almoçando uma laksa de peixe, típica de Penang.
Há muito a visitar em George Town, e consegui, em pouco mais de 24 horas, e apesar das refeições multiplicadas, conhecer muitos dos templos e casas-museu; mas passear pelas ruas já é uma descoberta. Com as fronteiras da Malásia fechadas, o turismo era interno, de nacionais ou de estrangeiros residentes no país. Vi poucos ocidentais.
Na volta, enquanto meu amigo ia ao bar do trem comprar mais um sanduíche, fiquei vendo pela janela do vagão o sol se pondo por trás dos lagos, das florestas, dos campos de arroz. A verdade é que não existe “a Ásia”. Existem, isto sim, países e povos em um continente denominado, desde a Antiguidade, Ásia. Mesmo cada país, ao longo do tempo, foi mudando. A China de hoje é a mesma da Dinastia Tang? A Índia que conhecemos é ainda a do Império Maurya? Não são, mas ao mesmo tempo também são. O Brasil onde crescemos não é mais o da Colônia, mas ainda é um pouco; a França de 2020 não é mais a de 1285, mas ao mesmo tempo ainda tem algo dela.
Cada país é a soma das suas fases históricas, e das etapas de sua evolução cultural, assim como cada ser humano carrega em si tudo o que já viveu.
O estrangeiro que vai a São Paulo fica se perguntando onde estão as particularidades brasileiras que esperava? Ou percebe-as a todo momento? Querer “sentir” que estou na Ásia é como comer o melhor acarajé no Rio mas achar que na Bahia ele seria melhor, visitar Ouro Preto e lamentar não estar em Salvador, estar apaixonado e ficar me perguntando se um dia vou amar. O maior erro é passar pela experiência sem valorizá-la, na tentativa de procurar um sentido ou uma sensação específicos.
Com o trem chegando de volta a Kuala Lumpur, lembrei que o país usa, como propaganda turística, a frase “Malaysia, Truly Asia”. Na capital, o trabalho, os compromissos, o dia a dia, o confinamento social de meses, juntos, haviam feito com que eu me esquecesse de uma importante particularidade malásia. Ao ser um microcosmo do país, Penang me fizera recordar essa verdade maior: a Malásia é um resumo da Ásia, é a sua condensação.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
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