por Felipe Pimentel
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A sociedade brasileira claramente passa por um momento conturbado nos últimos dez anos, e poucos intérpretes têm conseguido dar conta desse mal-estar. As tentativas de explicação para fenômenos como o populismo de esquerda e direita, para a polarização política e social exacerbada, para os embates familiares e cívicos sobre narrativas ideológicas, bem como para o vai-e-vem partidário e eleitoral são poucas, frágeis e, quando muito, parciais. Em face disso, cabe um olhar, desde dentro e desde fora, para a sociedade brasileira que jogue alguma luz sobre alguns fenômenos desta última década. Para tal, vamos perpassar alguns tópicos importantes sobre a sociedade brasileira, analisando os respectivos dados e índices sobre eles. Gostaria de apresentar três binômios que correlacionam características de nossa vida social, para, ao final, extrair alguma conclusão.
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Corrupção e confiança
A corrupção é um assunto antigo no país, mas será que olhamos para ela com a atenção necessária? É preciso dimensioná-la adequadamente. O quando a corrupção está entranhada na sociedade brasileira? Está em um índice baixo, intermediário ou alto em relação ao resto do mundo? Olhemos os dados.
Segundo a Transparency International, o Brasil está entre os 10 países com as mais altas taxas de percepção de corrupção no setor público por cidadãos, acompanhado de Rússia, Venezuela e México, entre outros. Os mapas a seguir conseguem dimensionar o ponto. No Mundo:
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E na América do Sul:
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No que respeita ao tipo de corrupção, o país habita uma faixa intermediária de pedidos de suborno no setor público. E este índice repete-se no setor privado. Quando avaliamos as instituições que são vistas como corruptas no Brasil, nós temos assinaladas como as mais corruptas pelos cidadãos o Legislativo (72% dos respondentes afirmam que a maioria ou mesmo todos os membros da instituição são corruptos), o Judiciário (50%) e cargos do governo (46%); e (novamente temos um índice para o setor privado), dado que executivos e empresários são apontados como corruptos por 35% dos respondentes. Veja o gráfico:
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Qual o impacto social da corrupção endêmica num país? O principal impacto é o fomento da desconfiança mútua, entre cidadãos e governo e também entre os próprios cidadãos. Se avançamos para os índices nestes assuntos podemos aferir isso.
No que respeita à confiança do cidadão brasileiros no governo, habitamos o top 3 da descrença, pois menos de 20% dos respondentes afirmam confiar bastante ou um pouco no seu governo. O gráfico é impactante:
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Em pesquisa de longa duração (1993-2014) do World Values Survey, podemos ver o país nas piores posições, acompanhado da Colômbia. Ambos têm menos de 10% das pessoas confirmando que a maioria das pessoas é digna de confiança (o dado comparativo pode ser os EUA [30%] ou a Suécia [mais de 60%]). A seguir, os dados:
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A confiança possui um valor que lhe é intrínseco, mas também um valor instrumental. Ela é importante para a cooperação, para a promessa e para o planejamento de longo prazo (Carolyn Mcleod, 2020). Como alguns autores colocam, a confiança é inclusive fundamental para o conhecimento moral e científico, por exemplo, situações que “incluem o fato científico que a terra é redonda, ou o fato moral que a opressão de grupos sociais diferentes do nosso pode ser severa (Jones, 1999), e o fato trivial que se nasceu em tal dia (Webb, 1993). Quer dizer, a confiança mútua é fundamental para uma sociedade que trabalha conjuntamente. A interpretação de Fukuyama de que sociedades “altamente confiáveis” têm economias e redes sociais mais fortes do que sociedades de baixa confiabilidade é confirmada pelos dados (Fukuyama, 1995). Não suficiente, pesquisas recentes atestam que a confiança nas forças de segurança e de justiça é mais importante do que o medo da punição no respeito à lei — lembremos que a taxa de presos sem julgamento no Brasil situa-se em torno de 30 a 40% da população carcerária. Conforme Bo Rothstein e Dietlind Stolle (em The Quality of Government and Social Capital: A Theory of Political Institutions and Generalized Trust): Confiança floresce mais em sociedade com burocracias efetivas, imparciais e justas no nível mais básico.
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O binômio: Insegurança e violência—anestesia e risco
O segundo ponto fundamental e marcante a ser analisado sobre nossa sociedade trata da segurança e da violência. O Brasil possui uma determinada imagem como um país sem guerras, possuidor de um povo afável e amigável. Se olhamos os dados, eles nos desdizem: o Brasil é uma sociedade profundamente violenta nos mais diferentes aspectos. Segundo pesquisas da ONU, cujos dados são fornecidos pelos próprios governos nacionais, entre 1990 e 2018, o Brasil possui uma taxa 5 vezes maior do que a média mundial em homicídios. O gráfico a seguir mostra a diferença:
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Quando comparamos o Brasil com países com perfil semelhante, como a África do Sul e a Rússia, veremos que ele possui praticamente o dobro da taxa em relação ao primeiro e o triplo da Rússia, seus parceiros de BRICS. Segundo dados de Vania Ceccato no Journal Criminal Justice Review, o número de homicídios cresceu no Brasil, seja no campo, seja na cidade. Os países vizinhos da América do Sul, com exceção da Colômbia e da Venezuela, praticamente em guerra civil, costumam ter taxas de homicídio 6 vezes menor que a brasileira.
E se ampliarmos a análise dos homicídios para o sentimento de se sentir seguro ao caminhar à noite sozinho, segundo dados da OCDE, novamente o país possui o pior índice: somente 35% da população sente-se segura. O país ocupa a posição 128 dos países mais seguros do mundo no Global Peace Index (ao lado de países como Burundi, Mianmar, Índia, Israel e Palestina, Burkina Faso) e na América do Sul, estando no topo do índice de insegurança segundo o Global Economy Index.
Se ampliarmos a leitura para outras formas de morte violenta, veremos o mesmo quadro. Por exemplo, na morte violenta no trânsito “é estimado que anualmente cerca de 37 mil pessoas morram e outras 180 mil sejam hospitalizadas no Brasil devido a acidentes de trânsito” . Se adicionarmos os dados de violência doméstica, o país também flutua nas alturas, com dados como 30% das mulheres confirmam já terem sofrido algum tipo de violência doméstica ao longo da vida.
Todos os dados confirmam que pertencer a classes socialmente mais vulneráveis é normalmente quatro vezes mais perigoso no Brasil. Deste modo, há uma convivência constante da “base da pirâmide” com a violência urbana e rural no Brasil. Se aí incluirmos dados raciais a diferença seguirá astronômica para todos os índices (vulnerabilidade social, risco, insegurança e até mesmo nas mortes diante da pandemia).
Porém, para alarmar mais ainda o cenário, a insegurança e a violência são tão disseminadas que terminam alcançando também as classes “mais altas” na pirâmide. As classes médias e altas no Brasil, ainda que muito mais “protegidas”, lidam constantemente com essa carga de insegurança. Um efeito disso é a ampliação do mercado da segurança privada, contratado por essas classes no Brasil. Sabemos que o número de pessoas ocupadas com a atividade de vigilância cresceu mais de 100% na década de 1980 (PNAD) e ainda mais nas décadas seguintes, ultrapassando 1 milhão de trabalhadores no país. Os dados da Polícia Federal mostram isso com clareza:
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Atualmente, o Brasil é um dos países com o maior valor de investimentos em serviços de segurança máxima condominial. Como podemos ler no Washington Post: “Em 2017, a indústria da segurança privada no Brasil teve, por oito anos, um crescimento anual de 15 a 20%, com vendas anuais atraindo 26 bilhões, de acordo com o Departamento de Comércio Americano. O número de guardas privados sobrepõe-se ao de policiais na fração de 5 para 1”. Outro dado que confirma esse mercado aponta que o Brasil tem a maior frota de carros blindados do mundo, como atesta reportagem do Valor.
O que esses dados todos apontam? Que, disseminadamente dentro das classes sociais no Brasil, os cidadãos, na zona rural e urbana, em diferentes níveis, estarão expostos cotidianamente a riscos e à violência, e, em diferentes paisagens, cercados por uma estrutura militar de repressão ou proteção. Essa exposição cria um ambiente de constante risco e, psicológica e socialmente falando, de anestesia diante da ameaça.
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Instabilidade econômica e outros problemas do Brasil
Segundo o relatório do Banco Mundial, o Brasil é um país cujo crescimento em produtividade não repercute em redução da desigualdade socioeconômica. Não suficiente, também é um país cuja estabilidade econômica é incerta. Isto significa que a estabilidade econômica em um certo sentido é inexistente em praticamente todas as classes. Excetuando-se o topo da pirâmide econômica brasileira, e aqui falamos do 1% mais rico, todo o resto da pirâmide, evidentemente em níveis crescentes de vulnerabilidade quanto mais se desce nela, padecem de riscos de estabilidade financeira em virtude das flutuações da economia nacional (a estabilidade oriunda do Plano Real conta somente uma geração). Como afirma pesquisa do CGAP: “Uma das coisas que percebemos em nossa pesquisa é que a renda familiar de famílias de baixa renda é extremamente volátil. A renda flutua significativamente de mês a mês, especialmente para famílias que se amparam em atividades “freelancer” ou emprego informal (bicos). Por exemplo, a tabela abaixo acompanha o nível de renda de uma família durante a pesquisa. A renda flutuou tão significativamente que esta família caiu em quatro categorias distintas de renda em um período de seis meses, transitando de extremamente pobre para classe média baixa.”
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Ao mesmo tempo, é sabido que o Brasil possui uma das piores taxas de desigualdade social do mundo. Quando avaliamos o mapa-múndi neste sentido, segundo dados do Banco Mundial, através do índice de Gini, o país só perde para a África do Sul. E no mapa da América Latina, o país praticamente liderou inconteste este ranking desde os anos 1980. O mapa a seguir atesta:
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E na desigualdade de renda, no longo prazo, temos:
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O país também está no topo da concentração de renda, comparativamente a outros países, pois os dados demonstram que no Brasil os 5% mais ricos detêm a mesma riqueza que os 95% restantes da população. O país está normalmente entre os países com altas taxas de imobilismo social (segundo dados do Fórum Econômico Mundial, as classes mais pobres brasileiras levariam nove gerações para alcançar a renda média brasileira; em países desenvolvidos, esse número cai para duas gerações) e instabilidade econômica ao mesmo tempo. Se adicionarmos dados de vulnerabilidade social, para citarmos somente algo absolutamente básico, os índices também são impactantes: segundo o Trata Brasil, praticamente metade da população brasileira não possui acesso à coleta de esgoto adequada, e cerca de 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada; e segundo o projeto Habitat, um quarto da população vive em condições inadequadas.
Entre outras questões, os dados apontam que a instabilidade econômica do Brasil favorece muitas vezes episódios de mobilidade social descendente ou, no mínimo, flutuante.
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Alguns apontamentos e direcionamentos para possíveis interpretações e ações políticas e sociais
Os dados demonstram que estes binômios correlatos alimentam-se mutuamente: a corrupção e a desconfiança cívica; a insegurança e a anestesia social (no qual se inclui a convivência com o risco); e a instabilidade econômica com a possibilidade de mobilidade social descendente.
O que podemos extrair disso?
Uma sociedade cujos cidadãos desconfiam reciprocamente uns dos outros, que está anestesiada em um ambiente de risco constante e que convive com uma possibilidade permanente de mobilidade social descendente tenderá a ser uma sociedade, em primeiro lugar, refratária à mudança, isto é, uma sociedade que vê a transformação social como algo ameaçador. Uma sociedade insegura neste nível deseja segurança institucional e real, mas repele transformação social e econômica, pois não se sabe como tal transformação lhe afetará em cada caso. Esta será uma sociedade refratária à mudança, pois, independentemente do modo como se vive hoje, a ameaça futura é tão variada, real e disseminada, que a realidade atual é preferível a qualquer mudança. A realidade atual, não só nos privilégios, mas inclusive nas suas vulnerabilidades (a saber, determinados lugares postos, privilégios, direitos e deveres, riscos, inseguranças e instabilidades) é, arriscada, mas habitual, conhecida. Uma alteração de nível nos seus riscos é uma mudança qualitativa trivial, o que pode ameaçar o funcionamento dessa sociedade é uma alteração nas suas posições. Parece contraintuitivo, mas é o que ocorre: alterações na intensidade de como esta sociedade funciona (mais risco, mais desigualdade, mais violência) não a ameaçam, mas alterações nas posições (mobilidade social ou alterações estruturais) e na sua lógica de funcionamento sim; de modo que transformações sociais são consideradas indesejáveis, pois elas instabilizam os lugares. É o que mostra a psicologia social: quanto mais disseminada está a insegurança em uma sociedade, mais ela rechaça qualquer mudança e qualquer alternativa que pareça querer transformar muito o seu funcionamento. Ela pode inclusive alegar desejar alguma mudança, mas a mudança será uma mera maquiagem, um discurso vazio ou uma falsa mudança (isto é, um retrocesso). Isto explica uma certa tonalidade, partidária ou não, contrária a transformações bruscas ou consistentes. Também explica uma tendência histórica praticamente singular do Brasil, a saber, de ser um país no qual revoluções e rupturas políticas acontecem para manter as coisas como estão e não para modificá-las. Do mesmo modo, também aponta a necessidade de propostas políticas e sociais supostamente mais radicais terem de moderar o seu discurso e prática em algo mais estável. A própria tendência de protagonismo do centrão é, nesse sentido, mais um fenômeno dessa motivação, cujo histórico no país é antigo, ou todas as suas formas como os acordos fisiológicos, que remontam ao início da história como nação independente.
Por outro lado, essas três questões que subjazem a sociedade brasileira — corrupção, insegurança lato sensu e vulnerabilidade socioeconômica — possuem diferentes níveis de adesão no Brasil. A corrupção e a insegurança atingiram um patamar de anestesia já na população, porém propostas de resolvê-las, ainda que de modo ingênuo ou até mesmo cínico, podem ganhar adesão da população, pois são males subterrâneos na sociedade. Agora, a vulnerabilidade socioeconômica costuma eriçar a sociedade, pois a ameaça de penúria ou queda brusca de nível socioeconômico é muito grande no Brasil. Deste modo, mexer na corrupção (que se supõe envolver os altos políticos) e na insegurança (que se supõe envolver os criminosos) é um modo de atacar problemas importantes do Brasil sem afetar cada indivíduo em si (que se vê alheio desses processos — nem político, nem criminoso). Mas mexer na estrutura social e econômica bagunça os lugares postos e age sobre cada indivíduo em si. Fica a questão: queremos mudar o país somente quando a causa do problema está longe de nós?
Deste modo, a mudança que uma sociedade com tais características deseja é uma mudança que altere somente algumas das causas aqui apresentadas, em especial, a insegurança diante (i) do risco generalizado; (ii) da violência; (iii) do cidadão próximo; (iv) institucional. Assim, alternativas políticas que proponham soluções, ainda que milagrosas e falsas, para esses problemas tenderão a ganhar atenção e adesão da população, pois estarão falando para anseios profundos da sociedade, mas sem ameaçá-la com alterações bruscas e imprevisíveis. Desse modo, podemos compreender o entusiasmo de grande parte da sociedade brasileira com a operação Lava-Jato, que prometia limpar o país de uma destas causas acima apresentadas, a corrupção e a insegurança institucional.
Isso aponta também que propostas políticas que falarem em alterar a sociedade, do ponto de vista social e econômico, tenderão a ser menos bem recebidas. Propostas que falarem em trazer maior segurança à sociedade brasileira (pode ser a segurança institucional — como, por exemplo, uma luta incontrolável contra a corrupção — ou a segurança real — como, por exemplo, uma visão de combate ao crime mais direta e bruta) tendem a ser mais bem recebidas. Propostas que falam que há um determinado risco novo em curso não serão levadas a sério, a não ser que sejam ameaças que transformem a sociedade. Desse modo, um vírus real não tende a ser visto por grande parte da sociedade como algo paralisante ou relevante (é só mais um risco entre outros), enquanto uma ameaça imaginária de uma revolução na sociedade é mais ameaçadora e digna de ser combatida, como o comunismo. A sociedade brasileira tenderá a desprezar (e repelir) alterações sociais (e todos os representantes dela), pois elas ameaçam os lugares postos — sejam eles privilégios [e desfavorecimentos!] econômicos, sociais e institucionais. Isso explica, inclusive, o exagerado repúdio de grande parte das classes médias brasileiras, a qualquer tentativa de mudança social e econômica, que ela costuma ver como uma ameaça pessoal. Quer dizer, não se trata do fascismo de massas, que sempre parece não dar conta do problema específico do Brasil, mas de uma característica singular de nossa sociedade, que caminha na trilha do imobilismo e da reação à mudança.
Se o caminho que parte da sociedade brasileira deseja — a saber, a segurança — é o certo para a transformação social do país, não sabemos. Certamente os dados mostram que mexer nestes pontos será necessário para mexer nas estruturas da sociedade. Porém, é fundamental, no mundo em que vivemos, mexer também nas estruturas sociais e econômicas que também cumprem o seu papel no contexto inteiro. Mas estas últimas sofrem este rechaço de grande parte da sociedade brasileira pelos fatores elencados. Qual o caminho? Seria possível trabalhar a segurança lato sensu de modo consistente sem mexer na estrutura social? Seria possível fasear este processo no Brasil? Ou mexer na segurança como um todo em uma sociedade profundamente desigual do ponto de vista social e econômico terminaria por reforçar institucionalmente esta mesma desigualdade? A história costuma apontar nesse sentido. Transformações institucionais, jurídicas e militares tendem a reforçar os lugares postos. Mas se o caminho das mudanças sociais e econômicas é rechaçado pelas mais diversas razões, como fazê-lo? A despeito das intenções sociais? Seria preciso um trabalho de “conscientização” ou “sensibilização”? Como sensibilizar uma sociedade anestesiada?….
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