por Ary Quintella
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No último sábado de agosto, um amigo ofereceu-se para me mostrar Fraser’s Hill, antigo local de vilegiatura dos britânicos antes da independência da Malásia. Situada a cem quilômetros de Kuala Lumpur e a 1.500 metros acima do nível do mar, a cidadezinha de mil habitantes é conhecida pelo seu clima ameno. Fraser’s Hill foi inaugurada em 1922, em um local onde anteriormente houvera uma mina de estanho.
Entrando no carro como passageiro, eu estava com a animação característica de quem vai explorar um lugar novo. Havia a sensação de que algo diferente, surpreendente me esperava. Supunha estar prestes a conhecer uma pequena Petrópolis. As semelhanças existem, sendo ambas cidades criadas nas montanhas para permitir às elites das respectivas capitais fugirem do calor. Patrioticamente, controlei meu entusiasmo: em Fraser’s Hill não haveria avenida Koeller e nem palácio do Grão-Pará.
Saímos da capital e de seus subúrbios por uma estrada nova e excelente — como costumam ser as estradas na Malásia. Antes de começar a subir as montanhas há a primeira atração, um lago artificial, fruto de uma barragem.
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Logo em seguida, pega-se uma estrada secundária. Acreditei estar subindo a Serra do Mar, e pensei novamente em Petrópolis. O caminho, de apenas uma pista para cada sentido, margeia as montanhas cobertas de mata tropical. Em alguns trechos há, do lado oposto, o precipício. Meu amigo, suíço que mora há décadas na Malásia, comentou que uma das curvas pelas quais passávamos fora o cenário do assassinato, em 1951, de Sir Henry Gurney, Alto Comissário — ou seja, Governador — britânico naquilo que era ainda uma colônia, com o nome de Federação Malaia. Gurney foi morto pelo braço armado do partido comunista malaio, que pleiteava a independência. Alude-se a seu assassinato em um filme de 2019, a que assisti em fevereiro, pouco depois de chegar a Kuala Lumpur, no universo distante em que ir ao cinema era uma atividade normal e sem riscos. O filme, The Garden of Evening Mists, do diretor taiwanês Tom Lin Shu-yu e falado em inglês, é belíssimo e baseado em romance homônimo do escritor malásio Tan Twan Eng. O enredo se passa nas décadas de 1940 e 1950, primeiro durante a ocupação japonesa e depois durante o período de atividade da guerrilha comunista e da independência. Aprendi bastante, ao assisti-lo, sobre a história da Malásia. Mas o filme, em sua essência, é sobre o mais irresistível dos temas, um amor impossível.
A cidade de Fraser’s Hill, em si, é pouco mais do que uma praça, onde as construções são baixas, em pedra escura; lembra vagamente alguma localidade isolada da Escócia. Tudo aquilo pareceu-me fora da realidade malásia que eu conhecera até então, inclusive porque a temperatura lá em cima de fato cai de forma significativa.
Fora o centro da cidade, as casas em Fraser’s Hill ficam esparramadas pelas montanhas, que são contornadas por caminhos estreitos, ondulantes, de rica vegetação, com ar misterioso — um amigo a quem posteriormente enviei fotos do passeio considerou-os “parecidos com os de contos de fadas”. A essa altura, eu estava já me perguntando se as curvas não me lembravam mais a serra em Sintra do que a de Petrópolis. As casas são isoladas umas das outras, grandes distâncias podem separá-las, a mata esconde tudo, havia um pouco de neblina e umidade, a estrada tortuosa estava deserta.
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Eu fizera reserva, para o almoço, no terraço de um hotel-restaurante em estilo Tudor, shakespeareanamente denominado Ye Olde Smokehouse. Frente a mim, havia um forte declive, lá embaixo um vale, e ao longe as montanhas nubladas. Do meu lado esquerdo, um jardim de inspiração inglesa, inclusive com roseiras, embora rodeado de árvores tropicais. Do lado direito, o hotel, com ar de albergue rural na Inglaterra. Do cardápio, escolhi a torta folhada de frango e cogumelo, que veio acompanhada de legumes cozidos. Pensei que aquilo parecia estar a anos-luz da agitação, do calor da capital. A comida também parecia distante das cozinhas malásia, indiana, chinesa ou japonesa que povoam meu cotidiano em Kuala Lumpur. Centro gastronômico importante, na capital encontra-se todo tipo de restaurante, inclusive uma boa churrascaria brasileira.
Quando pensamos nas várias culturas presentes na Malásia, pensamos sobretudo na malaia, na chinesa, na indiana e esquecemos com facilidade a inglesa. No entanto, ela está presente em toda parte, como prova o sistema político, que adota, como acontece em várias outras ex-colônias britânicas, aspectos do parlamentarismo de estilo Westminster. Aquela refeição, o clima, o jardim traziam à minha memória lembranças de passeios antiquíssimos feitos no campo inglês, no final da adolescência. À torta cremosa de frango e cogumelo, seguiu-se um crumble de maçã.
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Logo, porém, a sensação de familiaridade foi substituída por outra de estranheza.
Duas semanas antes, voltando de uma reunião de trabalho no estado de Perak, no norte do país, eu vira por fora uma propriedade construída no início do século XX, no meio do nada, por um escocês, para servir de sede de sua plantação de seringueiras. Conhecida como Kellie’s Castle, lembrando uma casa nobre no Reino Unido, semi-abandonada, com uma ala em ruínas ou nunca terminada, a propriedade é uma curiosa atração turística, resquício, como Fraser’s Hill, do colonialismo britânico. Os malásios convivem bem com esse passado, não parecem viver traumatizados pela lembrança da presença britânica em seu território.
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Sentado no terraço do Ye Olde Smokehouse, devorando a chicken and mushroom pie e o apple crumble, comecei porém a ter uma impressão de exotismo. Aquele cardápio inglês, em uma construção em estilo Tudor, ao lado de um jardim de rosas, em resumo aquele pedaço de Europa implantado em solo malásio parecia inverossímil. Lembrei que, dois anos antes, passeando uma tarde com minha filha por um mercado de rua em Bruxelas, eu vira uma barraca mantida por um peruano vendendo caldo de cana e pastel de queijo. Aqueles, sem dúvida, foram o caldo de cana e o pastel de queijo mais deliciosos que já tomei e comi na vida, seu sabor tendo sido incrementado pelo aspecto totalmente inusitado da situação.
Um acarajé vendido por uma baiana em trajes típicos em uma barraquinha de rua em Estocolmo, debaixo da neve, talvez fosse uma realidade menos inesperada e exótica do que a impressão causada em mim, juntos, pela refeição tão inglesa — na verdade, mais saborosa do que seria possível encontrar em um pub no interior da Inglaterra — e aquele ambiente em estilo Tudor no interior da Malásia.
De noite, de volta a Kuala Lumpur, foi um reconforto poder olhar da minha janela para as tão familiares torres Petronas. Percebi que, para o café da manhã do dia seguinte, domingo, o que eu queria mesmo era um bao de feijão vermelho. Acabei não conseguindo. A torta de frango e cogumelo fora mais fácil de achar.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
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