por Ary Quintella
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O barco vinha da China, em direção ao Golfo Pérsico. Carregava mais de 60.000 peças de cerâmica e também objetos de ouro e prata. Deveria ter passado pelo Estreito de Singapura e depois pelo Estreito de Malaca. Por razões desconhecidas, naufragou um pouco mais ao sul do trajeto habitual. O Museu de Civilizações Asiáticas, em Singapura, expõe, logo nas primeiras salas, os artefatos sobreviventes do naufrágio, ocorrido no século IX no Mar de Java, perto de Sumatra.
Há mais de 1.100 anos, o Sudeste asiático já era uma rota comercial importante, servindo de ligação entre a China e o mundo árabe.
O naufrágio da era Tang ocupou meu espírito quando, recentemente, passei um sábado e um domingo na ilha de Langkawi, na costa ocidental da Malásia, ao Norte, no Mar de Andaman, quase na divisa marítima com a Tailândia.
De início, hesitei em viajar. O fechamento das fronteiras na Malásia, em Singapura e na União Europeia torna imprevisível quando poderei rever minha mulher e minha filha. Langkawi era um passeio que eu pretendia fazer com elas.
Por estar de luto é que me decidi. Minha tia — também madrinha — morreu em Juiz de Fora, de Covid-19. Um dia, ela tossiu. Parecia bem. Os sintomas eram leves. De repente, precisou ir para a UTI. Logo antes, no hospital, gravou um áudio para a família. A voz está perfeitamente firme e segura. Poucos dias depois, morreria, desacordada e sozinha. Entristecido, preocupei-me também com a reação de minha mãe, no Rio de Janeiro, vendo partir dessa maneira a única irmã. Quis então esquecer o passado e o presente. Decidi pegar o avião para Langkawi. Optei, porém, por não viajar sozinho. Seria insuportavelmente triste. Escolhi a melhor das companhias.
Poucos dias antes, eu comprara uma edição recente da tradução de 1821, para o inglês, de Os Anais Malaios, no original Sejarah Melayu. Essa versão usa um manuscrito compilado em 1612, que pertenceu a Sir Thomas Stamford Raffles. Administrador colonial britânico no início do século XIX, Raffles é célebre em Singapura. Quem o defende argumenta que foi ele quem deu o primeiro impulso para a prosperidade da ilha. Seus detratores lembram que ele foi um agente do colonialismo; alguns pedem a retirada de suas duas estátuas na cidade-estado.
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Os Anais, em suas 200 páginas, são uma epopeia do povo malaio; uma crônica sobre o Sultanato de Malaca, fundado em torno ao ano 1400, eliminado pela invasão portuguesa em 1511 e que, no seu apogeu, no final do século XV, foi uma potência regional; uma genealogia, às vezes fantasiosa, dos soberanos; narrativas sobre intrigas em diversas cortes do Sudeste asiático; relatos de guerras e de embaixadas; e veículo de transmissão de antigas lendas.
Foi essa a companhia que escolhi para ir comigo a Langkawi. Quando não estava nadando no mar, eu ficava na areia, grudado nos Sejarah Melayu. No horizonte, via ilhas montanhosas, e esperava que surgissem na enseada, a qualquer momento, navios levando personagens do livro.
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Já na primeira frase, somos introduzidos em um conto de fadas. Um rei, “Raja Secander”, “wished to see the rising of the sun“, o que o leva à Índia. “Secander” é uma corruptela de “Iskander”, nome dado no Oriente a Alexandre, o Grande. Para falar da grandiosidade do Sultanato de Malaca, nada melhor do que atribuir a seus soberanos uma origem ilustríssima. Depois de muitas aventuras, os descendentes de Raja Secander viram reis de Singapura. Lá permanecem por algumas gerações. Em 1398, Singapura é invadida por um povo da ilha de Java, e seu último rei, Raja Secander Shah, conhecido pelos historiadores como Parameswara, foge para a Península Malaia e funda Malaca.
A China é presença frequente nos Anais Malaios. Um imperador chinês, no seculo XIII, envia embaixadores a Palembang, em Sumatra, pedir a mão de uma princesa malaia local, descendente de Raja Secander. O pai da princesa aceita, após ouvir de seus ministros: “there is no greater prince than the Raja of China, nor is there any country greater than the land of China“. No século XV, um imperador da dinastia Ming envia sua filha como noiva para o sultão de Malaca. Parece ser fato que Mansur Shah, que reinou de 1459 a 1477, casou-se com uma chinesa, mas a tese de que ela era filha do imperador é hoje desacreditada.
Nitidamente fantasioso é o relato de que o sogro imperial de Mansur Shah, muito doente, ouve dos médicos que só se curará quando beber da água com que o sultão tiver se lavado. Envia emissários a Malaca buscar a água. Bebe-a e se cura. O objetivo do autor é convencer-nos do prestígio de que gozavam os descendentes de Raja Secander, de seu poder, que até a China respeitava. Sabe-se que, dos nove sultões, três visitaram a China, dois deles em mais de uma ocasião. Há registros chineses de que, durante os cento e poucos anos da existência do Sultanato de Malaca, os dois países mantiveram 57 contatos diplomáticos.
Os Sejarah Melayu nos mostram, como os restos do naufrágio da era Tang em Singapura, a importância da navegação e do comércio para os povos espalhados pelo Sudeste asiático. Sobre Malaca, somos informados de que “mercadores de muitas nacionalidades a frequentavam” — seu papel comercial, dominando o Estreito, foi aliás a razão de sua queda, ao despertar a cobiça dos portugueses. Toda hora, há descrições de navios e de viagens marítimas. Monarcas perdem um reino para invasores vindos do mar, fogem de barco e fundam outro reino em alguma ilha ou na Península. Ouve-se falar dos encantos de uma princesa distante e viaja-se pelo mar para vê-la. Um príncipe deseja conhecer um reino submarino e manda construir para esse fim uma caixa de vidro, dentro da qual mergulha. Estamos aí, claramente, no universo das Mil e Uma Noites.
Tudo porém tem um fim, mesmo os poderosos sultanatos, e chega-se à descrição, nas últimas páginas, de como os portugueses, comandados por Afonso de Albuquerque, aparecem com seus navios e conquistam Malaca. Somos informados até do nome — Juru Damang — do elefante montado pelo último sultão, em seus derradeiros momentos como soberano, para lutar contra os invasores.
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No domingo à noite, voltei para Kuala Lumpur. O voo de apenas uma hora pareceu-me longo. Depois de nadar no Mar de Andaman e acompanhar as peripécias de tantos personagens por diversos pontos do Sudeste asiático, o espaço restrito da cabine e a máscara obrigatória pareceram-me prisões. A epopeia, no fundo marítima, do povo malaio trouxera uma brisa de aventuras, mistério e liberdade. Olhando o Mar de Andaman e suas ilhas, sonhando com a encarnação asiática de Alexandre, o Grande, e o esplendor de Malaca, eu esquecera, por dois dias, o luto e a pandemia.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
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