por Ary Quintella
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Há em Kuala Lumpur um bairro chinês que foi, durante décadas, já na época da colonização britânica, o centro comercial da cidade. Durante as poucas semanas entre minha chegada à capital, em janeiro do ano passado, e o início do primeiro isolamento físico, em março, lá estive algumas vezes. Sempre ia, porém, visitar templos ou pontos turísticos específicos, atravessando as ruas principais. Nunca havia explorado as vias secundárias.
No primeiro domingo de abril, passado um ano de pandemia, quis conhecer alguns murais ao ar livre que sabia existir ali. Decidi começar o passeio almoçando em um restaurante recomendado pelos guias, Old China Café. O lugar serve comida nyonya, ou peranakan, como são chamadas a culinária e a cultura desenvolvidas pelos imigrantes chineses que, já no século XV, mas de forma mais maciça a partir do século XIX, se instalaram no que hoje são Malásia, Indonésia e Singapura, misturando-se com as populações nativas.
Entrei no café. No estreito espaço, havia apenas famílias de origem chinesa, com uma exceção. Em uma mesa perto de mim estavam duas senhoras ocidentais, ambas com o cabelo branco, e que se pareciam fisicamente.
Hesitei se eu optaria pelo frango frito, que lera ser uma especialidade da casa, ou pelo peixe com molho agridoce. Escolhi o frango. Enquanto eu esperava, olhei à minha volta para formar uma opinião sobre o recinto. Eu o definiria como um café chinês da Belle Époque. Pequenas mesas redondas, de madeira escura, com tampo de mármore branco. Cadeiras também de madeira escura, de aparência antiga. Nas paredes, pinturas sobre papel, representando sábios e damas e caligrafia. Pensei que um chinês instruído que entrasse naquele café talvez reconhecesse cenas ou versos de poemas famosos. Senti uma vez mais o quanto as culturas orientais estão fora do nosso alcance, por não dominarmos as línguas em que elas se expressam. Podemos admirar a técnica, a beleza em uma pintura chinesa, mas esse prazer será estético, não intelectual. O que as cenas representam, o que a escrita revela, não podemos alcançar, a não ser que conheçamos a fundo aquela literatura e o idioma.
O frango frito chegou. Eram pedaços pequenos, com ossinho, de cor uniforme, acompanhados de uma tigela contendo um molho azedo. Usei as mãos para comer, depois de passar o álcool em gel que trouxera comigo. A primeira mordida me decepcionou. A temperatura do frango era abaixo de morna. Pensei em Kiki, a gata persa dourada. Lamentei ter saído de casa, deixando-a sozinha, para provar um frango frito no qual eu não via graça. Lembrei do olhar acusador, amuado, que dela recebera ao abrir a porta do apartamento para sair. Senti-me um traidor. Sentado ali, no Old China Café, segurando um pedaço de frango, pensar em Kiki sozinha no apartamento me fez ficar inquieto com minha mãe no Rio de Janeiro, minha irmã em Lisboa, minha filha em Bruxelas e minha mulher em Singapura. Percebi que eu estava prestes a me indagar sobre o sentido da vida.
Controlei-me a tempo. Filosofar em torno a um frango frito não me levaria a parte alguma. A única conclusão possível sobre o novo coronavírus é a de que ele afetou negativamente a vida de todos. Isso já cria um ponto em comum entre nós. O vírus nos afasta fisicamente dos seres queridos, mas o sofrimento e a preocupação que causa deveriam nos aproximar espiritualmente da humanidade.
Considerei mais profícuo voltar minha atenção à refeição. Continuei mordiscando o frango. A carne na verdade era tenra e saborosa. A ave estava crocante por fora e macia por dentro. Mergulhada no molho, que era delicioso, ficava mesmo apetecível, apesar da baixa temperatura. Pensamentos positivos começaram a surgir. O ambiente no Old China Café me fez lembrar de minha primeira viagem fora da capital, em julho do ano passado, objeto da Carta da Malásia que iniciou esta série, “A Ásia em Penang”. Um dos centros da imigração chinesa e da cultura Nyonya, a ilha de Penang abriga, no seu centro histórico, George Town, um bem conservado bairro chinês. O frango perfeitamente frito, macio, acompanhado daquele molho exótico, podia ser encarado como uma aventura gastronômica tão estimulante quanto as refeições que eu fizera na ilha em julho.
Terminado o almoço, saí do restaurante. As duas senhoras ocidentais lá continuavam. No dia seguinte, de manhã, ao sair para o trabalho, eu descobriria que uma delas é minha vizinha, pois passaria por mim na portaria do prédio onde moro, vestida ela também de maneira mais formal do que no domingo.
Na rua, meu espírito era já outro. O frango frito e seu molho me haviam deixado contente. Pensei em um comentário habitual de minha mulher, de que sempre sabe quando chega a hora do almoço porque, quando eu sinto fome, começo a ver tudo pelo lado mais sombrio.
Em termos geográficos, eu me encontrava na parte ocidental do trecho menos movimentado da rua mais turística do bairro chinês, chamada Petaling, que é um verdadeiro bazar, onde são vendidos roupas e acessórios de marca a preços acessíveis, de origem porém incerta.
Ao meu redor, havia pequenas ruas e becos que eu desconhecia por completo. Virando a esquina, vi a loja da Beryl´s, um chocolate malásio do qual deixei-me tornar dependente, e cuja especialidade são amêndoas cobertas em chocolate ao leite, ou amargo, ou branco, ou ao chá verde. Sou, por razões médicas, proibido de ingerir cacau, sob o risco real de encurtar minha vida, e isso cria um dilema. Chocolate me dá sono de noite se estou insone, me deixa desperto de dia se estou sonolento, me dá energia se estou apático, e me acalma se estou agitado. Em suma, resolve tudo. Renunciar a ele é uma luta cotidiana, e frequentemente perdida. No interior elegante da loja, há um mural representando crianças felizes — presumivelmente por poderem comer chocolate sem culpa — e arranha-céus de Kuala Lumpur, entre eles as Torres Petronas.………………
No muro lateral da Beryl’s, que dá para uma viela curta e estreita, vi a pintura que eu mais desejava conhecer, uma das atrações famosas do bairro chinês, O Ourives, da artista russa Julia Volchkova.
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Continuando pela viela, logo cheguei a outra rua, onde há uma sequência de pitorescas casas amarelas. À direita, notei um beco fechado por uma grade, diante da qual pessoas faziam fila. Um guarda me explicou tratar-se de um lugar muito frequentado, por causa de seus murais e alguns bares. A Covid obrigava a que apenas poucas pessoas fossem autorizadas a permanecer no local simultaneamente. Juntei-me à fila, sob o sol tremendo e o excessivo calor. A espera foi curta. O nome do beco, Kwai Chai Hong, parece querer dizer, em mandarim, algo como “Brincalhão” ou “Malandrinho”. Compõe-se de duas curtíssimas ruas de pedestres, que formam um “T”, onde os muros são cobertos de murais, lembrando o espírito descontraído de Penang. Nenhum de meus guias fala nesse lugar, e descobri-lo por acaso foi uma boa surpresa. Parecia que eu estava a anos-luz da Kuala Lumpur moderna onde moro. Deixei-me levar pela levíssima sensação de estar fora do tempo, em nova realidade.
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Ao abandonar o “Malandrinho”, de volta à rua, caminhei frente às casas amarelas. Pela janela aberta de uma delas, vi um painel na parede que me levou a entrar. Diante de mim, estava um enorme retrato de Ava Gardner. Bem, não realmente. Tratava-se de uma mulher oriental. Algo nela, porém — talvez a grande beleza, o cabelo escuro, o olhar direto e o ar de independência que a figura comunicava — me fez pensar na atriz hollywoodiana. Esta, segundo Sérgio Augusto em sua coletânea de ensaios sobre cinema, Vai Começar a Sessão, “é até hoje considerada a mulher mais linda de todos os tempos”.
Entendi que eu entrara em um restaurante, cuja sala era no segundo andar. No térreo, nada havia se não Ava Gardner, um bar e a escada que levava ao andar de cima. Em um letreiro de neon, letras estilizadas como um caractere em mandarim formavam o nome do restaurante. Chamava-se Concubine.
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Não pude me impedir de rir. Eu estava justamente lendo — e o deixara em cima da cama para ir explorar o bairro chinês — um livro lançado em 2020 pelo historiador britânico Robert Bartlett, intitulado Blood Royal, Dynastic Politics in Medieval Europe, onde o conceito de concubina é relevante. No começo da Idade Média, a concubina real era algo superior, moralmente, à amante casual, particularmente entre os Merovíngios e os Carolíngios. No caso da primeira dinastia, não havia impedimento formal a que o rei fosse sucedido por filho tido de uma concubina. O livro contém subcapítulos com títulos como: “Esperando a Morte do Pai” (atividade principal de todo príncipe herdeiro, na Idade Média como hoje), “Reis Bastardos”, “Madrastas”, “Rainhas Adúlteras”, “Matando os Primos” e — este é o meu predileto — “Tios Malvados” (“Wicked Uncles”). São exemplos desse tipo encantador de tio os príncipes que, para aceder ao trono, precisavam primeiro eliminar fisicamente — e às vezes o faziam com as próprias mãos — o sobrinho, rei menor de idade. Ler o estudo de Robert Bartlett é como segurar nas mãos o roteiro de Game of Thrones, faltando apenas os dragões. George R. R. Martin, autor dos livros que deram origem à série de televisão, notoriamente inspirou-se de eventos verdadeiros da Idade Média e também em um conjunto de romances históricos de Maurice Druon, Les Rois Maudits, cujos heróis aparecem, com roupagem acadêmica e não ficcional, no volume de Robert Bartlett.
Procurei na Internet quem seria a Ava Gardner do Concubine. Trata-se da modelo chinesa Fei Fei Sun. O pintor é o artista malásio Najib Bamadhaj.
Isso me fez voltar à realidade. Eu estava no universo do bairro chinês de Kuala Lumpur, não na corte de Filipe, o Belo, e suas noras, as princesas adúlteras, e muito menos na corte de Cersei Lannister e seus crimes em King’s Landing. As concubinas que haviam dado origem ao nome do restaurante não eram as de Carlos Magno, mas as dos enriquecidos imigrantes chineses. Todo aquele canto da cidade, no passado, havia sido um local de jogatinas, bebedeiras e belas cortesãs. Exatamente como em George Town, em Penang, onde existe uma via conhecida como Love Lane, porque ali, diz a tradição, moravam as amantes dos ricos chineses que residiam, com suas famílias, em uma rua adjacente. Os maridos saíam de casa dizendo que iam passear, andavam poucos metros e já estavam em questões de minutos nos braços de suas concubinas.
A tarde avançava. O passeio terminava. Uma gata me esperava.
Voltei à rua da loja da Beryl’s. Do lado esquerdo na calçada, eu notara mais cedo, havia um café, onde uma das atrações era um chocolate quente, cujo ingrediente principal vinha do chocolateiro vizinho. Sentei-me. Logo colocaram frente a mim, na mesa, o melhor chocolate quente da minha vida. A ele só podem se igualar, embora de sabores diferentes, dois outros. Um deles foi tomado há quase trinta anos em um café em Barcelona; o outro é de vez em quando preparado em casa pela minha mulher, derretendo a barra de chocolate no fogo baixo com manteiga.
A experiência durou uns poucos minutos. Enquanto eu olhava dentro da xícara já vazia, sorri.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.