por Rodrigo de Lemos
Há dez anos, comemoraram-se as quatro décadas de Maio de 68 um tanto em toda parte. Tratou-se então comumente de 68 como do ano que nunca terminou. Bem agora que a revolta estudantil e operária parisiense festeja suas bodas de ouro, chama a atenção que se tenha até o momento falado razoavelmente menos desse ponto de inflexão indiscutível das sociedades ocidentais em direção ao mundo tal qual o conhecemos. Não tanto porque 68 tenha finalmente terminado, mas porque entre 2008 e nós surgiram eventos – o despertar muçulmano, a nova direita, o caso Weinstein – que expõem parte do seu legado a mais e mais violentas contestações.
Essas contestações a 68 surgem hoje com um ar de subversão. Há a percepção fácil, e quem sabe demasiado fácil, de que, em 50 anos, a contracultura se tornou cultura, de que o que era paradoxo virou doxa, de que as outrora pedras de escândalo não erguem mais nem sobrancelhas de desaprovação. Em certos meios de certas sociedades ocidentais (ou ocidentalizadas), esse pode ser bem o caso, principalmente em matéria sexual. Os anos 80 de Thatcher e Reagan são muitas vezes considerados como uma década conservadora, mas já ficava então evidente o processo de contemporização dos antigos revolucionários com o mundo, o que não redundou somente na sua (parcial) adaptação às estruturas, mas sobretudo na (de novo, parcial) adaptação das estruturas a eles.
Uma referência a esse momento se encontra no filme O Declínio do Império Americano (1986), do canadense Denys Arcand, que trata do destino da geração protagonista, nos anos 60, daquilo que no Quebeque se convencionou chamar de Revolução Tranquila: a modernização e a laicização da sociedade quebequense, com o estabelecimento da igualdade entre os sexos e de um Estado de Bem-Estar. Bem assentados em suas carreiras universitárias em um dos países mais ricos e estáveis do mundo, os personagens do filme de Arcand, já adultos, gozam o melhor dos dois mundos: o conforto tradicionalmente associado ao modo de vida burguês e a liberdade de costumes instaurada pela contracultura. Eles se hospedam em uma casa de campo na região de Montreal, lembrando com uma ponta de ironia as aventuras ideológicas da juventude e trocando confidências sexuais em que constam em catálogo, e tratadas com humor, todas as práticas outrora tidas por heterodoxas (adultério, homossexualidade, orgias, sado-masoquismo). O filme de Arcand sugeria que, no mundo revolucionado pelos anos 60, as classes estabelecidas não eram mais as mesmas – algo ocorrera na sociedade normal. Uma intuição que parecia confirmar diversos faits divers políticos da época, como a eleição de François Mitterrand na França, a ascensão dos Verdes na Alemanha ou mesmo a formação de um consenso proto-social-democrata no Brasil.
O resultado dessa normalização foi que, por muito que isso desagrade a conservadores prontos a distinguirem uma ameaça civilizacional nas liberdades reclamadas pelos contestatários de 68, são hoje precisamente essas novas liberdades dos modernos que definem o Ocidente do modo mais poderoso para definir identidade: ao olhar dos outros – no caso, de russos, de árabes, de africanos. Isso é assim sobretudo quanto à liberdade sexual, em especial à condição feminina, a minorias e a práticas sobre as quais pesava a proscrição religiosa. Estudos da Pew Research identificam na Europa, na América do Norte e na América Latina (com mais nuances) regiões onde são majoritárias opiniões que se consolidaram na esteira do “momento 68”; é assim com a igualdade de gênero, os direitos civis de homossexuais ou a moralidade da contracepção.
Desse modo, não é surpreendente que, quando se quer atacar o que é tomado por Ocidente, escolham-se frequentemente alvos que remetam a esse momento fundador da sua sensibilidade. Foi o que ocorreu em Paris em 2015. Os atentados do Estado Islâmico atingiram primeiro o jornal Charlie Hebdo, fundado significativamente em 1970 em consonância com o que se propunha ser o espírito transgressor da época, e depois o Bataclan, antigo cinema transformado em casa de rock também significativamente em 1969 e situado no oeste da capital, na Paris estudantil e boêmia onde ainda hoje se encontra algo como a cauda do cometa dos anos 60. Da mesma forma, durante a tournée recente de Emmanuel Macron pela África, foi atribuído a um intelectual guineano um texto-denúncia, amplamente repercutido na internet, quanto à suposta imposição pelo Ocidente de uma “civilização da esbórnia”, na qual “um homem pode dormir com um homem; uma mulher pode dormir com uma mulher”, “um presidente pode ter duas amantes ao mesmo tempo” ou “um jovem pode viver com uma mulher que tem a idade para ser sua mãe”. Que o antigo lema “Goze sem entraves” grafitado nos muros de Paris em 68 recenda hoje a neo-colonialismo aos povos que não participaram dessa história, eis um desenvolvimento insuspeitado aos sonhos libertários daquela geração.
Para muitos dos povos que se querem alternativa ao Ocidente, há nessas liberdades que passaram a ser-lhe típicas um perfume de putrefação. Dentre eles, a posição da Rússia é curiosa. Ela se quer o bastião viril e militar da Europa contra uma suposta inundação de hostes bárbaras islâmicas, incontível pela decadência moral de um Ocidente hedonista e irresoluto: uma sociedade de liberdades individuais seria a via mais segura para sua islamização, e Maio de 68 (com o que veio dele) levaria inevitavelmente ao Califado de Paris. Com isso, o regime de Putin mantem a casa em ordem, reprimindo qualquer reivindicação liberal como infiltração ocidentalista, ao mesmo tempo em que passa uma aliança com o regime islamista ultra-conservador e bárbaro de Ramzan Kadyrov na Chechênia.
Concomitantemente, o kitsch da ideologia conservadora russa retine profundamente em grupos conservadores religiosos nos próprios países ocidentais – a direita vingativa, como os qualificou Jean-Pierre Le Goff. Eles se colocam como os contrarrevolucionários sexuais por excelência, naquela posição em que Balzac flagrou a aristocracia do Faubourg Saint-Germain durante a Restauração da monarquia seguinte à queda de Napoleão: tentando, a golpes de retórica salvacionista, fazer voltarem os ponteiros do relógio e restabelecer sua antiga predominância tranquila. Resta saber no que consiste exatamente a linha divisória entre a retórica da direita vingativa e a moralidade islâmica da qual eles se propõem a defender suas sociedades – não por certo as práticas cruéis de wahabitas e jihadistas radicais, mas a moralidade sexual islâmica tal como ela é vivida pelas massas silenciosas de países como o Egito ou o Marrocos (e mais e mais nas periferias europeias), incólumes à contestação sessentista das estereotipias de gênero e da vinculação estrita entre sexualidade e procriação.
Para além de todos esses apelos à contrarrevolução, internos e externos aos países em que Maio de 68 ecoou, surgiu, com as recentes denúncias sobre assédio sexual, uma aporia intrínseca à própria lógica da revolução dos costumes. A liberação sexual foi antes de tudo uma liberalização sexual: no lugar dos antigos interditos religiosos recaindo sobre algumas práticas, passa a vigorar a ideia do consentimento esclarecido como medida da moralidade de qualquer prática sexual, em analogia com o que é o caso no comércio e na vida política. Isso representou a expulsão da coletividade das alcovas e a abertura de uma era de individualismo na vida do corpo. Agora, de maneira a coibir violências e abusos que o caso Weinstein revelou serem inaceitavelmente mais comuns do que deveriam, leva-se o discurso do consentimento esclarecido ao paroxismo, propondo-se sua publicização por meio, por exemplo, do aplicativo holandês LegalFling, o qual estabelece, em resposta a estritas leis suecas sobre estupro, contratos vinculativos entre parceiros sexuais. Estaria a serpente mordendo a cauda, e uma tal proposta não representaria o retorno da autoridade coletiva às alcovas, agora a convite da própria lógica que permitiu a revolução sexual?
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