por Flavio Quintale
O inverno rigoroso de São Petersburgo não é lenda de guerra. Bem sabem as tropas nazistas derrotadas em Leningrado. O avião toca o solo. Os termômetros denunciam – 12 graus. Lá estou eu, de volta à cidade de Pedro, o Grande, com a missão, entre outras coisas, de iniciar a tradução e vivenciar algumas experiências descritas por Jan Brokken em seu livro O esplendor de São Petersburgo. Brokken é um holandês apaixonado por São Petersburgo. Ou melhor, pelos heróis da literatura e da música que fizeram e fazem o fascínio dessa cidade. Esplendorburgo. Minha tarefa é traduzir esse livro e apresentar ao leitor brasileiro, em breve, essa saborosa narrativa a ser publicada pela editora Âyiné.
São Petersburgo nasceu São Petersburgo. Expandiu-se Petrogrado. Rebelou-se Leningrado e renasceu São Petersburgo, a cidade do Peter. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Se Deus quis, deixo a resposta para os teólogos. Pedro sonhou. Petersburgo nasceu. Louco. Louco, sim, porque quis grandeza. Pedro foi um russo apaixonado por Amsterdam. Obcecado por navegações e pelo mar. Não sossegou até fundar uma cidade costeira e dar uma Marinha aos russos. Incorporou o espírito batavo. Diz um ditado popular holandês que Deus criou o mundo, mas a Holanda, foram os holandeses. Pedro não ficou para trás. Petersburgo se fez carne. Plena de canais, repleta de barcos. E Pedro abriu a janela da Rússia para a Europa.
Czar, Pedro foi um homem contraditório. Genial e cruel. Bendito e maldito. Transferiu suas contradições para a cidade. Ergueu-a do nada e em tudo construiu paradoxos. Dias escuros, noites brancas. 1703 é o ano de fundação. Honrou São Pedro dando-lhe o nome à cidade. Coincidentemente o mesmo que o seu. Foi humilde no próprio orgulho. Fez dela capital do Império. Durante o século XVIII, a cidade ganhou proporções majestosas graças a Catarina, a Grande. Tudo na Rússia é incomensurável. Do território ao frio. Da riqueza à pobreza. Do triunfo ao fracasso. Do Pedro e da Catarina grandes, aos Yuris e Natachas pequenos, protagonistas anônimos da história.
Noite inexorável. Chego ao alojamento. Elevador antigo. Estilo soviético. Entro no quarto. Está bem aquecido. Olho pela janela. Um emaranhado de prédios iguais. Quando sair é preciso estar atento para não errar o edifício ao voltar para casa.
Levanto-me cedo. Saio para reconhecer os arredores. O sol brilha. Coisa rara por aqui. Mas a temperatura não deixa ninguém se enganar. Dezessete graus negativos. Caminhar por essas ruas mata a nossa curiosidade de saber como seria a vida dentro de um freezer. A pele seca mesmo com roupas, sapatos e acessórios apropriados para essa temperatura. O vento não dá trégua. Racha os lábios desprotegidos. Avisto o estádio que sediará a copa do mundo à beira do rio Neva. Totalmente congelado. As pessoas caminham sobre o rio como se passeassem por avenidas arborizadas. Também me arrisco. Ando sobre as águas. São Petersburgo tem as entranhas de gelo. Cidade onde o extraordinário é apenas um acontecimento corriqueiro.
Sem perder tempo, aproveitei para conferir à noite o filme Dovlatov do diretor Aleksei German, vencedor do Urso de Prata no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Trata-se de um recorte da vida do escritor Sergei Dovlatov, com destaque para o período em que conviveu com Joseph Brodsky. Enfoca o drama dos escritores não alinhados durante o período soviético. Censura, perseguições, crimes. Mostra bem o humorismo constante de Dovlatov, capaz de fazer sátira mesmo em situações nada animadoras. Sua vida é rica de situações tragicômicas, como se lê em seus livros, dois deles já publicados no Brasil pela editora Kalinka. O exílio de Brodsky no início dos anos 70 rendeu-lhe fama internacional e o Prêmio Nobel, enquanto que Dovlatov, em exílio somente em 1979, morreu em Nova York em 1990 desconhecido no próprio país. Hoje, porém, é umas das principais e mais populares figuras da literatura russa do final do século XX. Recentemente, inclusive, foi inaugurado um monumento em sua homenagem na rua Rubinshteina na altura do número 23. Jan Brokken não trata de Dovlatov em seu livro, mas escreve sobre Brodsky, e em particular, a respeito de sua amizade com Ana Achmatova.
Brodsky e Dovlatov são herdeiros da inigualável tradição literária de São Petersburgo, iniciada no século XVIII e elevada ao mais alto patamar da literatura universal com Púchkin, Gogol, Dostoiévski e tantos outros autores que constituem a história e o esplendor desse lugar. Sofrimento, melancolia, reflexão, resistência, sátira e amor. A vida. Tudo se encontra nas grandes obras da literatura russa. E assim vai o tradutor de Brokken perambulando pelas ruas cobertas de neve de São Petersburgo em busca dos heróis da cidade.
Flavio Quintale é tradutor literário, bacharel em jornalismo e doutor em Letras pela USP e pela Universidade de Könstanz, Alemanha. Foi professor de Literatura Comparada na Universidade de Aachen, Alemanha
Leia toda a série “Diário de um tradutor em São Petesburgo”:
4 – Aleksandr Blok e Hermitage
6 – Akhmátova, Brodsky e Lênin
7 – Dostoiévski, Tchaikovsky e Rasputin