“Ensaios sobre o Mal”: O Ciúme (ou A função do olhar em “Dom Casmurro”)

O ciúme é uma neurose do olhar: quanto mais o ciumento está tomado pela crença do olhar como o transmissor das mensagens de desejo (dos outros para si e de si para os outros) tanto mais ele será refém de seu sentimento.

“Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini,
não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição.”

O ciúme é a forma mais simples de experimentarmos o que é a loucura. Nenhum sentimento banal e corriqueiro se aproxima tanto dessa mistura de alucinação, delírio, paranoia e descontrole emocional. A pessoa enciumada não só delira, ligando fatos e pessoas, eventos e memórias, de modo a confirmar sua tese paranoica; ela efetivamente alucina gestos, movimentos e falas, num grau de mal-estar muitas vezes aguçado por sua suposição de estar efetivamente errado e, quiçá, louco. Os ciúmes que são desmascarados como puro engano são avassaladores para a lucidez e, muitas vezes, nos causam riso. Os ciumentos patológicos, com o tempo, começam a lidar com uma dose de autoironia diante de seus ataques — e, com frequência e bom humor, assumem-se como malucos.  

Conseguimos negar sentimentos por serem intangíveis, vagos. Podemos negar a inveja, por orgulho; disfarçar a covardia, por vergonha; rejeitar o ressentimento, por vaidade; e até mesmo controlar e dissimular a ira, por temor. O ciúme, porém, além de ser um dos sentimentos mais transparentes para nós mesmos, também nos exige que o comuniquemos. Especialmente porque a loucura do ciúme é intensificada pela possibilidade, fantasiosa ou não, de desvendar a veracidade de sua suposição. Esta é uma das principais razões pelas quais o ciumento se vê impelido a comunicar seu ciúme para o outro: ao comunicá-lo, ele fantasia uma possibilidade de desmascarar algum engano, algum gesto, algum titubeio que confirmará sua hipótese. Ilusão do ciumento, este que nem todas as juras são capazes de convencer, nem todas as evidências de dissuadir, cujo olhar deforma a realidade a seu bel-prazer. 

De que é feita essa loucura?

Jealousy. Edvard Munch (1863–1944). Óleo sobre tela. Museu Städel, Frankfurt, Alemanha.

O ciúme é uma neurose do olhar. Quanto mais o ciumento está tomado pela crença do olhar como o transmissor das mensagens de desejo (dos outros para si e de si para os outros) tanto mais ele será refém de seu sentimento. Um dos indícios mais banais disso é o fato de as acusações (e também as desculpas) ligadas ao ciúme estarem todas associadas ao movimento do olhar. Reprimendas como “Você estava olhando para ela” — seguidas de respostas como “eu nem a havia visto” e “eu estava olhando para outra coisa” — ou afirmações como “Eu não gosto do jeito que ele te olha” — seguidas de respostas como “eu acho que ele me olha normalmente” — são exemplos banais e corriqueiros que terminam por certificar a suposição de que o olhar é central na trama. Do início ao fim, o ciumento está envolvido com isto: os olhares transmitem o desejo, os olhares certificam o ciúme, o olhar flagrará os outros dois, descobrirá evidências, objetos, mensagens que confirmam o ciúme.

No seu texto sobre a psicose paranoica, Freud lançou uma ideia incrível sobre o ciúme, que nunca, porém, desenvolveu (a vantagem dos gênios é ter ideias em profusão e poder somente despejá-las). Segundo ele (e aqui se referia às relações tradicionais heterossexuais de sua época), o ciúme era uma manifestação do nosso desejo homossexual inconsciente, pois precisamos desse desejo para perceber quem é potencialmente desejável. Freud (que supunha que o inconsciente funcionava como literatura) disse que o homem enciumado se defendia da frase que ouvia na sua própria mente “eu não o amo/desejo” ao projetá-la na cônjuge, através da frase “ela o ama/deseja”. Isso é tanto mais verdadeiro quando percebemos que, nessas situações, somente o homem enciumado percebera o outro homem potencialmente desejável, enquanto a mulher nem o havia visto. Contudo, outros elementos estão envolvidos.

O ciumento também luta contra a ameaça que essa terceira pessoa faz não só a ele e sua relação, mas contra uma ameaça genérica: a de colocar todos como desejantes e objetos desejados sem interdições. Sua luta é contra a potência do desejo como fragmentador da ordem social. O ciumento é um especialista no desejo e nas formas de desvendá-lo, percebê-lo (ele próprio é um desejante e hábil mestre em suas manifestações). Mas ele supõe que, para a ordem social vigente seguir estável, é necessário abdicarmos parcialmente do desejo (de outro modo, viveríamos constantemente em disputa). A indignação do ciumento com o terceiro é uma indignação com sua incapacidade de abdicar do seu próprio desejo. Por isso, o triste fim do ciúme, quando patológico, é a anulação do desejo do outro.

Para Freud, precisamos do ciúme para perceber quem é potencialmente desejável.

As representações literárias

A literatura apresenta casos clássicos de ciúme, traição, desconfiança. Por certo, o mais emblemático é o de Otelo, de Shakespeare, uma tragédia terrível sobre o efeito enlouquecedor e devastador desse sentimento. Na literatura brasileira, um dos nossos clássicos é uma irresolúvel trama sobre o ciúme: Dom Casmurro, de Machado de Assis. São obras distantes no tempo e distintas em sua forma e em seu enredo. Também no que respeita ao ciúme, há algo crucial que as distingue. 

Ainda que Otelo esteja claramente tomado pelo ciúme, existe um fantasma na máquina que Shakespeare inclui na tragédia e que diminui, em algum grau, a apresentação do ciúme em estado puro: trata-se da figura de Iago. Otelo confia em Desdêmona até Iago incutir-lhe a desavença. E as razões de Iago são abomináveis, especialmente por envolverem âmbitos distantes do amor e da fidelidade conjugal: o personagem, afinal, é mobilizado por seu desejo de vingança, seu arrivismo, sua inveja e até mesmo pela perversão de ver o ocaso alheio. É evidente que se trata de uma tragédia sobre o ciúme, mas, ainda que possamos incorrer no pecado de corrigir os gênios, em certo sentido a peça parece ser mais sobre Iago do que sobre Otelo. Ele incute à força num homem crente uma prova da infidelidade da esposa. E mais: uma única prova — o lenço caído no quarto de Cássio. Daí em diante, por certo, Otelo começa a ver evidências, mas nem retroage para o passado sua desconfiança, nem está predisposto a tomar Desdêmona por infiel. Iago é o protagonista, Otelo é seu objeto. Poderíamos questionar: o que seria de Otelo não houvesse Iago? O que seria de Rodrigo e de Cássio? E até mesmo de Desdêmona?

Em contrapartida, Dom Casmurro parece apresentar o ciúme com mais cores e de forma mais intensa. José Dias parece cumprir a mesma função de Iago (o que o próprio Machado indica não só implicitamente no nome de Bento Santiago, mas explicitamente no capítulo LXII, “Uma ponta de Iago”) quando descreve Capitu: “A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu… Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação”. É possível que Bento Santiago fosse um homem ingênuo, crente nas pessoas em geral e, por conseguinte, na fidelidade de Capitu, mas sua fé deve ter sido demolida pelo comentário de José Dias, que muito se assemelha à fala astuciosa de Iago para Otelo. Não sabemos, nem saberemos, quanto essa intervenção predispôs Bentinho e lhe criou todos os inconvenientes de desconfiança e insegurança posteriores. Contudo, pode ser que Bentinho já estivesse predisposto a desconfiar de Capitu e, por isso, tenha dado ouvido aos comentários e guardado os indícios que outros lhe deram, adicionando a eles elementos próprios.

Otelo e Iago, personagens de Shakespeare, em ilustração baseada em pintura de Solomon Alexander Hart (1855).

Há uma diferença entre as duas histórias que dificulta a interpretação: Otelo mal retroage seu ciúme, enquanto Bentinho está desde o início remontando a história, selecionando os fatos que convêm à sua interpretação. É possível que a estrutura do ciúme em ambas seja idêntica, e José Dias cumpra a função de Iago, e Ezequiel, a do lenço; mas, diferentemente da peça de Shakespeare, em que a inocência de Desdêmona é evidente, encontramos na obra de Machado a possibilidade de reconstrução da trama inteira pelo viés do ciumento, com aquela atitude — típica do desconfiado — de selecionar os fatos que confirmam as suas suspeitas e de enxergar as relações entre as ações pela via única do afeto ciumento. Para além disso, Dom Casmurro se revela um livro muito mais prolífico no que há de fundamental sobre o ciúme: a função do olhar. 

O Olhar em Dom Casmurro

O ciúme é um sentimento que domina o olhar e a fantasia, reduzindo a mente ao diálogo mútuo entre essas duas instâncias; um trabalho no qual um alimenta o outro reciprocamente. De um lado, o olhar da desconfiança a selecionar os fatos do mundo; do outro, a fantasia da desconfiança a relacionar todo fato que chega com os já gravados na memória, terminando por imaginar os próximos que virão e confirmarão (mais ainda) a crença assentada.

Assim, ainda que não saibamos jamais o momento exato no qual o ciúme eclode, o alimento dele é essa relação do olhar com a fantasia, adicionada de um elemento importantíssimo: a descrença na palavra. Ou melhor, a sobreposição do olhar ante a palavra. Não há nada que o ciumento ouça que desfaça seu ciúme. As palavras podem apaziguar o ciúme, mas nunca o anulam. Isso fica evidente em Dom Casmurro. Na obra de Machado, os olhares vencem as palavras e, não por acaso, a imagem mais conhecida do livro é a dos “olhos de ressaca” ou dos olhos de “cigana oblíqua” de Capitu. Mas a presença do olhar é tão central no romance que podemos ver uma centena de outras descrições, adjetivações e circunstâncias nas quais os olhares são primordiais para o entendimento da cena — olhares sempre refinados pelo autor, que faz deles imagens complexas, quadros, metáforas.

Desde o início, todas as ações que Bentinho marca, que ele investiga e nas quais se fia para montar sua versão dos fatos, são olhares. Sua capacidade de observação, de atenção aos detalhes, de descrição de traços os mais mínimos, mostra o olhar aguçado do narrador para desvendar os caracteres mais sutis que dizem o que as pessoas são, como se comportam, o que fazem. Note-se essa riqueza do olhar de Bento Santiago, ainda no capítulo VII: 

“Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, Dona Maria da Glória Fernandes Santiago contava 42 anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhos. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira.”

Não é uma mera descrição. É a capacidade de Bentinho deter o seu olhar e observar o mundo. Mais do que o movimento banal de ver, o olhar aparece como algo que comunica um sentimento, uma interpretação do mundo, das pessoas, de uma fantasia.

As primeiras ocorrências de olhares em Dom Casmurro são singelas e originais adjetivações que buscam colorir a sensibilidade da cena, cumprindo uma clássica função de denunciar os afetos dos sujeitos que a protagonizam. Algumas imagens são novas, outras nem tanto: “olhos teimosos”, “de olhos pensativos”, “os olhos vagos”, “Capitu, cosida às saias de minha mãe, não atendia aos olhos ansiosos que eu lhe mandava”, “Capitu olhou para mim com desdém”, “os olhos que brilhavam extraordinariamente”, “e pareceu-me que tinha os olhos úmidos”, que são seguidas por algumas surpreendentemente refinadas: mas a fé velava com os seus grandes olhos ingênuos”, “Me encarava com os olhos furados e escuros”, “olhando para ontem”. 

Os olhares se intensificam e começam a competir com os próprios personagens quem domina e denuncia quem. Os olhares tornam-se supostos índices da verdade não dita das pessoas. Uma disputa de atividade e passividade se coloca entre ambos, como se os olhares desejassem tornar-se os próprios protagonistas ou mesmo agir a despeito da vontade delas: “olhos do agregado escancaram-se”, “deixei cair os olhos”, “uma vez olhou para mim tão cheio de pena”, “creio que os olhos que lhe deitei…”. Ou ainda: “os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um gesto de recusa ou de espera”, “os olhos enfiados nos olhos”, “os olhos que ele me deitou foram ternos e agradecidos”. E assim os próprios personagens começam a investigar os olhares, pois são estes que confessam o que se passa na cena: “Desta vez a fulguração dos olhos foi menor, as pálpebras não lhe caíram nem as pupilas fizeram os movimentos anteriores. Ao contrário, todo ele era atenção e interrogação; quando muito, um sorriso claro e amigo lhe errava nos lábios”. 

Um segundo nível surge: os olhares ganham protagonismo e tornam-se oficial e verdadeiramente agentes, capazes de dizer, sentir e comunicar. A sensibilidade de decifrar o olhar transforma-se numa quase patológica agência do olhar. No capítulo intitulado “Capitu”, Bento Santiago confessa: “Todo eu era olhos e coração” . Que tenha escolhido exatamente os olhos e coração, e não olhos e razão, olhos e cérebro, é algo flagrante, pois na visão de mundo dele os únicos agentes são estes dois — ambos em um diálogo constante, por vezes fraterno, noutras competitivo. Bento Santiago sabe que está doente do olhar, porque crê que a verdade é transmitida somente pelo olhar: “Os olhos continuavam a dizer coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham…” Ou ainda: “A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos olhos” , “quando saí, tornei a falar com os olhos à dona da casa”,  ou mesmo “Só então senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos” . Ele está convicto que o olhar é o certificado da verdade, razão pela qual teme ter o próprio olhar desvendado: “espreitou-me os olhos”. Sua relação com o próprio olhar e com o olhar dos outros dirigido a si o aflige: “ouvia, espetando-me os olhos”, “(esse) escrúpulo de exatidão que me aflige”, “meus olhos de seminarista” (imagem ao mesmo tempo real e metafórica), “eu tinha os olhos nele”, ou a mais evidente “a recordação de uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se deleitem com a imaginação deles”. 

A vertigem dos olhares assume contornos riquíssimos de interpretação, tais como “as pupilas vagas e surdas” ou mesmo na célebre imagem (cuja fama não deve sedar-nos para sua originalidade) que dá título ao capítulo XXXII: “olhos de ressaca”. Momento em que, denunciando seu fanatismo, Bentinho insiste: “Deixe ver os olhos, Capitu.”  e clama:  “dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu”  e conclui: “Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”. Bentinho se vê tão exasperado por sua relação com o olhar que emenda: “Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me”. 

Se os olhares todos estavam carregados de afeto e significação, tanto mais estará o olhar de Capitu, que se torna o enigma, para usar a expressão de Alfredo Bosi, que decifra não somente ela própria, mas os outros envolvidos na história: “Capitu dava-me com os olhos todas as sortes grandes e pequenas”; [Capitu] “levantou o olhar, sem levantar os olhos”. A pérola de César acendia os olhos de Capitu”; “os olhos de Capitu quando recebeu o mimo, não se descrevem; não eram oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos”; “É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê”; “A cara entre as mãos e chegando muito os olhos aos meus”; “Os olhos bastavam ao primeiro efeito”. Chegando a tal desatino: “Um mover deles [os olhos dela] faria parar ou cair um inimigo ou um rival, exerceriam vingança pronta, com este acréscimo que, para desnortear a justiça, os mesmo olhos matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a vítima”. 

Cena de Capitu, minissérie da TV Globo exibida em 2008, com Michel Melamed e Maria Fernanda Cândido.

E, como esperado, se passa o mesmo com Escobar,  alvo do ciúme de Bento Santiago. Já na forma como ele é apresentado, vemos: 

“Todos ficaram gostando dele. Eu estava tão contente como se Escobar fosse invenção minha. José Dias desfechou-lhe dois superlativos, tio Cosme dois capotes, e prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto metediço e tinha uns olhos policiais a que não escapava nada.

São os olhos dele — expliquei. 

Nem eu digo que sejam de outro. 

São olhos refletidos — opinou tio Cosme. 

Seguramente — acudiu José Dias; — entregando, pode ser que a senhora Dona Justina tenha alguma razão. A verdade é que uma coisa não impede outra, e a reflexão casa-se muito bem à curiosidade natural. Parece curioso, isso parece, mas…” .

A relação mútua de olhares que velam ou desvelam acomete agora os dois: “Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim desconfiado, como se cuidasse que eu recusava a circunstância nova por forrar-me a escrevê-la; mas tal suspeita não ia com a nossa amizade”; ou “Cada um com os seus olhos perdidos”.

Num dos momentos definitivos do livro, em que Bento Santiago realmente se questiona sobre a possibilidade de um caso amoroso entre Capitu e Escobar, também é o olhar que está como verificador: “Se olhara para ele, era prova exatamente de não haver nada entre ambos; se houvesse era natural dissimular”. 

O próprio Machado chama de jogo de olhares ao dizer “Quantos minutos gastamos mesmo naquele jogo?”. Esses atores independentes têm de ser vigiados cuidadosamente:

“Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-lhe o gesto, peguei-lhe na mão para animá-la, mas também eu precisava ser animado. Caímos no canapé, e ficamos a olhar para o ar. Minto; ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim…. Mas eu creio que Capitu olhava para dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o chão, o roído das fendas, duas moscas andando e um pé de cadeira sacado. Era pouco, mas distraía-me da aflição Quando tornei a olhar para Capitu, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo que a sacudi brandamente.”  

É evidente que em Dom Casmurro também atua uma problemática de viés, digamos, psicanalítico, como o desejo da mãe de que Bentinho se ordene padre, a separação dele e sua mãe que Capitu ameaçava concretizar (“Se você tivesse que escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?”, ela questiona), a ameaça que aquela mulher desejante fazia à sua potência masculina (“Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem”), bem como seu impulso homoerótico (ele reitera para si mesmo com uma veemência pueril e cômica de tão frágil “Sou homem”) dirigido a Escobar. Sobre esse impulso, na descrição que faz de Escobar, lemos que ele: 

“Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, porque os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava fê-los entre os seus, já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá. Esta dificuldade em pousar foi o maior obstáculo que achou para tomar os costumes do seminário. O sorriso era instantâneo, mas também ria folgado e largo. Uma coisa não seria tão fugitiva, como o resto, a reflexão; íamos dar como ele, muita vez, olhos enfiados em si, cogitando. Respondia-nos sempre que meditava algum ponto espiritual, ou então que recordava a lição da véspera. Quando ele entrou na minha intimidade, pedia-me frequentemente explicações e repetições miúdas, e tinha memória para guarda-las todas, até  as palavras. Talvez esta faculdade prejudicasse alguma outra”.

O aspecto mais clarividente, no entanto, está na famosa cena em que o personagem percebe Escobar como mais homem que ele: “Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custava-me esta confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Nem só os apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra coisa: achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar.”

Na relação com seu filho Ezequiel e sua persecutória crença de que ele é, na realidade, filho de Escobar, também é o olhar que prova algo. “Já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos…” ou “Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? — Perguntou-me Capitu. — Só vi duas pessoas assim, um amigo do papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim…“. “Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareciam esquisitos por isso

Ainda que a ciência do olhar que Bentinho desvendou o tranquilize, dada sua exatidão, ela não deixa de ser menos intolerável por aquilo que revela: “Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não faziam mais que separar-nos”.

E o segundo momento no qual os “olhos de ressaca” são citados, exatamente os olhos de ressaca que outrora eram dirigidos a ele, se dá agora no enterro de Escobar, num capítulo repleto de olhares (CXXIII), intitulado também “Olhos de ressaca”: 

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira que saltassem algumas lágrimas poucas e caladas…

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.”

Eis o famoso segundo momento de certeza de Bentinho diante da incerta traição de Capitu, um olhar: “Eu acabava de louvar as virtudes do homem que recebera, defunto, aqueles olhos”. Diante da força dessa certificação, Bento Santiago só pode fazer ampliar sua doença do olhar: “Vi todos os olhos em mim”. Ao final de seu relato, tal qual todo sujeito tomado pelo ciúme, declara seu amor pela via torta da desconfiança, desconfiança jogada exatamente sobre aquilo que outrora despertou sua paixão, aqueles olhos: “Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada“.

Mas nós não restamos jamais convencidos, pois sabemos que não se trata de um livro sobre a traição de uma mulher, no qual indícios se esconderiam para inocentá-la ou não. Pois Dom Casmurro não é um livro sobre Capitu, tampouco sobre Escobar, mas, sim, sobre Bento Santiago; as pistas nele ocultas, prontas a serem desveladas, apontam não para os atos daquela cigana oblíqua e dissimulada, mas para Bento Santiago. Este homem que, muito mais cedo na trama, deixa escapar a única verdadeira pista do livro, numa fala inocente, sobre uma personagem secundária na trama. Bento Santiago comenta que não entendeu porque certa vez Dona Fortunata apareceu na porta de sua casa subitamente. Como não fica claro o que ela foi fazer ali, Bento Santiago conclui: “A não ser que fosse para certificar aos próprios olhos a realidade que o coração lhe dizia”.


Acompanhe a série de ensaios do psicanalista Felipe Pimentel

Do ressentimento à inveja, passando pelo ciúme e pela covardia, esta série aborda as diferentes faces do Mal não por conceituações psicológicas, mas por meio de manifestações da arte e do pensamento, sempre tão precisas na sua capacidade de ilustrar os dramas humanos.

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