“Ensaios sobre o Mal”: O Desencanto (ou A ópera moderna de Radiohead)

O protagonista dessa ópera padece de um sentimento não necessariamente original: ele se sente inadequado, desajustado e marginalizado frente a uma realidade caótica e desgovernada, na qual as coisas parecem se fragmentar sem que saibamos de onde vem a força que faz tudo ruir.

Overture

Não é mais possível escrever uma ópera. Alguns tentaram, poucos perceberam, muitos fracassaram; o resultado soa artificial — não são tempos de ópera. As vidas parecem mínimas; os heroísmos, tolos; os amores, frágeis; as interdições, despercebidas. Contra o libreto da ópera que já nos antecipa o enredo, mas mesmo assim nos surpreende, se choca a aleatoriedade da vida contemporânea. Conhecemos somente vestígios de eventos grandiosos, o que nos faz fanáticos do ínfimo, iludidos com alguma suposta grandiosidade que se revelaria no banal. E lá do fundo do imaginário estes ideais apertam ainda mais a corda da melancolia em que vivemos. Alguém assistiria a uma ópera sobre isso?

A resposta é sim. E quem a escreveu foi uma banda inglesa chamada Radiohead, capitaneada pelo enigmático Thom Yorke. Uma ópera na forma exata da época que busca cartografar: fragmentada, suficientemente despretensiosa, variegada e também autofágica. A obra do Radiohead, seja como um todo, seja a cada disco, é um tipo de ópera, possuindo um enredo subjacente, uma trama inclusive pré-determinada, com atores e textos que ecoam os dramas da vida nas metrópoles urbanas atuais. E, como uma boa ópera, ainda que nosso libreto esteja perdido em erráticas letras dispersas em anos de discos, ela apresenta um enredo claro, composto de cinco movimentos, que abaixo apresento. 

Primeiro Movimento (Allegro ma non troppo): O desajuste social

O protagonista dessa ópera padece de um sentimento não necessariamente original: ele se sente inadequado, desajustado, marginalizado. Já no primeiro disco, temos um clássico, “Creep”, no qual o eu-lírico reconhece sua inadequação diante do mundo circundante:

Antes, quando você estava aqui
Eu não conseguia olhar nos seus olhos
Você parece um anjo
Sua pele me faz chorar
Você flutua como uma pena
Em um mundo belo
Eu queria ser especial
Você é tanto
Mas eu sou um bizarro
Um estranho
Que diabos estou fazendo aqui?
Eu não pertenço a esse lugar

Essa inadequação reflete uma sensação genérica de uma realidade caótica e desgovernada, suficientemente incompreensível, na qual as coisas parecem se fragmentar sem que saibamos de onde vem a força que faz tudo ruir. Tal como em “Planet Telex”:

Você pode quebrá-lo, mas ele sempre vai estar aqui
Você pode quebrá-lo, mas ele sempre estará por perto.
Te seguindo até sua casa dizendo
Tudo está quebrado.

Ele percebe que algo está muito fora do lugar, mas não consegue precisar ou instanciar do que se trata. Tal como vemos em “Stop Whispering”:

Caro senhor, eu tenho uma reclamação
Mas não consigo lembrar o que é,
Não importa, de todo modo. 

Da relação entre a realidade exterior e interior devassada, o inadequado, clamando por algum auxílio diante da ameaça de dissipação, logo começa a buscar razões para isso. Por certo, ao não encontrar essa força que tudo dissipa, por não conseguir agarrar-se em nada da realidade que lhe dê explicação e fundamento, a inadequação retrocede do exterior, e voltando-se para o sujeito, fazendo o desajustado desconfiar de si próprio. Para exasperar essa desconfiança em si mesmo, o desajustado percebe a tranquilidade da adaptação das pessoas ao redor, o que só faz aguçar seu mal-estar. Neste jogo, junto à desconfiança da própria inadequação, temos o repúdio dos supostamente bem-ajustados. Reconhecendo em si uma desarmonia exatamente com o mundo que parece seguir impassível a seu desespero, o desajustado desloca sua energia para o outro lado do espelho: lentamente ele se torna um crítico social. 

Stanley Donwood, Trade Center (1999).

Segundo Movimento: A crítica social 

Neste ponto, o protagonista dirige seu mal-estar ao mundo exterior, seguindo a tradição do rock de atacar os padrões estabelecidos e o modelo vigente de felicidade individual e social. Há novidades, evidentemente, pois cada época ataca uma determinada concepção de mundo. O mundo do qual emergiu Radiohead é o mundo britânico-europeu dos anos 1990. Que singularidade temos aí? 

Não é o mais o caso de questionar a família patriarcal do baby-boom e seu conservadorismo, tampouco de criticar as gerações militaristas dos anos 1970 ou os utópicos socialistas ou consumistas dos anos 1980, mas de ir contra um determinado modelo de felicidade vigente a partir dos anos 1990. Nessa época, assistimos à diminuição das guerras e sua capacidade sinistra de dar sentido à vida de nações, com a derrocada da Guerra Fria e seu antiquado adesismo às dicotomias ideológicas; tudo isso aliado a um emergente grau de conforto material de grande parte da população britânico-europeia, oriundo das ações beneficentes do estado de bem-estar social e da altíssima produtividade tecnológica; não suficiente o esfacelamento consumado de um determinado conceito de família e sua capacidade de algum norte moral; o fracasso do amor romântico como objeto passível de salvar a existência; e o cair do homem no mundo da cotidianidade técnica, onde a única forma de reconhecimento social parece ser o trabalho; o mundo que emergiu globalizado nos anos 1990 é um mundo sem cor e sem forma. Um mundo que repudiou os modelos preestabelecidos, porém nada ofereceu em perspectivas futuras.

Esta denúncia aparece sob a ótica da crítica da competição narcísica dos tempos modernos, como no clássico “Fitter Happier”:

Mais sarado, mais feliz, mais produtivo,
Confortável,
Sem beber demais, 
Idas regulares na academia
(três vezes por semana), 
Se dando melhor com seus funcionários atuais,
Na boa, 
Comendo bem
(nunca mais comidas de micro-ondas e gorduras saturadas), 
Um motorista mais paciente, 
Um carro mais seguro 
(o bebê sorrindo no banco traseiro), 
Dormindo bem
(sem pesadelos), 
Sem paranoia, 
Cuidadoso com todos os animais
(Nunca mais lavar as aranhas nas tomadas).
Mantendo contato com os velhos amigos
(curtindo um drink uma vez ou outra), 
Frequentemente checando o crédito (moral) no banco
(um buraco na parede), 
Favores por favores, 
Ligado, mas não amando, 
A Caridade colocando suas ordens
Nos domingos no supermercado na periferia
(Sem matar traças ou colocar água quente nas formigas), 
Lavagem de carro
(também aos domingos)

O crítico social carrega um temor de ver o self diluir-se na realidade das coisas úteis; em dezenas de músicas do Radiohead, o eu-lírico (nas letras e na instrumentação, por meio da utilização muitas vezes irônica da tecnologia) assusta-se com a possibilidade de ser anulado pela ciência e a tecnologia uniformizantes. Seu cinismo é efêmero, porque pouco visceral. Por ser incapaz de se tornar imune ao discurso que a todos captura, ele inicia um vagaroso caminho rumo à solidão. Sua retirada do convívio social é estrategicamente uma forma radical de sobrevivência psíquica — de manutenção não só da sua aparente sanidade, mas de sua integridade mental. 

Frame do videoclipe de “No surprises”, uma das músicas de do disco OK Computer, de 1997.

Terceiro movimento: Solidão 

O crítico social torna-se tanto mais solitário quanto mais percebe-se detentor de uma verdade desconhecida pelos outros; estes outros estão objetificados pelo sistema que os esmaga, exatamente porque eles não detêm essa verdade. Mas antes que comece a haver uma lenta consolidação de satisfação do crítico social em seu repúdio da sociedade; antes que ele se refestele diante da mediocridade alheia, antes que o gozo do alívio que a detenção dessa verdade lhe dá, logo o crítico social é esmagado pelo abandono e a solidão que habita. 

A realidade exterior torna-se assim ameaçadora de um novo jeito; não só porque o sujeito não pode se adequar a ela, nem somente porque ela é execrável  (algo que agora ele tem ciência dos motivos), mas porque ela é uma forma brutal de atestar a total solidão do sujeito.

Mas o solitário, desajustado, não pode pertencer à raça humana nessas subjetividades prêt-á-porter que ela mesma lhe disponibiliza; nelas, ele tampouco se reconhece. Seu anseio de pertencimento vagueia atrás de algo cujo valor suporte a cota de sofrimento que precisa aplacar. Ao perscrutar os cantos variegados e bagunçados de uma metrópole que não se rende, que não se apazigua para facilitar sua busca, o solitário abre tímida e velozmente as forças que repudiam o mundo em torno para nele algo encontrar — e assim esperar.

Quarto Movimento: Alguma esperança

Percebendo a dificuldade e a grandiosidade de seu projeto (superar o mundo que o circunda e resolver os conflitos que o impedem de participar dele), o solitário projeta um mundo futuro de melhores condições. Numa iniciativa de constante adiamento de qualquer realização momentânea, a imaginação solitária figura mundos futuros nos quais o mundo circundante estaria alterado, como em Airbag:

Na próxima guerra mundial
No reboque de um caminhão
Eu vou nascer novamente


Em uma explosão interestelar
Eu retornarei para salvar o universo

Na realidade, o protagonista desse libreto percebe que seu afã de sentido, epifânico e metafísica, pode ser somente uma forma mais refinada do que as formas vigentes, profanas e materialistas, de o conseguir. Uma diferença meramente qualitativa entre o seu modo de valorar sua existência e o modo daqueles seres patéticos que ele abominara parece muito pouco para legitimar todo o mal-estar que ele carrega. Assim, logo a crítica retorna sobre si mesmo. Donde a tensão do conteúdo de suas letras: aquele que a canta não o faz sem uma ponta de desconfiança que o ridículo em questão seja ele próprio.

Vemos surgir aí a crescente desilusão com os vestígios que ele parece ter achado para se satisfazer. São intangíveis e insuficientes. Não tem nome, nem valor; e se o tem perdem-no rapidamente. Em traços longínquos, perdidos e frágeis, surgiram lampejos de salvação, dos quais o solitário desencantou. Foram instantes fortuitos de suspensão do horror. E sua busca desiste de atacar os objetos que lhe dificultavam o caminho, também desiste de atacar os objetos que lhe enganaram — o que vemos aqui é um completo abandono da própria iniciativa de busca. 

Quinto e último movimento: Desencanto e quietude

A opereta não termina num allegro, mas num adagio pianissimo, cuja prolongada e intensificada quietude não traz harmonia. Toda a busca, toda essa espécie de saga profana, urbana e invisível, na qual um homem percebe-se como alheio ao meio circundante, para depois repudiá-lo e vociferar contra ele; esse angustiante trajeto que degenera na mais completa solidão de um indivíduo contra seus rivais imaginários, desconhecidos e desconhecedores da própria inimizade que causam; esse caminho que se fecha sobre o sujeito isolado num pedido desesperado de encontrar qualquer coisa sagrada exterior ao seu eu esfacelado e que conduz de volta ao modus operandi patético daqueles que outrora se criticava; essa busca, assim ela se descobre, precisa abandonar a si mesma, para preencher o self pela réstia que lhe sobra de sanidade: o desencanto. O abandono de si mesmo é uma forma de apaziguar o indivíduo cujo mal-estar esvazia de valor o que quer ou quem quer que seja. Para se proteger do horror que vem de dentro, o eu coloca um anteparo como remédio, que, como todos, pode ser tóxico, desde que eficaz — ele desencanta o mundo e si mesmo de qualquer sacralidade. O sem-sentido termina encapsulando a paisagem, a desesperança figurada em qualquer relação, o contínuo da existência tornada regra até a morte — o desencantado enxerga um mundo gris, que perdeu não só suas bondades e maldades, mas também seus contornos cômicos ou patéticos. 

A solução determinante do desencantado é um tipo de renúncia do desejo não espiritualizada. O que os místicos orientais encontraram à base das meditações e em busca da elevação, o desencantado descobre de um modo subterrâneo e vulgar, mais como decepção e tristeza do que qualquer tipo de nirvana ou compleição. Nem a misantropia parece aceitável, por carregar uma metafísica sobre o homem, por supor que os homens não são dignos de conviver e que na solitude o indivíduo encontra algo sagrado. Pelo contrário, o desencantado não odeia os homens, ele só pensa que eles nada têm a lhe oferecer. Mais: não importa que eles tentem lhe oferecer algo, não lograrão atingir objetivo algum. De outra parte, tampouco ele se compraz na solidão. Ele pode, talvez, alertar-nos como espécie, com a desesperança típica dos desencantados: 

Nós somos acidentes
Esperando

Esperando para acontecer

Nós somos acidentes

Esperando

Esperando para acontecer

O que ocorre depois do acidente? O que cura, ou ao menos trata, ou talvez mantém vivo, o desencantado? O instante ou espaço qualquer onde o silêncio aplaca toda vontade e onde o caos exterior não penetra para rememorar o homem do caos que traz dentro de si: 

Um coração que está cheio como um aterro
Um trabalho que lentamente te mata
Feridas que não cicatrizarão
Você parece tão cansado e infeliz
Derrubando o governo
Eles não, eles não falam por nós
Eu levarei uma vida tranquila
Um aperto de mão de monóxido de carbono
Sem alarmes e sem surpresas
Silêncio silencioso
Este é meu último golpe, minha última dor de barriga
Sem alarmes e sem surpresas
Uma casa assim linda com um belo jardim
Sem alarmes e sem surpresas (me tire daqui)
Sem alarmes e sem surpresas (me tire daqui) 


Acompanhe a série de ensaios do psicanalista Felipe Pimentel

Do ressentimento à inveja, passando pelo ciúme e pela covardia, esta série aborda as diferentes faces do Mal não por conceituações psicológicas, mas por meio de manifestações da arte e do pensamento, sempre tão precisas na sua capacidade de ilustrar os dramas humanos.

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