Poucas perguntas soam tão extemporâneas quanto esta: O que é o Mal? Não somente pela superação do binômio bem-mal na contemporaneidade, mas também por, ao colocá-lo em maiúscula, supor o mal uma entidade. O questionamento não emula a escolástica medieval somente no tom, mas também no conteúdo: ser o mal uma entidade é a primeira pergunta de São Tomás de Aquino no consagrado livro dedicado ao tema. Caberia essa dúvida em uma época tão repleta de incertezas, tão frágil em suas regulações morais, diagnosticada e devastada pela filosofia nietzscheana além do bem e do mal?
Por certo, não se trata de apostar em qualquer espécie de moralidade prêt-à-porter, nalguma tábua de valores universais, supostamente escondida detrás das angústias do sujeito pós-moderno em seu, já clichê, vazio existencial. O senso comum atual, e até mesmo as mais elevadas filosofias, desdenha de qualquer tentativa de estabelecer juízos morais, aplicáveis para toda e qualquer situação — reflexos de um lento corroer da tradição desde o início das Luzes. A noção iluminista de liberdade individual e seu corolário lógico de dissolução dos valores tradicionais nos legaram a maravilha, mas também os impasses, da singularidade, do relativismo cultural, da criatividade e da autonomia. O reflexo na moralidade é intenso: no horizonte de todas as possibilidades éticas imaginadas, temos os quatro costados para percorrer, ainda que à deriva. A modernidade escolheu e segue escolhendo esse caminho, pois a liberdade paga o preço da incerteza. Todas as tentativas de amarrar sua autonomia, seja através da imposição de valores, seja através da encarnação de representantes obscuros de tradições inabaláveis, são imediatamente repudiadas e atacadas como autoritarismo barato, antiquado e violento.
Nesse quadro, falar no Mal como algo que instanciasse a maldade humana, estando em oposição ao Bem, remete-nos a um modo de pensar antigo, pois quais são os fundamentos para decidir o que é mal? E o que é o Bem? Donde tiramos os critérios para definir alguém ou algum ato como bondoso? Da religião? Da tradição? De todas essas instituições já fracassadas na sua tentativa de organizarem o social?
Evidentemente, não se trata de falar do mal nesses termos. Não poderemos encontrar o mal através de uma instância externa — religiosa, tradicional, ética, filosófica ou política — que o pré-defina, mas isso não significa que não o encontremos. Pelo contrário, mesmo detrás das mais relativistas e vanguardistas concepções morais atualmente vigentes, é muito claro que noções de mal circulam. E não se trata somente do mal evidente, as violências físicas e psicológicas de todo tipo, as agressões contra pessoas e culturas, as injustiças contra povos e nações ou mesmo as guerras inclementes que devastam países; mas se trata do mal que as próprias pessoas apontam nas situações mais triviais, que percebem no seu cotidiano comum, que as faz romper amizades, abandonar amores, chorarem, sofrerem, se irritarem ou se entristecerem; que as faz lamentar ou vociferar aos seus terapeutas ou amigos. Nós podemos desacreditar no mal como entidade, no mal como punição aos nossos pecados, no mal natural como reflexo dos nossos males morais, ou mesmo nos decálogos que poderiam defini-lo, mas isso em nada significa que não saibamos identificar as pequenas e grandes maldades que nos fazem padecer.
Não trataremos dos maus sentimentos mais profundos, psicologicamente falando, que sofremos. Não falaremos da insistente e simples tristeza, da sufocante angústia, do obscuro desamparo ou mesmo da incompreensível indiferença. São maus sentimentos de base, padecimentos que exigem todo um arranjo conceitual psicológico, cuja tentativa de definição escapa das capacidades desse projeto . Pelo contrário, trata-se de falar dos pequenos males que nos acometem, talvez menos intensos, mas insistentes, presentes no cotidiano de qualquer um. Essas pequenas torpezas que cometemos implícita ou explicitamente, os sentimentos silenciosos que possuímos e não confessamos, fraquezas ou pequenas dores que nos corroem com o tempo — um certo tipo de mal, mas um mal menor. Não por isso menos importante.
Em meio a toda a engenharia da alma atualmente vigente, que procura de modos finos extirpar da natureza humana toda sua maldade — maiúscula ou não —, forjando seres aparentemente magnânimos, repletos de uma energia única benevolente pronta para ser emanada, parece pertinente retomarmos nossas pequenas vilezas, não como um modo perverso de nos acusar alguma imperfeição, porém, pelo contrário, como um modo de nos reconhecermos, talvez um pouco mais falhos, mas acima de tudo humanos — e existe maneira mais sólida de aceitarmos o próximo do que aceitar antes a falha que nos cabe?
Que espécie de laço pode haver entre caóticas músicas de Radiohead e um célebre romance de Machado de Assis? Entre uma fábula de La Fontaine e um filme iraniano dos anos 1990? Teríamos como juntá-los numa mesma temática? O que eles podem ter em comum? Cada uma dessas obras possui as suas próprias leituras e a sua inserção num determinado contexto, bem como toda uma literatura interpretativa e crítica que busca abarcá-la. Mas aqui servem a outro pretexto. Em vez de buscarmos complexas e inacessíveis conceituações psicológicas para tratar desse tema, recorrendo a autores da história da psiquiatria ou da psicanálise, buscamos manifestações da arte e do pensamento, sempre tão mais precisa e genial na sua capacidade de ilustrar os dramas humanos. A arte, seja no cinema, seja na poesia, num romance ou até mesmo (especialmente, na verdade) numa fábula, consegue instanciar nossos dilemas de modo mais rico e, por que não, didático.
Por certo, há dezenas de autores que já trabalharam tais temas, e são aqui ou ali mencionados — mas não temos, de modo algum, a pretensão acadêmica. Ainda assim, cabem algumas observações sobre isso.
Na história do estudo das emoções, especialmente no que respeita à subjetividade moderna, poucos pensadores foram tão brilhantes quanto Spinoza em sua Ética demonstrada à maneira de Geômetras, certamente um dos livros mais incríveis, tanto em seu intento, quanto em sua realização. Muitos autores contemporâneos de Spinoza, especialmente Hobbes, são fonte do estudo dos afetos humanos, com a ressalva que abordá-los exige abarcar todo a sua metafísica — o que merece sempre algumas centenas de páginas. No século seguinte, já nas Luzes, Kant conseguiu formular um aparato conceitual que amparava a ética em uma epistemologia. Sua filosofia moral, por vezes inumana, é, no mínimo, uma fonte de inesgotáveis questionamentos e seus insights pontuais são tão precisos e refinados quanto os pressupostos mais fundos de seu pensamento. Porém, nessa época, o célebre economista Adam Smith abordou as emoções humanas num claro e ponderado livro chamado Teoria dos Sentimentos Morais, cujas noções seriam suficientes para trabalhar todos os sentimentos aqui abordados.
No século XIX, buscando resolver a encruzilhada aberta pelo Iluminismo, tanto o romantismo, quanto o realismo (enquanto categorias da área da estética) procuraram nas “profundezas do eu” ou nas “condições externas que determinam o eu” as explicações para nossos afetos. Um dos efeitos disso foi a ascensão da psicologia e da psiquiatria como ciências. Desde o século XVIII, pensadores como Pinel ou Bichat já trabalhavam a mente humana, mas no século XIX os cientistas da mente praticamente monopolizaram a investigação sobre as emoções. A mais robusta das teorias psicológicas, a psicanálise ofereceu uma constelação de conceitos para tentarmos entender o que se passa nos nossos afetos, ainda que não o saibamos conscientemente. Novamente, todos os temas aqui abordados poderiam sê-lo por essa constelação. A noção de desamparo tal como aparece em Freud certamente seria rica para estudarmos o mal em si; a compreensão de Melanie Klein sobre a inveja no seu famoso Inveja e Gratidão seria utilíssima para nosso capítulo no tema; o modo como Lacan entendeu o desejo seria perfeito para estudarmos a covardia; e assim por diante. Os estudos mais modernos em Psicologia e Filosofia, desde a inteligência emocional de Howard Gardner, até o mais recente Fiéis sobre as nossas emoções, de Robert Solomon, passando pelos interessantíssimos trabalhos de Steven Pinker, são grandes insights sobre os nossos afetos, numa chave bem moderna de pensamento. Não trataremos desses autores aqui, de modo acadêmico, o que não é o objetivo desta série, mas estão todos no imaginário da discussão, e aqui o registro não só por gratidão, mas também para encaminhar o leitor posteriormente a eles.
Dos males menores que poderíamos investigar, estão de fora a ingratidão, essa sobrevivência a uma dívida simbólica impagável, e a traição, tão múltipla em suas razões. Também poderiam ser tematizados os maus sentimentos e as más ações sem nome, isto é, aquelas pequenas ações que reconhecemos como imorais, mas não temos um conceito à disposição para aplicarmos a ela. Quando confessamos um segredo para alguém, e, posteriormente, esse alguém utiliza esse segredo contra nós mesmos — fazendo da intimidade e da confiança uma estratégia de domínio. O modo superior que alguém pode nos tratar, supondo que somos incapazes — tão exemplificado pela expressão inglesa Do not patronize me (cuja tradução usual “não me subestimes” se enfraquece por perder o patron do verbo, ao mesmo tempo agir de modo paternal e financiar alguém). Ou então, aquela maneira perversa de acorrentar alguém a si, ao manter-se, de modo prometido, como a única pessoa merecedora de seu amor, ao mesmo tempo em que leva à desvalia todos os outros pretendentes dele — uma falsa promissória que se vende através da escravização garantida do outro, disfarçando a penúria amorosa daquele que a vende. São capítulos, quem sabe, a serem escritos.
Pensando, lendo e escrevendo sobre o mal, ouvindo, no consultório, aqueles que confessam suas pequenas vilezas (e confessando também as próprias), pude ver que no fundo das pequenas maldades mais habitam a fragilidade e o desamparo humanos do que alguma entidade má em si. Nas maldades grandes, nas violências, que devemos sempre repudiar, habitam os anseios do homem em destruir o outro, em afastá-lo de si, de negar seu direito a ser; nas pequenas maldades, habitam paixões muitas vezes singelas, que não encontraram outra forma de se manifestar, a não ser essas tortas, atrapalhadas. Com exceção da inveja, que, já no título, atesto como o maior dos males menores (pela mensagem que carrega de fundo), e em um nível mais fraco, a arrogância, todos os outros são um caminho tortuoso de conexão com o próximo: percorrem o ressentimento, a covardia ou o desencanto, intenções e desejos que não sabem se colocar no mundo sem receio, fraqueza, confusão. São por vezes vontades temerosas, noutras ingenuidades frustradas. Mas não somos todos anjos caídos?
Acompanhe a série de ensaios do psicanalista Felipe Pimentel
Do ressentimento à inveja, passando pelo ciúme e pela covardia, esta série aborda as diferentes faces do Mal não por conceituações psicológicas, mas por meio de manifestações da arte e do pensamento, sempre tão precisas na sua capacidade de ilustrar os dramas humanos.