O coronavírus e o princípio da triagem
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por Flávio Ricardo Vassoler
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“Hoje parece vigorar o ‘ou – ou’, mas como se o pior já houvesse sido escolhido.”
Theodor Adorno e Max Horkeimer, Dialética do Esclarecimento[1]
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Há 75 anos – para mim e para você, a duração da vida; para a história e a memória coletiva, uma mera fagulha –, soviéticos, ingleses e estadunidenses, os vencedores da Segunda Guerra Mundial, começavam a desvelar ao mundo o genocídio perpetrado contra os judeus nos campos de concentração nazistas.
O imaginário e a culpa coletivos passaram a ser municiados, a partir de então, com cenas de escavadeiras amontoando, arrastando e desovando um sem-número de corpos esquálidos – verdadeiros sacos de ossos – em enormes valas comuns. A última marca de identificação individual entre os cadáveres indiscerníveis era a sequência numérica que os nazistas, durante os primeiros anos da Solução Final para a Questão Judaica, tatuavam no antebraço dos prisioneiros.
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Mais para o fim da guerra, quando os campos de trabalhos forçados foram convertidos em inequívocas indústrias de extermínio, as tatuagens numéricas já não eram feitas – os nomes das não-pessoas já não precisavam ser sequestrados. Em Treblinka, unidade fabril desde sempre em funcionamento como campo de extermínio, as altas produtividade e eficiência dos fornos crematórios lograram incinerar as valas comuns de Auschwitz e Dachau, de modo a substituí-las por pirâmides de pó humano. [Os faraós egípcios erigiram pirâmides como seus mausoléus eternos; o faraó Adolf Hitler erigiu pirâmides fugazes de pólen, para que o vento aspergisse as partículas (e a partilha) da culpa entre os milhões de súditos que, como rematados cidadãos de bem, votaram nos nazistas e alçaram o Führer, democraticamente, ao poder.]
Por tétrico que seja, ainda é possível discernir, numa vala comum, olhos esbugalhados e bocas abertas em agonia e súplica: O grito, do pintor norueguês Edvard Munch, desponta como derradeiro clamor pela vida.
A pirâmide de pó humano incinera quaisquer vestígios singulares de vida e transforma em afago até mesmo o brutal sequestro do nome dos prisioneiros.
No dia 1º de abril de 2020, o jornal Folha de S.Paulo estampa a seguinte manchete: “Cemitérios de SP têm ao menos 30 enterros por dia de mortos com suspeita de Covid-19”.
Consideremos a seguinte cena ficcional vista, inicialmente, através da janela panorâmica de um belo apartamento de classe média, em quarentena, situado nas imediações de um hospital público de grande porte: de madrugada, para não provocar a suscetibilidade dos cidadãos de bem, um caminhão com uma enorme carroceria vai recebendo o aporte de cadáveres envoltos por sacos plásticos pretos e (quiçá) individualizados com plaquetas numéricas afixadas ao dedão do pé direito. Quando a vala comum transborda, os funcionários fecham a carroceria a cadeado e entregam a chave para mais um motorista extenuado (“Quantas viagens eu ainda vou ter que fazer hoje, diacho?”) e sem máscara de proteção. Quando chega a mais um cemitério na periferia, o motorista ficcional aciona o mecanismo de inclinação da carroceria para que os sacos plásticos pretos sejam desovados em uma vala comum, de cujo interior só serão removidos os corpos reclamados pelos eventuais (e cada vez mais escassos) familiares, que, a despeito de não terem permissão para velar os parentes, podem manusear o seu pó, após a cremação, em pequenas urnas ficcionais.
Há quanto tempo você ouve, de privatistas neoliberais, que instituições de bem-estar social, tais como hospitais públicos de excelência, com UTIs providas de respiradores e instrumentos de proteção para seus profissionais, não cabem no orçamento público? [Contraída de forma nebulosa (e nunca auditada) junto a credores (inter)nacionais, a dívida pública abocanha, a priori, uma enorme fatia do erário, mas, a este respeito, os neoliberais e um filão considerável da grande mídia são tão eloquentes e necrófilos quanto os sacos plásticos pretos desovados em valas comuns.]
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os países realizem o isolamento social para que a metástase do coronavírus seja minorada. À falta de kits para a realização de testes em massa – a prevenção e o diagnóstico de pandemias também não cabem na usurpação privada do orçamento público, não é mesmo? –, a quarentena evita que assintomáticos e infectados de forma branda circulem, inadvertidamente, como bombas-relógio para os grupos que correm maior risco. Ainda assim, líderes neoliberais, necrófilos e democraticamente eleitos, preocupados em não minorar os ganhos dos financiadores de suas campanhas/fiadores de seu poder político, advogam o fim incondicional da quarentena e a retomada regular das atividades econômicas para impedir que o desemprego, a violência e a fome devastem o país.
Em face da crise econômica anterior à pandemia do coronavírus, mas por ela radicalizada, o economista brasileiro Eduardo Moreira propõe uma série de medidas progressistas para mitigar o sofrimento da população, sobretudo das camadas mais pobres: taxação de grandes fortunas; taxação de lucros e dividendos de grandes empresas e instituições financeiras; estabelecimento de uma renda mínima condigna, a ser custeada pelo Estado, para que as famílias possam sobreviver a esse período de crise.
Quando expoentes tradicionais da direita brasileira votam, na Câmara dos Deputados e no Senado, a favor da implementação da última dessas três propostas (o mirrado “coronavoucher”, no valor de R$ 600,00) e fazem menção à possibilidade de se colocarem em pauta as duas primeiras, a história nos mostra como, em períodos de profunda crise econômico-social, os donos do poder e seus representantes se veem compelidos a dividir para continuar a reinar.
Se, municiados pelo historiador judeu de origem britânica Eric Hobsbawm, nós nos lembrarmos de que a polpuda ajuda econômica estadunidense para os devastados países da Europa Ocidental após a Segunda Guerra, via Plano Marshall, e a aquiescência de suas classes dominantes para o estabelecimento de Estados de Bem-Estar Social, com ampla rede de proteção trabalhista e econômica para a população, se deveram ao medo do espraiamento do Exército Vermelho e do socialismo soviético para muito além da Cortina de Ferro, compreenderemos, resguardados os diferentes contextos históricos e o estreitamento atual do horizonte de expectativas à esquerda, o que significa ceder alguns anéis para manter os dedos.
Ainda assim, líderes neoliberais e necrófilos insistem em sustar a quarentena, mesmo que venham a ceifar, como collateral damage, a vida de um sem-número de seus próprios eleitores sadomasoquistas, que os alçaram ao poder e continuam a lhes dar sustentação. Ora, é por meio de tais discursos e práticas que podemos discernir, à queima-roupa, o princípio da triagem.
Em face da superlotação de UTIs e do iminente colapso do subfinanciado sistema de saúde pública, o princípio da triagem que norteia protocolos médicos internacionais determina que, se faltarem respiradores para os pacientes contaminados com o coronavírus, será preciso privilegiar os mais jovens, isto é, aqueles que têm mais chance de sobreviver.
Lembremo-nos, neste momento, de nossos pais e avós, pessoas amadas e dignas que trabalharam por nós e pela sociedade durante toda uma vida.
Segundo o princípio da triagem, nossos pais e avós, a origem e o sentido de estarmos aqui, não apenas vão morrer – eles devem morrer.
O mais forte devora o mais fraco.
O mais fraco morre, sozinho e desamparado, no túmulo de sua casa, mirando, já sem forças para chorar, a foto dos filhos e netos sobreviventes.
Só não esqueçamos que, hoje, já somos pais e, amanhã, seremos avós. (A não ser que, afinados com o caráter dúbio de nossa época, nós não queiramos assumir quaisquer relações que não possam ser revogadas.)
Para dissecar o princípio da triagem, o diretor bósnio Danis Tanovi?, em seu filme Testemunhas de uma guerra, nos apresenta o dr. Talzani, médico curdo responsável por um pronto-socorro de guerra improvisado em uma caverna em algum lugar do Iraque.
Na caverna empesteada pelo cheiro de sangue e putrefação e tomada pelos uivos dos soldados mutilados e eviscerados, faltam quase todos os instrumentos e medicamentos regulares para a prática da medicina. O dr. Talzani precisa realizar rápidas triagens para decidir quais pacientes têm efetiva chance de sobreviver: ele sonda as pupilas, tenta entreouvir balbucios e apalpa pernas tomadas pela gangrena. Quando se dá conta de que está diante de um combatente que irá sobreviver, caso lhe sejam serradas as pernas, sem anestesia, abaixo da linha dos joelhos, o médico deposita uma fita azul sobre o peito do paciente. Quando, no entanto, o dr. Talzani entrevê que é inútil despender os recursos escassos de sua caverna para cuidar de combatentes que só fazem agonizar com muito choro e ranger de dentes, o médico deposita fitas amarelas sobre o peito dos mortos-vivos e ordena que eles sejam levados, sem mais, para fora da caverna.
Em seguida, o dr. Talzani abandona o estetoscópio, o arremedo de bisturi e a serra para empunhar seu instrumento médico por excelência em tempos de triagem: uma pistola.
O médico sai de sua caverna infecta, vai até os moribundos recém-perfilados e, após entoar uma breve oração, enfia uma bala na cabeça de cada um deles.
Se quiséssemos chamar o dr. Talzani de monstro repulsivo que avilta o juramento de Hipócrates, o médico assim redarguiria:
– Vocês me xingam e gritam que eu nunca mais vou conseguir dormir por causa do remorso… Ora! Depois de disparar o tiro de misericórdia contra aqueles miseráveis e poupá-los do mais atroz, indizível e inútil sofrimento em seus últimos momentos de vida, eu me transformei em seu mais caridoso anjo da guarda. É claro que vocês, do alto de sua quarentena bem suprida e higienizada, não querem aceitar o embaralhamento entre os papéis do carrasco e do guardião, não é mesmo? Afinal, como é que a morte poderia redimir? E, ainda por cima, mortes tão brutais! Ora, mesmo que vocês não queiram levantar a tampa do bueiro, a podridão, de uma forma ou de outra, se alastra até vocês! Ora, meus caros, vocês só não querem puxar o gatilho – que alguém faça isso por vocês, tudo bem, mas que não sejam vocês, que vocês não sintam o cheiro da pólvora, que o estampido não os ensurdeça, que vocês não tenham que apagar da memória a última expressão de desespero e súplica. Vocês querem sobreviver, é claro – e quem não quer? Mas vocês querem sobreviver à distância, vocês querem sobreviver sendo inocentes, dolosamente inocentes. Pois eu trago uma novidade para todos e cada um de vocês: em tempos de paz, vocês podem fingir que eu não sou necessário e que, muitas vezes, vocês conseguem até mesmo me esquecer. Mas, em tempos de guerra, eu, dr. Talzani, sou o preço da sua paz.
Se, já resguardados pelo privilégio de nosso isolamento (de classe) social, nós também quiséssemos colocar a consciência e a compaixão em quarentena, o dr. Talzani resolveria nos narrar uma anedota edificante com a qual ele deparou no livro Como curar um fanático, do escritor israelense Amós Oz.[2]
Conta o dr. Talzani que, certa vez, um amigo de Amós Oz, que também era judeu e também era escritor, pegou um táxi à saída do aeroporto de Tel Aviv, cidade israelense que fica a uma hora de carro, se tanto, de Jerusalém.
O motorista, logo o literato percebeu, era, lamentável e odiosamente, um extremista, para quem todos os palestinos são terroristas e devem ser fuzilados sem quaisquer apelações.
Ao invés de se engalfinhar em uma discussão estéril e inglória com o motorista necrófilo ou aquiescer, de forma silenciosa e cúmplice, diante das barbaridades que ele se põe a disparar, o passageiro literato resolve interpelar o interlocutor, ficcionalmente, de modo a que os tiros extremistas saiam pela culatra:
– Quer dizer, então, que todos os palestinos, sem exceção, são terroristas e devem ser fuzilados sem mais?
– Mas é claro! – volta a bradar o motorista.
– Hum, meu caro, então agora você me deixou curioso… Como é que os palestinos devem ser fuzilados? À queima-roupa? De frente ou de costas? Com tiros na cabeça? Ou será melhor à distância, com mira telescópica, depois de atear fogo nas casas que, de qualquer forma, nós já íamos destruir para erigir nossos assentamentos que a ONU, essa inimiga de Israel, tanto condena?
Algo confuso, o motorista começa a coçar o cocuruto. Súbito, antes de ele esboçar uma resposta, o passageiro literato retoma a palavra:
– E tem mais, meu caro: quem serão os algozes dos palestinos? Será você? Serei eu? Você é casado? É, sim, eu tô vendo o teu anel. Tem filhos? Deve ter. Então, que tal se você, eu, tua esposa e a minha esposa, teu filho e a minha filha fôssemos à vila palestina mais próxima da nossa casa e fuzilássemos a primeira família com que topássemos, hem? Que tal, não te parece uma solução viável e à mão?
Ainda mais confuso e mirando, de forma desconcertada, o passageiro literato pelo espelho retrovisor, o motorista parece não acreditar no que está ouvindo – o motorista parece não acreditar que seu ódio fascista contra os palestinos esteja se materializando perto dele próprio; que ele tenha que assumir efetiva responsabilidade pelas mortes que alguém distante e desconhecido é quem deve realizar; e que ele e sua família se vejam diretamente implicados no banho de sangue.
É quando o passageiro literato, prestes a descer do táxi, propõe um último exercício de ruminação ficcional ao motorista:
– Imagine, meu caro, que, naquele sobradinho ali, veja só, esteja escondido um terrorista palestino. Ele se sente protegido e resguardado, mas você sabe que ele está ali, e você, meu caro, você está armado até os dentes. Você vai até lá, arromba a porta, pega o desgraçado de surpresa, dormindo como um inocente no chão da sala, e, antes de mais nada, você o alveja na perna, para que ele não possa fugir como um cão. Como o desespero que transtorna o rosto do terrorista desarmado provoca um sentimento de poder absoluto em você, você o mata de uma vez para não correr o risco de ser tomado pela mesma fúria que embriaga o terrorista em todos e cada um dos seus ataques hediondos. Súbito, quando está prestes a sair da casa satisfeito por ter livrado o mundo de mais uma aberração, você ouve um ruído estranho (um chiado de criança?) vindo de algum lugar. Caçador que é, você apruma os ouvidos com as mãos em concha e deduz que o barulho deve ter vindo do andarzinho de cima. Pé ante pé, você sobe o arremedo de escada com a pistola em riste e, ao chegar ao quarto, depara com uma jovem mãe, com os olhos negros mais esbugalhados que você já viu, amamentando um bebê de uns 2 meses (se tanto). Então, meu caro amigo, me diga, vamos lá: e agora, que fazer? Você vai disparar, à queima-roupa, contra mãe e filho?
Com o táxi já parado em frente ao local de descida do passageiro literato, o motorista, quiçá se sentindo algo nauseado, coça o cocuruto com sofreguidão e, sem se esquecer de pegar o dinheiro da corrida, se volta para o escritor e sentencia:
– Mas você é um homem muito cruel, hem? De onde foi que você saiu?
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Notas:
[1] Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 181.
[2] Amós Oz, Como curar um fanático. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.…
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Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor. Doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor de O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018) e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019). Escreve, periodicamente, para o caderno literário “Aliás”, do jornal O Estado de S. Paulo, para o caderno “Ilustríssima”, da Folha de S.Paulo, e para as revistas Veja e Carta Capital.