Freud, criador do inconsciente? – Parte 2

Freud não foi um criador do inconsciente, como alguns já pensaram, mas somente o cartógrafo de uma montanha que lentamente se anunciava.
O criador da psicanálise, Sigmund Freud

Por Felipe Pimentel

Na primeira parte dessa série sobre Freud, terminei com a seguinte pergunta: como Freud foi capaz de enxergar o que estava no inconsciente dos homens? Arrisco uma hipótese audaciosa: dado que o inconsciente seria a sede dos instintos reprimidos, de algum modo, tais instintos deveriam estar minimamente à vista para que Freud pudesse vê-los. E o que pode trazer os instintos à tona? O declínio da repressão. E esse declínio da repressão é mobilizado por quem? Pela quebra da moralidade que a sustenta. Assim, posso lançar minha hipótese de que Freud só pôde ver o inconsciente, pois algumas décadas de dissolução das tradições, oriundas do Iluminismo, erodiram as interdições, as repressões, deixando descoberto o inconsciente. Isto é, Freud não foi um criador do inconsciente, como alguns já pensaram, mas somente o cartógrafo de uma montanha que lentamente se anunciava. Algo que dá sustentação a essa hipótese é que, além de uma trajetória ao longo do século XIX de acesso ao “subterrâneo da natureza humana”, muitos outros autores também trilharam caminhos semelhantes aos de Freud (atestado pelo próprio Freud, por exemplo, no caso de Nietzsche).

Essa dissolução dos valores prosseguiu e, por conseguinte, o desvelamento dos conteúdos reprimidos dos homens. Isso teve como efeito a aceitação por parte dos homens de seus traços antissociais, selvagens, bárbaros. O véu da interdição foi retirado e sobrou a crua exposição dos instintos humanos (a Psicanálise, nesse ínterim, foi mais um dispositivo dessa tarefa de exposição). Os parâmetros sociais passaram a ser vistos lentamente como falsificações, artifícios criados pelos homens para ocultar sua natureza selvagem, brutal, venal. Essa visão é partilhada por autores da filosofia política, como Hobbes, porém, em Freud há um olhar para a repercussão psicológica do fenômeno. Quer dizer, se habitam no homem forças ocultas e selvagens e a civilização procura as ordenar, para onde vão essas forças? Elas são completamente apagadas? Freud pode perceber que elas seguem atuando inconscientemente, e que é na luta entre elas e a civilização que habita o mal-estar do homem.

Porém, o efeito da dissolução dos valores, da emergência da liberdade e da acessibilidade aos nossos conteúdos primitivos também trouxe novos problemas. Aos poucos, todos os parâmetros, fossem tradições ou valores morais, ou mesmo modelos comportamentais, tornaram-se algo a ser rejeitado, porque não só uma artificialidade da natureza humana, mas também algo que agiria contra o indivíduo em sua liberdade, espontaneidade e autenticidade – pois, por que eu haveria de travestir meus instintos, se todos os temos?

Viramos fanáticos da exposição do subterrâneo da natureza humana – as artes bem o perceberam: as vanguardas foram somente a instanciação máxima dessa inclinação. Assim, no lugar dos modelos de comportamento, das condutas prêt-à-porter, dos valores pré-concebidos, das tradições pré-organizadas, colocamos a liberdade e a autenticidade em uma determinada concepção de naturalidade com os instintos humanos. Extasiados com nosso espaço de atuação, libertos das tradições que se interpunham qual cortina no caminho de nossa visão, falsificando nossos instintos ao modelarem-nos e adequarem-nos ao status quo, abandonamos o estado de refém dos valores morais e ficamos diante da imensidão da liberdade, que nada mais é que a imensidão do nada. Que parâmetros? Quais valores? Onde estão as interdições? Contra o que se rebelar? Matéria para a reflexão de nosso próximo artigo.

Leia a primeira parte deste artigo:

Freud, criador do inconsciente? (I)

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