por Vinícius Müller
Já se foram algumas décadas desde que o caloroso debate acerca dos efeitos da globalização sobre a cultura e os costumes viveu seu auge. No princípio, o barulho maior vinha daqueles que defendiam que, com a globalização, costumes locais seriam ameaçados pela homogeneidade de uma imposição cultural que acompanhava, em tese, a imposição econômica. Seria, nesta versão, a nova fase do imperialismo. Agora sem pudor nenhum em suprimir culturas locais em nome da imposição dos valores norte-americanos. Nesta hipótese, comer feijoada era uma resistência ao avanço do domínio dos arcos amarelos.
Passado o tempo, o que se viu foi muito mais uma adaptação aos valores locais por aqueles que se espalhavam pelo globo. Ainda no exemplo culinário, os arcos dourados ponderaram seu cardápio entre seus tradicionais e globalizados sanduíches, de um lado, e ingredientes típicos das localidades onde se instalavam pelo mundo, de outro. Algo não muito diferente do que havia sido feito pelas multinacionais que se instalaram em diversos países ao longo do pós-guerra. Multinacionais como a Unilever se adaptavam aos costumes locais, criando marcas e produtos que refletiam a cultura do país que as recebiam. Ao mesmo tempo em que driblavam, ao menos parcialmente, a defesa protecionista da “produção nacional”.
Isso precipitou uma inversão da hipótese inicial. Na nova versão, a globalização não era uma ameaça aos costumes locais, mas sim a possibilidade do indivíduo optar. Ou seja, comer feijoada não era mais uma resistência, mas uma opção do indivíduo que poderia escolher sua refeição entre diversos cardápios de diferentes culturas. Assim, um indiano poderia comer na quarta-feira o hambúrguer sem carne bovina oferecido pela filial da lanchonete norte-americana em Déli, enquanto deixaria a culinária local para o almoço da família no sábado. A globalização se transformava de imperialismo em liberdade.
Entre todas as teses, a mais interessante teoria acerca dos efeitos da globalização sobre as culturas e os costumes foi feita pelo sociólogo espanhol Manuel Castells. As identidades culturais, ao mesmo tempo motor e resultado dos costumes e tradições, seriam criadas não mais pelas divisões e critérios tradicionais, como a família, a cidade, a religião e a nacionalidade. Em seus lugares, entraria uma multiplicidade de identidades, variáveis em suas geometrias e potencializadas pela revolução tecnológica que sustenta a globalização. Desta forma, um professor em São Paulo estaria mais próximo de um professor italiano, em seu modo de entender as grandes questões do mundo, do que de um operário em Recife. Ao mesmo tempo, teria uma forte identidade com japoneses por conta do gosto comum que têm por mangá. Maior do que tem, por exemplo, com admiradores da cultura fronteiriça do Rio Grande do Sul. E, certamente, uma identidade qualificada com frequentadores dos clubes de jazz de Nova Iorque, para onde vai a cada biênio. Maior do que aquela que guarda junto aos seus primos, admiradores de música sertaneja-universitária, que vivem na mesma cidade no interior de Minas Gerais na qual o professor de São Paulo nasceu e viveu até o fim da adolescência. E para onde vai todo fim de ano passar o Natal com a família e seus amigos de infância.
Ou seja, as identidades são, segundo Castells, tão múltiplas e variáveis no tempo e no espaço que seria praticamente impossível defini-las como sendo resultados da homogeneidade imposta pela globalização. Tampouco como fruto da adaptação entre o global e o local e, muito menos, como reflexo exclusivo das escolhas individuais. Seriam resultantes de todas elas ao mesmo tempo, assim como, impulsionadas pela revolução tecnológica, representariam a cultura e costumes característicos de um mundo sem fronteiras e globalizado. Em outras palavras, o avanço da globalização econômica e produtiva teria sido acompanhado pela criação de costumes, culturas, comportamentos e identidades também globais.
A globalização não era uma ameaça aos costumes locais, mas sim a possibilidade do indivíduo optar
Contudo, a pertinência desta associação entre uma globalização econômica e a formação de uma cultura global só é convincente se o seu avesso for verdadeiro. Ou seja, se a crise da globalização for acompanhada pela crise da identidade global. E, analogamente, se a revisão crítica à globalização econômica amparada em propostas nacionalistas for acompanhada pela reversão de uma identidade global em uma defesa de costumes locais. Vale notar que o avanço da globalização econômica também foi acompanhado pela ideia de que os valores da democracia liberal seriam fundamentais para que os países pudessem, da melhor maneira possível, participar do fenômeno de expansão dos mercados e das estruturas produtivas. A ascensão da China e seu híbrido entre economia de mercado e estado autoritário, assim como o trilema definido por Dani Rodrik em sua obra sobre os limites da globalização, colocam tal hipótese sob forte pressão e desconfiança. As analogias possíveis são simples: assim como a associação entre expansão global dos mercados e sistemas democráticos, antes vista como essencial, vem sendo questionada, as ideias acerca dos impactos da globalização na cultura e nas identidades também estão sendo desafiadas por algumas novas percepções e resultados concretos.
Duas delas se entrelaçam no novo livro do economista indiano Raghuram Rajan (The Third Pillar: How Markets and The State Leave The Community Behind). A obra do professor da Universidade de Chicago, que já foi economista chefe do FMI assim como presidente do Banco Central da Índia (seu país de origem), apresenta a possibilidade de, em um efeito muito veloz como a volta de um elástico, a revalorização de identidades comunitárias e costumes tribais ameaçarem a globalização. Isso porque, com os amplos questionamentos feitos nos últimos anos àquilo que costumamos identificar como sendo resultados econômicos do processo de globalização, o que também nos acostumamos a identificar como sendo o resultado cultural da globalização seria, do mesmo modo, questionado. E este questionamento volta-se à legitimidade de uma identidade global, geometricamente variável e múltipla em seus elementos constitutivos, e à defesa de certa pureza dos grupos menores, do sentimento de comunidade e de pertencimento tribal que, mesmo estando em desvantagem ao longo das últimas décadas, não deixou de existir. A imagem, amplamente usada por Rajan, é a que trata de um profissional “globalizado” e local ao mesmo tempo: alguém que obtém sucesso profissional em atividades exercidas em localidades distantes de sua origem e/ou em setores como tecnologia, bancário ou esportivo, mas cujo desejo é mostrar seus resultados aos amigos de infância, aos seus familiares ou à suas paixões juvenis. Ou seja, mesmo global, sua identidade continua sendo parcialmente local, assim como o verdadeiro reconhecimento viria de sua comunidade, de sua tribo.
Os alertas feitos por Rajan são óbvios. A desconfiança ao processo da globalização estimulada pela persistência e ampliação da desigualdade, pelos conflitos relacionados à imigração e pelo desemprego gerado pelos deslocamentos das atividades produtivas resulta, analogamente, na repulsa às identidades, aos costumes e aos comportamentos identificados como sendo também frutos da globalização. Quem ganha com isso são os sentimentos de pertencimento tribal e comunitário, em tese contrários à globalização. São estes sentimentos que vulgarmente sustentam as hipóteses absurdas sobre os males do globalismo, as teorias de conspiração sobre o plano de dominação mundial do “esquerdista” George Soros, entre outras tantas patéticas considerações. Contudo, também sustentam – e são sustentadas – por governos iliberais, de tendência autoritária e antidemocrática que se multiplicam pelo mundo.
As identidades são tão múltiplas e variáveis no tempo e no espaço que seria impossível defini-las como resultados da homogeneidade imposta pela globalização
Mas Rajan, também autor da melhor obra sobre a crise de 2008 (Linhas de Falha. Como Rachaduras Ocultas Ainda Ameaçam a Economia Mundial), não é nem um profeta do caos e muito menos um entusiasta dos populismos nacionalistas. Ao contrário, é um defensor nada ingênuo das vantagens da globalização e um intelectual que viveu, e ainda vive, a dualidade entre a identidade global que obteve em sua carreira internacional e suas origens indianas. Por isso, está mais preocupado em apontar como esta identidade comunitária, não obstante ser uma ameaça, pode ser também um elemento de fortalecimento da globalização. O desafio é parecido com aquele do início. O que parecia ser a imposição de uma cultura que homogenizaria as identidades nacionais, se transformou em liberdade, em alternativa e em novas e variadas identidades. Cabe aos verdadeiros defensores da sociedade aberta, global e democrática acharem a fórmula que faça o mesmo com as ameaças representadas pelas identidades comunitárias e tribais. Embora legítimas, tais identidades não estão sendo vistas como propulsoras e participantes da sociedade global. Ao contrário, foram capturadas pelos antidemocráticos, populistas e iliberais. Este é o desafio ao qual Rajan está tentando responder. Mais do que isso, este é o apelo que o economista indiano está nos fazendo.