Grafite e pichação são formas de arte? 

Conta a história da arte que a escultura Bird in Space, de Constantin Brancusi, criou um imprevisível alvoroço na alfândega dos EUA, em meados dos anos 1920, quando estava transitando para uma exposição em New York.

por Rodrigo Cássio Oliveira

Conta a história da arte que a escultura Bird in Space, de Constantin Brancusi, criou um imprevisível alvoroço na alfândega dos EUA, em meados dos anos 1920, quando estava transitando para uma exposição em New York. Incrédulos de que aqueles artefatos grandes e minimalistas pudessem ser uma obra de arte, os agentes do governo decidiram cobrar um imposto consideravelmente maior por sua importação como simples bem manufaturado. O imbróglio causou burburinho, e entrou para o rol das lendas sobre a dificuldade de diferenciar peças de arte contemporânea e objetos comuns.

Todo bom filósofo da arte deveria levar no bolso casos como esse. Embora a retenção da escultura de Brancusi já tenha entrado para o folclore do meio artístico, ela dá um exemplo concreto de que a filosofia da arte lida com questões que não se restringem ao universo de especialistas. Ora, quem poderia censurar a alfândega norte-americana por não conseguir reconhecer uma obra de arte nos anos 1920, sabendo que esta dificuldade motivaria o trabalho de muitos estetas em todo o restante do século? Havia mais razão na dúvida dos funcionários da alfândega do que supõe a risada fácil que hoje ela pode produzir.

O problema do reconhecimento da arte reapareceu como um tema de interesse social nessas primeiras semanas de 2017, pela ação da prefeitura de São Paulo, que substituiu os grafites de algumas das principais avenidas da cidade pela pintura uniforme dos muros com uma tinta cinza, insossa e burocrática. Como a muitos que admiravam os grafites que a prefeitura apagou, a ação do governo Doria me pareceu equivocada. Ao julgá-la de um ponto de vista puramente estético, ou melhor, a partir do que o gosto e a experiência visual me dizem, é evidente que a “limpeza” dos muros onde havia grafites resultou em um empobrecimento da paisagem urbana paulistana.

A mesma coisa não poderia ser dita, porém, sobre a retirada de pichações, contra as quais João Doria mantém um discurso mais incisivo. Sem um critério estético para ser aplicado, já que os próprios pichadores o dispensam, a avaliação da pichação tem uma natureza distinta da que fazemos do grafite. Por mais que os dois fenômenos se cruzem em intrincadas relações entre os seus criadores, o Estado e terceiros (os proprietários de muros privados, por exemplo), podemos distingui-los em função dos seus valores estéticos e da maneira como se apresentam aos receptores.

Cavalos & rinocerontes paleolíticos: em disputa por espaço numa caverna, há 32.000 anos grafiteiros e pichadores batem cabeça sobrepondo-se em suas paredes. (Foto: Jean Clottes, equipe científica da caverna de Chauvet)

Um bom ponto de partida é a observação de que nós gostamos, ou não, dos grafites. Das pichações, porém, nós não podemos “gostar” nem “não gostar”, basicamente porque elas não se propõem a ser um objeto do gosto. Essa distinção em relação à experiência suscitada pelo grafite e pelas pichações poderia balizar uma teoria estética da chamada street art, se a tendência dos filósofos profissionais da área não fosse desconsiderá-la. O segundo passo a ser observado tem justamente a ver com isso. Se não podemos “gostar” das pichações, por que elas encontram defensores inclusive entre pessoas que admitem as diferenças sensíveis que a separam do grafite?

A resposta a essa pergunta sugere o espírito ultrapolitizado de uma parcela muito grande da arte contemporânea. Quando alguém aprova uma pichação, o que geralmente ocorre não é a emissão de um juízo de gosto, mas sim a declaração de um apoio ideológico. Esse apoio costuma ser vago e não ter fundamento empírico. É como se aprovar a pichação significasse “estar do lado” dos oprimidos, do povo ou dos marginalizados. O que nunca se coloca em questão, porém, é se tais entidades abstratas e totalizantes (os oprimidos, o povo, os marginalizados…) realmente se reconhecem e se veem expressadas na ação dos pichadores. Será mesmo que a pichação é um fenômeno que representa grupos sociais em desvantagem na sociedade? Será que os pichadores representam algum grupo social além deles mesmos?

Essa dúvida elementar é omitida porque os defensores da pichação simplesmente não a consideram relevante. Despertar reflexões polêmicas é bem menos prático que citar as autoridades intelectuais que estão em voga. Assim ocorreu, por exemplo, na 29a Bienal de São Paulo, em 2010. Ao justificar a inclusão de pichações na exposição, o curador-chefe, Moacir dos Anjos, tinha na ponta da língua o nome do filósofo francês Jacques Rancière, para quem uma “arte crítica” é aquela que produz dissensos, reconfigurando a maneira pela qual o mundo sensível é partilhado entre os membros de uma comunidade.

Para o curador, em entrevista na época da exposição, “o pixo borra e questiona os limites usuais que separam arte e política”, porque a política é “o espaço formado pelos atos e gestos que abrem fissuras nas convenções que organizam a vida comum”. Nós até encontramos no discurso de Moacir dos Anjos um conceito de “política” ligado a uma ideia compreensível de “arte crítica”; mas não encontramos, com a devida clareza, o próprio conceito de arte. Na verdade, somos apresentados a uma diluição do “âmbito artístico” em uma noção problemática do “âmbito político”, que despreza o valor da busca pelo consenso nas democracias modernas. Dificilmente poderíamos contar com os seguidores de Rancière para resolver problemas alfandegários.

Isso, é claro, só surpreende quem esperava que fosse diferente. Há filosofias e filosofias, até mesmo para um meio artístico tão militante. Algum tempo depois de Bird in Space criar celeuma no aeroporto dos EUA, já nos anos 1950, um filósofo neowittgensteiniano chamado Morris Weitz propôs que a intenção de definir a arte fosse substituída pelo objetivo mais modesto de identificá-la. Para tanto, Weitz desenvolveu um método conhecido como o argumento das semelhanças familiares. Ele consiste, basicamente, na concepção da arte como um conceito aberto. Tentar defini-la, então, seria algo como construir um bloqueio para o novo e o imprevisível, restringindo as possibilidades criativas dos artistas. O abandono do esforço de definição, porém, não implicaria que a arte não pudesse mais ser reconhecida.

Esse reconhecimento ocorre pela familiaridade, ou seja, pela percepção de semelhanças entre o que já reconhecemos como arte e aquilo que se candidata a ser classificado assim. Quando as semelhanças são raras e tornam complicado o reconhecimento, cabe a nós decidirmos se vamos ou não expandir o conceito para considerar o objeto em questão uma obra de arte. A decisão de considerar Bird in Space uma obra de arte só foi possível pela expansão do conceito de arte para cobrir a escultura moderna. Por isso, a escultura de Brancusi acabou sendo liberada pelos funcionários da alfândega, mesmo não possuindo as qualidades figurativas ou a graciosidade das peças clássicas com que eles talvez a estivessem comparando.

A filosofia de Weitz já não é atual como entre os anos 1950 e 1970, mas ainda é muito interessante para casos como o da distinção entre grafiteiros e pichadores em São Paulo.

Para entender o motivo, vale notar o quanto os readymades de Duchamp são um ponto limítrofe para a discussão weitziana sobre os critérios de reconhecimento. A pá de neve ou o urinol estabeleceram o fato de ver o objeto dentro de uma instituição de arte como o último critério a distingui-lo como obra de arte, já que eles não se diferenciavam sensivelmente de outras pás de neve ou urinóis existentes do lado de fora dos museus e galerias, e que ninguém ousaria chamar de obra de arte. O que fazem os grafiteiros, então, quando recusam a institucionalização e firmam os pés do lado de fora dos museus e galerias?

Alguém poderia argumentar que eles vão além da ideia de institucionalização da arte, mas isso só é parcialmente verdade. É verdade porque o caráter efêmero do grafite é uma superação do princípio de durabilidade das obras, o que sequer os readymades haviam superado. Esse é um aspecto importante, que vincula formalmente o grafite às pichações, mas não os vincula mais do que aos happenings, por exemplo.

Não é inteiramente verdade, porém, porque antes de promover este avanço o grafite dá um passo para trás e recupera o ideal de uma arte geradora de experiências estéticas que modificam a nossa percepção comum dos objetos. Nesse aspecto, o grafite e as pichações já se mostram fatalmente distintos. Ainda que alguém considerasse que um prédio, muro ou escultura pichados são experiências estéticas oferecidas aos transeuntes, ele não seria capaz de provar que a pichação pode romper com a percepção comum da cidade. Pelo contrário, as pichações aprofundam a experiência da cidade como ruína e destruição, banalizando-se rapidamente. Os grafites, por sua vez, são capazes de criar pequenos novos mundos.

Mais que a falta de similaridade entre um muro grafitado e um muro pichado, contudo, a pichação carece de critérios de reconhecimento que lhe assegurem um lugar na história da arte, o que não falta ao grafite. Alguns dos grafites de São Paulo de que mais gostei de apreciar empregaram com maestria as cores primárias, mesmo que não as tivessem colocado em uma tela, como Mondrian; outros me lembraram de Picasso ao expressar uma humanidade fragmentada e horrenda, mesmo que tenham ficado longe de consegui-lo com a mesma qualidade e consciência formal de Guernica.

A efemeridade da pichação, quando a aceitamos como uma forma de política, não vai além de um gesto imaturo que rejeita a estética no momento em que muitos já o fizeram com mais inteligência. Por isso, é um gesto condenado ao esquecimento, como o são aqueles erros cometidos na rebeldia da juventude. A efemeridade do grafite, ao contrário, é uma promessa de que a cidade pode ser diferente, conservando o caráter utópico que animou muitas das vanguardas do século XX. A sua resistência na memória atesta que o ato de apagá-lo também é uma realização da sua essência. Theodor Adorno intuiu corretamente que as obras viriam a ser fogos de artifício.

O grafite, em aspectos significativos, pertence à família da arte moderna. A sua negação não é o muro “doriano”, mas sim o muro duchampiano; não é um muro pintado de cinza, mas sim um muro colocado dentro de uma galeria.

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