por Diego Penna Moreira, Lucas Manzoli de Almeida, Matheus Cherulli Alcantara Viana, Thiago Mirales
O envolvimento de Gustavo Küerten em qualquer evento é garantia de interesse do público e da mobilização da opinião dos brasileiros. Uma das características de um ídolo é que o povo, em maior ou menor grau, enxerga nela um pouco de si mesmo. Em sua carreira o ex-tenista personificou, por anos, a luta do brasileiro.
Ao cair vítima das afiadas presas do Leão e defender-se pessoalmente no âmbito de uma autuação pela Receita Federal, Guga direcionou os holofotes da opinião pública para um debate sobre o tão criticado sistema tributário brasileiro. Estamos diante de uma excelente oportunidade de discutir o impacto da tributação no Brasil, além da própria relação entre o Fisco e os Contribuintes.
A Receita Federal cobra do atleta Imposto de Renda referente ao período de 1999 a 2002, por valores auferidos e não declarados. No caso, as receitas foram reportadas e devidamente tributadas na Empresa Guga Kuerten Participações e Empreendimentos, criada pelo tenista junto com seus familiares, e que é responsável por explorar os direitos de imagem do ex-atleta. As alegações fornecidas pelo atleta junto ao Fisco não foram aceitas. Guga recorreu, então, como última esfera administrativa ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o CARF. Até o momento, Guga teve um voto a favor, da relatora Patrícia da Silva e dois contrários à tese. O julgamento foi interrompido por um pedido de vista e deve ser retomado em Novembro.
No entendimento da Receita Federal, os direitos de imagem, por serem “personalíssimos”, não podem ser tributados segundo o regime das pessoas jurídicas, e sim atribuídos diretamente ao próprio Guga, resultando em maior carga tributária.
Há quem entenda de outra forma e apresente os mais diversos argumentos a favor da conduta do ex-atleta. Sem fazer juízo de valor, o Código Civil vigente contém ao menos um dispositivo bastante interessante a respeito da cessão de direitos de imagem. O artigo 950-A, ali incluído em 2011, traz disposição expressa no sentido da possibilidade de cessão a pessoa jurídica de direitos de imagem de que seja detentor o sócio de EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada). Noutros termos, nossa legislação admite de forma bastante clara a possibilidade de que pessoa jurídica seja constituída para a exploração de direitos de imagem do sócio.
A defesa de Guga fundamenta-se, essencialmente, com a disposição do artigo 87-A da Lei 9.615/98, quando expressamente dispõe que: “o direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo”. Além disso, a empresa de Guga exige estrutura física e um corpo de funcionários, o que atestam as operações a ela incubidas, inclusive para fins tributário-fiscal. Desta forma, as receitas auferidas seriam devidas à empresa de Guga que administra seus contratos e não à pessoa física, ainda que os contratos de prestação de serviços versem exclusivamente na imagem no tenista.
Antes que se diga que tal possibilidade existe apenas no caso de EIRELI, e não no caso de outros tipos societários, como a sociedade limitada (LTDA), é importante considerar visão diversa: o motivo para que ali fosse incluída a permissão expressa seria exatamente para evitar que pairasse qualquer dúvida sobre a possibilidade de conferência de tais direitos à EIRELI. Isso se justificava à época, já que a introdução da EIRELI trazia uma mudança paradigma em relação à própria noção de “sociedade”, que até então exigia ao menos a presença de dois sócios, além de sermos adeptos já de longa data no Brasil de uma tradição legislativa que separa de forma absoluta o conjunto de bens e direitos que forma uma empresa do patrimônio de seus sócios.
Do ponto de vista econômico é claro que o Guga, assim como qualquer outro atleta profissional de alta performance, construiu a sua imagem e conquistou tantos títulos graças ao esforço de muitas pessoas envolvidas. Embora esses atletas disputam competições chamadas individuais, eles dependem de um esforço coletivo que compreende diversas pessoas como treinadores, preparadores físicos, nutricionistas, entre outros. Segundo a federação internacional de tênis, um jogador do circuito internacional gasta anualmente pelo menos 160 mil dólares com toda a sua equipe. Além da parte técnica, cada vez mais estes esportistas contam com profissionais de marketing e de mídia que são responsáveis por construir a sua imagem para os fãs, transformando o seu nome em verdadeiras marcas, determinando ao jogador o que ele pode vestir, aonde ele deve sair e como se comportar, maximizando assim a receita com patrocínios e direitos de imagem.
Assim, a insistência do fisco em considerar os prêmios recebidos ou as verbas decorrentes de exploração de imagem como intransferíveis, de acordo com a ideia de “direitos personalíssimos”, não é apenas antiquada, mas também inibe uma maior profissionalização dos nossos atletas e das empresas deste segmento que cuidam de gestão da carreira e de sua imagem.
A verdade é que, como inúmeros outros, o tema da tributação da imagem de atletas não foi trazido à pauta pela primeira vez no caso Guga e seguirá objeto de disputa até ser definitivamente resolvido. É verdade, também, que essa mudança de paradigma nunca foi totalmente digerida por parte da doutrina e pela própria Receita Federal, que se julga – erroneamente – responsável por aprovar qualquer mudança legislativa que envolva tributação, e que tem posição bastante enfática no sentido de que os serviços – ou em nosso caso, direitos – “personalíssimos” devem ser tributados diretamente na figura da pessoa física, tanto que incluiu em 2016 o “planejamento tributário envolvendo direitos de imagem de profissionais” como um dos alvos preferenciais em seu Plano Anual de Fiscalização[1].
O problema da tributação no Brasil, contudo, não está somente relacionado à imagem de atletas. É apenas mais uma ilustração do internacionalmente célebre (por sua complexidade e efeitos colaterais) sistema tributário brasileiro.
Apenas para que se tenha uma ideia, somente um imposto, o ICMS, possui 27 regramentos diferentes vigentes no Brasil (um para cada Estado, além do Distrito Federal). Além disso, temos 3 regimes diferentes de tributação da renda para as pessoas jurídicas (Lucro Real, Lucro Presumido e o Simples Nacional). As regras para apuração das contribuições ao PIS e à COFINS são mais um cipoal de exceções do que propriamente de regras.
Qual é a consequência deste emaranhado tributário? A classe média e as classes mais desfavorecidas, como sempre, sofrem com o desemprego, já que além do custo tributário em si, o resultado dessa complexidade é um absurdo custo de conformidade (compliance), onde estima-se um gasto de cerca de 2600 horas por ano só para dar cumprimento à legislação. É praticamente impossível gerir uma empresa, por menor que seja, sem a assessoria jurídica e contábil. E pior que pagar tributos, só mesmo incorrer em despesas para poder pagar tributos. Não esqueçamos que o dinheiro para arcar com esses custos e com salários, no fim das contas, é o mesmo.
“ Pagamos o preço pelos oportunistas, da falta de entendimento sobre o esporte. Para o atleta ter alto rendimento, ele precisa de uma estrutura profissional. No Brasil, hoje, você tem que provar que é inocente — afirmou Guga.”
O Brasil está no topo de rankings globais de complexidade tributária e tempo despendido anualmente pelos indivíduos e sociedades para a gestão dos impostos e taxas existentes. Pesquisas do Fórum Econômico Mundial[2] dão conta que o Brasil é considerado o terceiro pior país em legislação tributária para influenciar novos investimentos (em uma lista de 140 países), ou seja, o sistema tributário torna o Brasil um dos países mais complexos para se investir no mundo. Incontáveis legislações e atos normativos nas mais diversas esferas públicas transpiram ineficiência e insegurança jurídica.
Ao adicionar um componente de risco, incerteza e custo ao desenvolvimento de qualquer atividade empresarial no país, a legislação tributária prejudica a competitividade do Brasil e desestimula o desenvolvimento do setor empresarial e a geração de empregos. No caso do esporte, inibe a ascensão de novos atletas e que eles possam competir internacionalmente em igualdade de condições.
Num país que acabou de sediar as olimpíadas recebendo os melhores atletas do mundo e vendo o que há de mais moderno, temos do lado fiscal um sistema altamente complexo, lento e que desestimula a profissionalização dos nossos atletas. Enquanto o Brasil não dá um passo no sentido de simplificar e reduzir a carga trabalhista do indivíduo e das sociedades, o país tenta jogar uma partida de tênis carregando um elefante sobre os ombros.
Diego Penna Moreira é administrador de empresa e membro do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL)
Lucas Manzoli de Almeida é administrador de Empresas, advogado e membro do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL)
Matheus Cherulli Alcantara Viana é advogado, membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL)
Thiago Mirales é advogado e economista, sócio-fundador da Atlas Tax Consulting e membro do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL)
[1]https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/plano-anual-fiscalizacao-2016-e-resultados-2015.pdf
[2] https://reports.weforum.org/global-competitiveness-report-2015-2016/competitiveness-rankings/