Ideólogos não conhecem o amor

Quando nós saímos da civilidade insípida e indistinta da urbanidade partilhada?

por Felipe Pimentel 

Na primeira parte desta série sobre o ideólogo, afirmei que ele sofre de um problema de visão: costuma simplificar a realidade. Ele o faz não só com os problemas abstratos, mas também com as pessoas. Isso porque quem compreende as pessoas pelas lentes de uma ideologia apreende qualquer atitude, ideia ou pensamento dessas pessoas como o veículo de uma visão de mundo que não é delas, mas a qual elas estão submetidas. Assim, quando o ideólogo ouve a opinião de alguém, ele não ouve precisamente aquela pessoa, mas a ideologia que ele julga que ela está transmitindo. Pior: ele não escuta aquela pessoa singularmente, mas ouve todo um grupo ao qual ele supõe que ela pertence sem o saber, e ao qual ele deve aderir ou repudiar. Não fala uma voz, mas um coro. Assim, como toda ideologia contém em si também as respostas às ideologias que lhe são rivais, rapidamente o ideólogo consegue atirar ao seu interlocutor os mais variados rótulos – que, muitas vezes, o próprio interlocutor desconhece (fenômeno lido pelo ideólogo como mais um certificado da alienação do interlocutor perante a ideologia que lhe subjaz).

Na realidade, é um problema especular: quem está ideologizado é ele, e ele pensa que é a realidade. Com o tempo, todos os eventos do mundo e todas as condutas das pessoas ao redor são vistas como meros reflexos, efeitos de ideologias mais ou menos ocultas, das quais as pessoas estão mais ou menos conscientes e contra as (ou em favor das) quais devemos lutar. Não sem uma boa dose de messianismo e temor apocalíptico envolvida, diga-se. Os sujeitos, cada qual com suas histórias e particularidades, seus dramas e suas conquistas, progressivamente se tornam pessoas sem rosto; e o menor traço que emitem, que as poderiam distinguir de todas as outras, torna-se, ao contrário, um caminho para equipará-las a quaisquer que ajam do mesmo modo – um processo de pasteurização de comportamentos e vivências.

Esse processo foi intuído e muito bem trabalhado pela literatura, especialmente pelas narrativas distópicas, ao mostrar que nos sistemas ideológicos totalitários (para mim, praticamente uma redundância) o coletivo adquire uma força sobre o indivíduo de modo que ele perde a sua identidade – condição sine qua non para a violência totalitária. Nesse processo, o ideólogo simplifica a realidade porque ele desumaniza as pessoas. O que queremos dizer aqui com humanizar e desumanizar? Não é claro. Explico.

Na cidade das pessoas comuns, somos todos iguais – é uma surpresa que nos respeitemos tanto sem nos conhecermos. Vem a pergunta: quando nós saímos da civilidade insípida e indistinta da urbanidade partilhada? Exatamente quando conhecemos uma pessoa, não naquilo que ela possui de comum com todas as outras, mas, pelo contrário, naquilo que ela possui de mais singular. Pouco importa que o que ela nos desperte seja a amizade mais fraterna, ou a paixão mais arrebatadora, o que nos vincula a alguém é exatamente aquilo que essa pessoa possui e que nenhuma outra pode replicar, emular, repetir.

Gostar de alguém, amar alguém, fraternal ou eroticamente, é exatamente ter por esta pessoa um sentimento intransferível para outra, irrepetível com outra, a maravilha das relações humanizadas e a fonte de todo o sofrimento de perda. Este sentimento apoia-se nos menores traços, nos mais discretos gestos, nas mais imperceptíveis características das pessoas; nas experiências que vivenciamos com elas e que, na memória, dividimos; no diálogo que partilhamos somente com ela, pois aquele específico olhar nos ampara de modo que nos sentimos seguros, ao contrário da estranheza que o desconhecido e o distante nos desperta. Por isso, o ideólogo ou bem não ama, ou bem, quando supõe amar, ama o que é comum, isto é, o que partilha com o outro de supostamente igual – congratulação que, por mais festiva que seja, é exatamente o contrário de amar.

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