A importância das questões identitárias

Em resposta ao ensaio de Rogério P. Severo — sobre os "irracionalismos identitários", produto de uma radical mudança no discurso dos movimentos negro, gay e feminista das últimas décadas —, Érico Andrade fala sobre a importância das questões identitárias e sobre racionalidade na compreensão de nossa formação histórica.

por Érico Andrade

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Em artigo publicado no Estado da Arte, o meu colega Rogério Severo associa o que ele chama de movimentos identitários com a irracionalidade. Para sustentar a racionalidade como instrumento público e central no debate ele recorre à racionalidade científica. E para criticar os movimentos identitários ele reclama das variações históricas, segundo ele radicais, das teses que sustentam a caracterização, dentre outras coisas, do racismo.

Do modo como o texto é apresentado ele parte de dois pressupostos. (1) O modelo científico tem o monopólio da racionalidade e que posições contrárias a esse modelo podem gerar instabilidades normativas; (2) A variação histórica das teses que caracterizam o racismo atrapalha e, nas suas palavras, dela decorrem “bizarrices” que de algum modo deveriam ser debeladas.

O artigo do referido colega estranhamente adota uma compreensão da linguagem que se pauta numa espécie de fixação da referência na medida que considera que é um problema a variação do significado das palavras. O exemplo que ele oferece é Martin Luther King Jr., eleito por ele como espécie de personalidade inconteste, cujo discurso sobre a importância de reconhecer as pessoas pelo caráter e não pela cor da pele poderia ser tomado nos dias atuais como racista. O que me parece estranho é se dizer “pasmo!” com o fato de que o que se compreende como postura racista varia historicamente. Como ocorre com os conceitos e termos de nossa linguagem as questões raciais e as questões ligadas às minorias têm uma gramática cuja variação se inscreve nas práticas sociais que efetivamente variam historicamente. Nessa perspectiva, não se trata de julgar Martin Luther King Jr como racista de modo anacrônico, mas de reconhecer que na atual configuração gramatical dos termos com os quais se pensa o racismo Martin Luther King Jr poderia estruturar o seu discurso de modo diverso do que fez à sua época. As questões raciais não são estanques, mas um processo que como tal é histórico.

Por outro lado, insistir num espécie de marcador biológico — o que aproxima o texto de Rogério Severo da falácia naturalista, conforme a qual se deriva normas morais a partir de comportamento dos animais ou biológico — para despolitizar o debate incorre em dois problemas.

(1) Recorrer à ciência para mostrar que a ciência é importante além de ser um argumento circular, desconhece que as críticas à ciência não visam simplesmente negar a ciência (como de fato faz a extrema-direita). Mas denunciar que a cultura atravessa a ciência e molda a própria compreensão científica do mundo como demonstrou muito bem Thomas Kuhn. A ciência não é incólume às questões da cultura e aos seus padrões como também muitas vezes reproduz sistemas de opressão. Basta tomar como exemplo o racismo científico que por meio da ciência tentava justificar a inferioridade do negro. Ademais, são notáveis os erros de análises em estudos de comportamento de culturas mais antigas, como denunciam os estudos da epistemologia feminista, por conta do viés patriarcal que os conduz.

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Thomas Kuhn (Foto: Biblioteca Max Planck)

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(2) Adotar uma postura científica, seguindo certo modelo epistemológico é razoável, mas restringir a racionalidade a esse modelo é justamente o que pode caracterizar a ciência com uma forma de opressão por ela ditar de modo unilateral o que é a racionalidade e desautorizar os demais discursos que não são o seu espelho. É importante perceber que criticar a ciência não significa negá-la, mas consiste numa tentativa de abrir horizontes para outras epistemologias e outras formas de pensar o mundo que não cabem apenas na cultura científica americana abundantemente citada no texto de Rogério Severo.

Por fim, tratar as questões colocadas por movimento sociais com categorias como “culpa”, “pecado” etc. revela um caráter religioso muito maior de quem redigiu o artigo do que algo que se infira das pautas dos movimentos sociais. Pesquisadoras aqui no Brasil, com pesquisa empírica tão exigida por Rogério Severo em seu artigo, como Lia Schucman têm apontado que não se trata de pensar as questões da branquitude por meio de categorias como culpa. Esses termos não ajudam a perceber o caráter histórico e estrutural das questões raciais que longe de serem marginais às questões econômicas no USA e, sobretudo, no Brasil, estão no centro da produção e respectiva concentração de riqueza. Ou seja, as questões raciais moldaram a economia do país e a sua radical divisão de classes. Por isso, colocá-las no centro não é reduzir o debate sobre a desigualdade, mas é lhe oferecer um caminho histórico condizente com a formação social do Brasil.

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Protesto contra a morte do menino João Pedro, de 14 anos, no Rio de Janeiro (Foto: Reuters/Ian Cheibub)

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