Filosofia

Irracionalismos identitários

por Rogério P. Severo

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Houve uma mudança tão grande no discurso dos movimentos feminista, negro e gay das últimas décadas que já não é fácil saber o que dizem. Uma parte desses movimentos preserva o vocabulário e as reivindicações herdadas da geração anterior, mas a seu lado atua hoje uma nova onda de intelectuais e ativistas com ideias bem diferentes. Essas mudanças foram tão radicais que algumas das teses centrais de líderes negros, gays e feministas do passado são hoje abertamente tidas como racistas, homofóbicas e misóginas. Além da inevitável confusão que isso causa, prolifera nesse meio uma quantidade tão grande de bizarrices intelectuais e morais que penso estar na hora de dizer basta. Uma parcela da produção intelectual desses movimentos tornou-se abertamente anticientífica e semirreligiosa. É preciso separar as reivindicações legítimas por justiça e igualdade de oportunidade pleiteadas por mulheres, negros e gays das aberrações intelectuais que se imiscuíram nesses movimentos.

Vejamos um exemplo. Nas décadas de 1960 e 1970, reivindicava-se igualdade de tratamento e oportunidade, sem discriminação de sexo, gênero ou cor de pele. No seu discurso mais famoso, Martin Luther King Jr. sonhou para seus filhos com “uma nação onde eles não serão julgados pela cor de sua pele mas pelo conteúdo de seu caráter”. Seu ideal inclusivo e baseado em conceitos universais de humanidade e cidadania era “cego para a cor de pele”. Hoje — pasmem! —, esse mesmo ideal é tido como racista pela nova geração intelectuais militantes. Ibram Kendi, por exemplo, escreveu: “A ideia comum de alegar ‘cegueira para a cor de pele’ é semelhante à noção de ser ‘não racista’ — do mesmo modo que o ‘não racista’, o indivíduo que que é cego para a cor da pele ostensivamante ignora raças, não enxerga o racismo e acaba caindo no racismo passivo”. Eis a primeira bizarrice: o principal líder negro mundial dos últimos cem anos, verdadeiro ícone moral de nossos tempos, foi um racista, segundo Kendi.

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Martin Luther King, Jr.

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A manobra, é claro, só é possível porque o significado da palavra “racismo” foi alterado. A rigor temos hoje dois conceitos de racismo sendo usados lado a lado, embora a palavra seja uma só. O conceito antigo é o que todo mundo entende e usa. É o que consta nos dicionários e na nossa Constituição (art. 5º, XLVII), que o define como crime inafiançável e imprescritível. O conceito novo, também chamado de “racismo sistêmico”, descreve — corretamente, diga-se — mecanismos sociais largamente inconscientes e automáticos de discriminação racial. Trata-se de um conceito descritivo de estruturas sociais, e não uma categoria moral aplicável a indivíduos. Não há indivíduos sistemicamente racistas, pois a ideia de sistema racista só faz sentido no âmbito social. Mas eis uma segunda bizarrice, bastante comum nessa nova literatura: ao não se distinguirem adequadamente os dois conceitos, infere-se um do outro. A filósofa brasileira Djamila Ribeiro, por exemplo (mas nisso com certeza não está sozinha), em seu Pequeno Manual Antirracista (2019, p. 37) faz exatamente isso ao sustentar que “É impossível não ser racista tendo sido criado em uma sociedade racista”. Trata-se de uma inferência inválida. Pode ser que seja empiricamente verdadeira a afirmação de que os indivíduos de sociedades sistemicamente racistas são, de fato, todos individualmente racistas. Mas ela tampouco apresenta indícios empíricos disso. Os indícios apresentados são de racismo sistêmico e inconsciente, não de racismo no sentido tradicional da palavra (associado a palavras ou ações). A consequência moralmente indesejável desse tipo de raciocínio é que se tem uma condenação moral generalizada de todo mundo em nível individual, mesmo daqueles indivíduos que nada disseram ou fizeram de moralmente condenável. Alguns críticos dessa novíssima moralidade, como o linguista John McWhorter, vêm chamando a atenção para o seu caráter semirreligioso: é como se, ao nascer em um país como o Brasil, as pessoas herdassem uma espécie de pecado original. Todos teríamos essa pecha moral negativa, que exige de todos um ritual constante de contrição e expiação. Alguns americanos — sabidamente mais puritanos que nós — vêm ativamente engajando-se em rituais desse tipo nas últimas semanas, ajoelhando-se em penitência, imolando-se simbolicamente e lavando os pés de seus irmãos oprimidos. Na ausência de mecanismos eficazes de absolvição da culpa, resta aos contritos buscar bodes expiatórios, como se vê na crescente e cada vez menos compreensível onda de cancelamentos (ver aqui) e linchamentos virtuais. Todas as religiões têm disso. Não é agora que isso vai mudar, ao que parece.

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John McWhorter (Reprodução: The Atlantic)

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Vejamos outro exemplo. Na década de 1980, o movimento gay sustentava que a homossexualidade não era propriamente uma opção sexual, mas uma inclinação em boa parte inata, produto da biologia e da psicologia de cada um. Isso era dito em oposição a religiosos fundamentalistas que insistiam em dizer que se tratava de uma depravação moral, a ser curada por tratamentos, e em oposição a psiquiatras do passado que sustentavam tratar-se de uma patologia. Hoje, os intelectuais mais influentes do movimento LGBTQ+ dizem exatamente o contrário do que diziam os gays da década de 1980. Em vez de afirmar origem em parte biológica do comportamento gay, a nova geração enfatiza a “construção social do gênero”, como se a biologia não fosse em boa medida determinante do comportamento de todo mundo, inclusive dos gays. Em Problemas de Gênero (1990, p. 10 do original), por exemplo, Judith Butler escreveu: “A presunção de um sistema binário de gêneros implicitamente retém a crença em uma relação mimética entre gênero e sexo em que o gênero espelha o sexo ou é de algum outro modo restringido por ele.” Essa presunção, ela sustenta, seria falsa, pois o sexo biológico não imporia restrições ao gênero, isto é, não imporia restrições à manifestação comportamental da sexualidade ou à sua experiência subjetiva. Ora, essa é uma afirmação flagrantemente falsa. Não apenas contradiz o que diziam os gays da década de 1980, como também a maior parte da literatura científica em psicologia e biologia sexual das últimas quatro décadas (ver, por exemplo, o livro de Robert Sapolsky, Behave, ou este, de Debra Soh). Gêneros não são um “artifícios livres [free-floating]” da nossa cultura, como diz Butler, mas manifestações comportamentais e sociais de realidades biológicas — admitem variações culturais e sociais, mas apenas dentro dos limites permitidos pela biologia sexual. Recentemente, a propósito, a escritora J. K. Rowling, autora da série Harry Potter, foi cancelada (ver aqui) por militantes transsexuais por escrever que o sexo biológico é real. Novamente, uma obviedade dessas só tem como ser negada pela modificação descarada do sentido da palavras, no caso, da palavra “sexo” — uma modificação promovida não em decorrência do avanço do nosso conhecimento empírico sobre o assunto, mas para satisfazer uma teoria de análise social sem nenhuma base empírica. Essa confusão dos significados das palavras não é mero efeito colateral, mas um propósito deliberado da teoria queer de Butler, a saber, o de produzir instabilidade e confusão normativa, para usar o seu próprio jargão.

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J.K. Rowling (Reprodução: Reuters/Toby Melville)

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Há muitos outros exemplos desse mesmo tipo. O fenômeno já está bem documentado em livros como os de Christina Sommers, Who Stole Feminism?, Steven Pinker, Tabula Rasa, e Pluckrose & Lindsay, Cynical Theories. A mudança aconteceu sobretudo a partir da década de 1990. Até então, as teses sustentadas pelos movimentos feministas, negros e gays eram primariamente políticas e morais. Reivindicava-se a efetiva implementação de direitos já reconhecidos pela tradição liberal e democrática clássica. Eram movimentos via de regra neutros com relação a teses empíricas sobre a natureza da sociedade. A partir da década de 1990, duas teses empíricas passam a ser sistematicamente sustentadas: (1) a de que todas as relações sociais são relações de poder e (2) a de que nessas relações sociais as motivações predominates são as de grupos e não as de indivíduos. O resultado principal dessa mudança foi a introdução de um modelo de análise social cujo conceito central é o de opressão de grupos. Ele funciona como um filtro através do qual todos os fenônemos socais são vistos. Estabeleceu-se, então, uma visão de mundo reducionista e monotemática, centrada das relações de poder. Não apenas a economia passou a ser vista dessa maneira, mas também o conhecimento, a linguagem, as relações sexuais, a religião, a arte, a medicina, o amor, a amizade e, a rigor, todo e qualquer fenômeno social.

É inevitável que modelos de análise reducionistas desse tipo produzam resultados bizarros. Chamo atenção aqui para apenas dois. O primeiro é que embora boa parte das suas afirmações sobre a opressão de grupos pretendam ser factuais, em geral os estudos empíricos sobre o assunto são desconsiderados. Às vezes são simplesmente ignorados. Outras vezes são denunciados como sendo produto de uma objetividade “eurocêntrica” ou “branca” ou “patriarcal” ou “heteronormativa” ou algo assim. Chama a atenção a completa ausência de referências à hoje abundante literatura científica sobre sexo e gênero em livros como o de Judith Butler, ou à literatura econômica ou sociológica sobre desigualdades sociais em livros como o de Ibram Kendi. Não apenas as afirmações feitas não são testadas, como denunciam-se os próprios mecanismos de teste (as ciências) como sendo eles próprios instrumentos de opressão. Desse modo, a discussão racional e a busca da verdade ficam todas reduzidas a lutas pelo poder. Em razão disso, o resultado da aplicação universal desse modelo de análise merece ser chamado de irracionalista. Os conceitos que podem guiar uma discussão pública racional (por exemplo, os conceitos de ciência, objetividade, verdade, humanidade, bondade e virtude) são denunciados como instrumentos de opressão branca, patriarcal, eurocêntrica e heteronormativa, o que efetivamente transforma toda divergência racional em um exercício de força bruta.

Em segundo lugar, o tipo de atitude que esse modelo de análise induz nas pessoas que o adotam é semirreligiosa. O pertencimento a um grupo social passa a ser o elemento primário da sua identidade e a posição daquele grupo nas hierarquias de poder social é definidor do seu valor moral. Segue-se que quem pertence a um grupo socialmente oprimido merece ser valorizado e que quem pertence a um grupo opressor precisa se submeter a algum tipo de conversão moral. Típico desse tipo de semirreligiosidade é o best-seller americano Não Basta Não Ser Racista, Sejamos Antirracistas (em inglês: White Fragility), de Robin DiAngelo. No final do livro (cap. 12), ao falar da sua própria identidade branca, a autora singelamente faz a sua profissão de fé ao dizer que “luta para ser ‘menos branca’”. Do ponto de vista comportamental, sua atitude é incrivelmente semelhante a de religiosos que lutam para ser menos pecadores. O problema, claro, não está no fato de ela ser religiosa, mas no tipo de religiosidade que inconscientemente escolheu para si. Penso que o resultado dessa mistura de anticientificismo, semirreligiosidade e ativismo intelectual é potencialmente desastrosa para todos, inclusive — ou, talvez, sobretudo — para negros, mulheres e gays, cujos pleitos legítimos e moralmente bem fundamentados por justiça e igualdade de oportunidade se veem efetivamente prejudicados ao se associarem a uma moldura de análise social racionalmente indefensável.

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Robin DiAngelo, autora de ‘White Fragility’

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Todos já conhecemos o irracionalismo semirreligioso e anticientífico da extrema direita, do qual o negacionismo climático, os movimentos antivacinas e teorias conspiratórias de toda sorte fazem parte. Durante um bom tempo, os ambientes universitários brasileiros e mundiais ofereceram uma saudável resistência a esse tipo de pensamento. Hoje, no entanto, internamente a essas mesmas universidades prolifera quase sem críticas um novo tipo de irracionalismo, desta vez produzido por intelectuais de esquerda. São equívocos espelhados, a meu ver, em que a principal sacrificada é a própria razão.

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Rogério Passos Severo

Rogério P. Severo é Professor Adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e PhD em Filosofia pela University of Illinois.