Leveza e felicidade

Seja no célebre tratado sobre a ética de Aristóteles, nas célebres Confissões de Santo Agostinho, nas diatribes entre estoicismo e epicurismo, ou nos mais pedestres debates modernos sobre as nossas escolhas, toda sociedade ou cultura traçou caminhos ou respostas para a felicidade.

por Felipe Pimentel

Em A Educação Sentimental, de Flaubert, há um diálogo entre Fréderic e a Sra. Arnaux, no caso sobre o matrimônio, que transita entre a singeleza e a ironia, tal como segue:

– Quer dizer, então, que a felicidade é impossível?

– Não! Mas não se pode encontrá-la jamais no engano, nas inquietações e no remorso.

– O que importa, se ela compensa com alegrias sublimes?

– A experiência é muito custosa.

O diálogo ultrapassa as limitações do tópico “matrimônio” e parece lançar alguma luz sobre o nosso modo de lidar com a felicidade, ou a busca dela, em nosso tempo, que eu chamaria de modo higienista. Um modo que muito nos promete, mas parte de um possível equívoco sobre a natureza humana. Explico.

Seja no célebre tratado sobre a ética de Aristóteles, nas célebres Confissões de Santo Agostinho, nas diatribes entre estoicismo e epicurismo, ou nos mais pedestres debates modernos sobre as nossas escolhas, toda sociedade ou cultura traçou caminhos ou respostas para a felicidade. Na Idade Contemporânea, o Iluminismo elevou a felicidade a tema central e até mesmo “direito humano”, consagrado em declarações e constituições. Tanto melhor que o tenha feito, mas as luzes também trouxeram-nos empecilhos para o tema. A crença de que a natureza humana pode ser transformada, disseminada nos autores das Luzes e levada às últimas consequências por Rousseau, apontava para a possibilidade de extirparmos as maldades que nos assolam: o cinismo, a mentira, o ciúme, a possessividade, a inveja; também maldades maiores, aquelas que insuflam a guerra de todos contra todos; todas estas poderiam ser apagadas da nossa mente e do nosso comportamento, bastando que, no caso de Rousseau especialmente, o entorno, o ambiente que nos circunda fosse modificado. Quer dizer, as maldades, pequenas ou grandes, que todas as cosmogonias, religiões e visões de mundo diziam habitar o interior da alma humana, passaram a ser nada mais que reflexos de um meio corrupto e corruptor.

Sugere-se, assim, que podemos realizar o sonho – alas! – de transformar a natureza humana, seus afetos e pensamentos: temática frequente na literatura de ficção científica, utópicas ou distópicas. Muitas éticas e religiosidades tentaram transformar a natureza humana também, mas diferiam em três pontos principais: (i) eram sistemas externos ao indivíduo, que se reportavam a ele; e (ii) eram interpretantes dos dilemas morais de cada um. A tecnologia da alma iluminista é diametralmente oposta, pois os indivíduos podem – e devem – desenvolver não só um sistema de pensamento e emoções próprio, mas independente dos sistemas externos ou pré-prontos, especialmente porque os sistemas externos são enganosos, avariados ou maus. Por um lado, melhor para nossa liberdade individual, por outro, possivelmente idealizador de nossa natureza – e aqui temos a terceira diferença entre os sistemas “antigos” e o “esclarecido” contemporâneo: os primeiros sempre tematizavam a natureza humana como habitada por demônios de toda sorte (os indivíduos estavam marcados por sentimentos maus ou egoístas, instintos destrutivos, pecaminosos, ou como quer que chamemos); do outro lado, os sistemas pós-iluministas passaram a acreditar numa futura natureza humana purificada.

Que mal isso tem?

Das mais refinadas práticas de purificação esotérica, passando por algumas exageradas noções de politicamente correto até as modernas “energias” boas, estamos todos tomados por um discurso de nos afastar de qualquer pensamento ou sentimento negativo, como se eles fossem forças (curiosamente sempre externas) que intoxicam nosso caminhar em direção à nossa evolução moral purificada. Queremos leveza e nenhuma renúncia; amor e nenhuma cobrança; desejo a nenhum custo – e a experiência, ela não é custosa?

Não estou certo, mas lancemos uma ressalva (que aqui o faço na bela formulação de meu analista): “a porta de entrada dos afetos, bons ou maus, é a mesma”. Ao que acrescento: quem não sabe odiar, também não sabe amar.

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