por Felipe Pimentel
A liberdade de escolha também cobra seu preço. Tudo aquilo que entra em seu domínio abre um leque de opções que, por um lado, nos possibilita a singularidade que tanto apreciamos, mas, por outro, nos joga no deserto da falta de parâmetro. No que diz respeito à vida psicológica, os tais “parâmetros” são as tradições, legados transmitidos de geração a geração: tudo aquilo que é valioso para uma geração é legado como caminho obrigatório para a próxima. Porém, a época contemporânea possui a tendência de quebrar tradições e de inserir liberdade naquilo que se julga obrigatório. Tanto melhor, obviamente. Esta abertura traz o frenesi da livre escolha, os caminhos e descaminhos das experimentações mais variadas e permite todo um campo de interrogações e questionamentos. A característica dos nossos tempos é buscar nossa identidade naquilo que nos permitem escolher. Assim, a cada geração uma nova fenda nas tradições é aberta e é ali que a nova geração vai buscar se reconhecer. E, do ponto de vista psicanalítico, lá onde buscamos nos reconhecer é que vivemos nosso horror e nossa maravilha.
Há uma tendência nos século XX e XXI de cada geração romper com valores e tradições da geração anterior, apostando em áreas passíveis de trazer felicidade diferentes das que lhes foram legadas. Em cada geração, uma área da vida foi descoberta em sua liberdade, tornando-se a aposta do que conferiria sentido à vida das pessoas, que preencheria o cotidiano com o horizonte que lhe dá norte, que aplacaria qualquer dúvida existencial ao se apresentar como o que “realmente importa”. Esses âmbitos da vida assumem um caráter que chamamos de um “interpretante” de determinada época ou geração, a saber, por sua importância central, por seu protagonismo, é o campo no qual cada tempo tentou se realizar; e também uma zona de conflito, pois se torna o vínculo pelo qual se dialoga – para romper ou afirmar – com a geração anterior.
Acompanhemos essa erosão sucessivamente ao longo das gerações dos séculos XX e XXI.
A geração nascida entre os anos 1920 e 1940, conhecida como os “tradicionalistas”: hoje são os avôs e avós das novas gerações, viveram na era de privação do entreguerras, cresceram num ambiente familiar rígido e permeado de valores religiosos e buscavam um emprego fixo para poder sobreviver. O grande dilema dessa geração foi sua relação com a religiosidade, pois a geração de seus pais (a geração nascida na virada do século XIX para o XX) vivenciara a religião como organizadora da vida social, e agora ela se esvaziava de sentido, tornando-se mais um ritual repetitivo e obrigatório do que uma crença enraizada. Tudo bem, outros planos da vida lhes deram satisfação, mas os seus conflitos com a religião foram o teatro de seus dissabores. Na velhice, o valor simbólico da religião retorna numa tentativa de resgatar sua função como sentido da vida.
A geração seguinte, os famosos baby-boomers, nascidos no pós-guerra, época mais próspera e segura que a de seus pais. Por óbvio, já não adotaram qualquer grande relação com a religião, sendo a família o interpretante dessa geração. Cresceram em um ambiente familiar rígido com o casamento, porém ao longo de sua vida, “descobriram” que o casamento e a manutenção da família a qualquer preço não era uma obrigatoriedade, mas uma opção. Quando estavam na meia-idade, centenas
de divórcios (uma prática impensável para a geração de seus pais) provocaram toda sorte de dificuldades, sendo a fonte de suas alegrias e das suas maiores dores.
Os filhos dos baby-boomers, a geração X, nascida de fins da década de 1960 até meados dos anos 1980. Seu contato com a religião, se houve, houve de modo artificial nas escolas confessionais, e se assumiu algum feitio na prática o fez travestido de espiritualismo new age); sua relação com o casamento e a família havia enfraquecido, pois viram seus pais se separarem; de modo que a área da vida que descobriram livre e passível de realização foi o trabalho. Competitivos, desafiadores, empreendedores e aficcionados pelo trabalho, tornaram-se a famosa geração workaholic, ao ponto de o trabalho engolir as mais distintas áreas de sua vida, sendo ao mesmo tempo o que viabiliza e inviabiliza suas vidas – chegando ao ponto de surgir como resposta à pergunta como andam as coisas? Ou mesmo à quem você é? Nessa aposta, tiveram com o trabalho o que seus pais tiveram com a família: descobriram que a rigidez com a qual o tomavam podia ser descartada, terminando por se “divorciarem” dele, romperem abruptamente em nome de audazes opções, como largar a arquitetura para viajar para tentar a vida na Indonésia. Sua fonte de satisfação tornou-se também sua maior danação, numa busca desesperada de realização.
A geração Y, por sua vez, nascida nos pós-anos 1990, nem estudou em escolas religiosas (sendo que nas suas aulas de religião, se existiram, tiveram aulas sobre a igualdade de todas manifestações
religiosas ou qualquer espécie de relativismo moral). Seus pais ou se separaram ou até mesmo nem se casaram, fazendo-os conviverem muitas vezes com namorados (as) do pai ou da mãe em relações tão curtas que nem adquiriam estatuto de padrasto ou madrasta. Da geração de seus pais ou imediatamente anterior, aprenderam que o trabalho era fonte de dissabores e exaustão, relegando-os a uma abordagem relax com o trabalho, descompromissada, expressa na fórmula trabalhar para viver, ao invés de viver para trabalhar. Vivem em impasses profissionais insolúveis, abandonam empregos rapidamente e desistem de opções vocacionais por outras totalmente diversas. O que se viu foi o esvaziamento de áreas inteiras da vida: a religião completamente desconhecia e incapaz de criar laço social ou se apagou ou se travestiu num fraco espiritualismo cuja maior manifestação foi a pratica semanal de meditação; a moralidade diluída nos relativismos desorientados ofereceu trânsito pelo mundo, porém auto-desconhecimento e carência de pertencimento a um lugar natal; a família fragmentada se mostrou uma instituição longínqua e especialmente avessa ao anseio nômade da geração; o amor esvaziado das suas promessas mais profundas e perenes não conseguiu substituto à altura na liberdade sexual; o trabalho estafante e sem sentido apresentou uma mesmice cujo anseio de autenticidade não podiam suportar. Não suficiente, a postergação da vida adulta lhes relegou a uma adolescência estendida, em que nada na vida parece dar algum norte ou oferecer um porto de relevância, um motor para se levantar toda manhã e “batalhar”.
Nessa busca ansiosa do sentido de suas vidas, eis que algo se apresentou: apostaram na politização de seus comportamentos como a via pela qual suas vidas teriam valor: seus comportamentos, desde o consumo até a sexualidade, foram permeados pelas mais sutis e complexas problemáticas políticas, envolvendo questões de gênero, raça, classe social, etc. Assim como a religião para os tradicionalistas, o casamento e a família para os baby–boomers, ou o trabalho para a geração X, a política assumiu o papel de interpretante dessa geração, que, como todo interpretante, foi e é o prazer e a dor de serem o que são. É uma conquista incrível, por certo, como foram as das outras gerações – por mais que muitos não compreendam ou resistam. Para as gerações anteriores, todas as querelas que a próxima geração inventa e problematiza parecem muito estranhas e alheias, exageradas ou amalucadas. Esta estranheza é antes choque de geração do que razão fundamentada: aquele que está aferrado a uma tradição pouco compreende dos conflitos que a liberdade dá em determinado campo. Se os tradicionalistas não entenderam os divórcios traumáticos dos baby-boomers; se estes não compreenderam os dramas profissionais da geração X; a geração X também não conseguirá acompanhar muito as sutis problemáticas das questões de gênero pela geração Y. Mas fica a ressalva: alguém negaria a importância da liberdade com as tradições, com o casamento, com a escolha religiosa, profissional e sexual?
A única dúvida mais difícil, porém, vem para as próximas gerações: e os nascidos no novo século, a geração Z, hiperconectada, criativa e colaborativa, que habitando mais as redes sociais que a vida real pouco distinguem entre o privado e o público – com o que preencherão de sentido suas vidas? O que lhes restou?