por Adriano Moraes Migliavacca
Em 1962, na cidade de Kampala, Uganda, na Universidade de Makerere, ocorreu uma Conferência de Escritores Africanos de Expressão Inglesa, que congregou participantes de uma nova geração de escritores africanos: se na geração anterior, os francófonos se destacaram, nos anos de 1960 o inglês parecia ser a nova língua literária para a África: Christopher Okigbo, Ezekiel Mphahlele, Chinua Achebe, Wole Soyinka, J. P. Clark, entre outros, eram os novos nomes nas letras africanas.
Havia, no entanto, os que não estavam convencidos de ser esse o melhor rumo a se tomar, mas sim um caminho inteiramente errado que levaria a literatura africana até um beco sem saída: não sendo o inglês (e, por sinal, nem o francês) uma língua africana, como poderia preencher a função de língua literária para o continente? Esse posicionamento ficou marcado particularmente em um artigo publicado no ano seguinte ao da conferência pelo crítico e político nigeriano Obiajunwa Wali, que tinha como nome “The Dead End of African Literature?”. Em seu artigo, redigido em inglês, Wali critica os participantes da conferência – e a ideia geral da mesma – por em nenhum momento questionarem o fato de uma conferência de escritores africanos se dar inteiramente em uma língua europeia. Acreditava o crítico nigeriano que era a missão dos escritores africanos formar nas línguas nacionais da África uma literatura que levasse para a escrita algo da riqueza e dos recursos que se viam nas literaturas orais tradicionais, fazer com os idiomas nativos aquilo que fora feito com os idiomas ocidentais por seus escritores mais destacados. Afinal, para esse crítico, uma literatura africana escrita em inglês fazia tanto sentido quanto uma literatura italiana escrita em hauçá.
Desde que a escrita ocidental começou a ser usada na África para fins artísticos – um desenvolvimento bastante recente –, essa é, naturalmente, uma questão que ocupa e inquieta um sem número de literatos no continente, que oscilam entre um compromisso percebido com as línguas e caracteres culturais próprios aos povos autóctones do continente e as vantagens que oferecem, em termos de possibilidade de projeção e difusão, os idiomas ocidentais. Afinal, é sempre importante lembrar que a escrita em um idioma ocidental possibilita não apenas que a obra do autor seja conhecida fora do continente africano, mas também ao longo do mesmo. A realidade linguística da África é de tal forma diversa – como, de resto, também o é a realidade cultural – que não há, nos dias de hoje, um idioma que possa servir de língua franca para todo o continente. Diante dessa realidade, opiniões e propostas diversas se apresentam.
Além do já citado Obiajunwa Wali, outro autor que se manifestou com veemência nas mesmas linhas foi o romancista queniano Ng?g? wa Thiong’o, que, após construir uma carreira sólida e de grande celebridade na língua inglesa, abandonou o idioma europeu para escrever em seu g?k?y? nativo. Em sua defesa do uso de idiomas nativos no âmbito da literatura, wa Thiong’o adota uma perspectiva essencialmente marxista. Lembramos que, para Wali, o principal motivo para se adotarem línguas nativas era exatamente a necessidade de uma língua ter uma literatura escrita para poder se preservar e avançar; wa Thiong’o não parece discordar disso, mas vê, além disso, na adoção de um idioma europeu como língua literária uma forma de dominação cultural em que se reproduzem as mais evidentes dominações política e econômica. Ao se substituir o idioma nativo, em que se dá toda a estruturação da realidade cultural dos falantes e sua forma de perceber o mundo, por um idioma estrangeiro, está-se produzindo, segundo wa Thiong’o, uma forma de dominação da mente que leva a uma situação dividida na qual se vê uma ruptura entre o âmbito da língua escrita, a língua que se aprende na escola e que se encontra em livros, e a língua da comunicação diária. É em tal situação que se perpetuam o enfraquecimento da cultura nativa e o fortalecimento da cultura estrangeira.
O ensaio em que wa Thiong’o articula tais ideias, “The Language of African Literature”, publicado em 1986, recebeu uma resposta aguda e por vezes mordaz do romancista nigeriano Chinua Achebe. Em seu livro “The Education of a British-Protected Child”, Achebe ironiza o nacionalismo de wa Thiong’o e suas descrições de realidades idílicas anteriores à chegada dos colonizadores, além de rejeitar sua teoria de que os idiomas europeus tenham sido impostos pelos colonizadores. Segundo Achebe, a educação das crianças africanas, da forma como foi originalmente organizada pelos colonizadores europeus, se daria nos idiomas nativos. No entanto, em face de uma realidade linguística tão variada, os próprios africanos demandaram das autoridades educacionais que fossem ensinadas as línguas europeias. Tal estratégia buscava estabelecer uma língua comum entre as diferentes etnias que ocupavam os países africanos sem permitir que a língua (e, portanto, a cultura) de uma ou de algumas dessas etnias adquirisse uma importância exagerada em relação às outras. Havia chefes tribais que chegavam a pagar caro por professores particulares para que seus filhos aprendessem melhor a língua europeia. Achebe parte desses fatos para defender o uso do inglês como língua literária na Nigéria. Tal uso é de extrema importância para que se unam os mais de duzentos grupos linguísticos vivendo na Nigéria. O mesmo se poderia dizer para a construção de uma literatura africana na qual autores de diferentes nacionalidades possam se ler uns aos outros e trocar suas influências.
É notável como o posicionamento de wa Thiong’o tem bases mais abertamente ideológicas enquanto o de Achebe se ergue sobre considerações práticas. Outrora vimos Senghor defender o francês como língua literária para a África em geral, devido, antes de tudo, às virtudes vocabulares, sintáticas e prosódicas que ele encontrava nesse idioma. A questão da língua literária na África subsaariana segue aberta e complexa, mas talvez seja bom lembrar o poeta caribenho Derek Walcott, morto este ano, quando, ouvindo um entrevistador se referir ao inglês em que escrevia como “língua dos dominadores”, respondeu imediatamente: “Não considero o inglês a língua dos meus dominadores, considero a língua um direito de nascença”.