O momento de ver os pobres

"A pandemia da COVID-19 iluminou iniquidades que colocaram as pessoas pobres em maior risco de sofrimento. O Papa Francisco recentemente apontou em uma entrevista: 'Este é o momento de ver os pobres'." Um ensaio de Joachim von Braun, Stefano Zamagni e Marcelo Sánchez Sorondo, na AAAS, traduzido por Adriano Bechara, João Cortese e Marcos Paulo de Lucca Silveira.

por Joachim von Braun, Stefano Zamagni, Marcelo Sánchez Sorondo, à Science

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A pandemia da doença do coronavírus 2019 (COVID-19) iluminou iniquidades que colocaram as pessoas pobres — tanto em países de baixa renda quanto em países ricos — em maior risco de sofrimento. O Papa Francisco recentemente apontou para isso em uma entrevista: “Este é o momento de ver os pobres”.

Até que a ciência encontre medicamentos apropriados e uma vacina para tratar e prevenir a COVID-19, o paradoxo de hoje é que todos precisam cooperar com os outros e, ao mesmo tempo, se autoisolar como uma medida de proteção. No entanto, enquanto o distanciamento social é bastante viável para as pessoas ricas, as pessoas pobres, aglomeradas em favelas urbanas ou em campos de refugiados, não têm essa opção e carecem de máscaras de proteção e de instalações adequadas para lavar as mãos. Para lidar com os riscos nas cidades grandes e densamente povoadas dos países em desenvolvimento, é nosso dever apoiar a prevenção, testando, fornecendo acesso a equipamentos de proteção e empreendendo um grande esforço para construir hospitais de campanha destinados a isolar as pessoas infectadas.

Além disso, a separação digital entre ricos e pobres pode estar custando vidas. A distribuição não-equitativa de tecnologia e recursos on-line significa que informações cruciais sobre a COVID-19, especialmente os alertas preventivos e as recomendações antecipadas de respostas, se é que chegam, não chegam a tempo nas comunidades de baixa renda. Sem acesso a informações responsáveis, transparentes e atualizadas, uma cacofonia de hipóteses não comprovadas pode se espalhar pelas comunidades pobres. Essa lacuna no acesso à tecnologia também se traduz em uma falta de oportunidades disponíveis de ensino à distância enquanto as escolas estão fechadas, e o teletrabalho durante o bloqueio social (societal lockdown) é inviável para milhões de trabalhadores de baixa renda, devido à natureza de seus empregos e à falta de acesso à infraestrutura de comunicações. O que a COVID-19 está nos ensinando é que o acesso universal à internet e às tecnologias de comunicação deve se tornar um direito humano.

Infelizmente, essas iniquidades levam a outros efeitos devastadores em comunidades pobres. A COVID-19 está afetando negativamente as economias nacionais, destruindo microempresas e pequenos agricultores. As consequências nocivas para os sistemas alimentares, em particular, lesam as pessoas pobres, que gastam a maior parte de sua renda em alimentação. Isso está aumentando a fome, e exacerbando a ameaça à saúde pública ocasionada pela pandemia. A agenda global para avançar rumo aos objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas (ONU) — particularmente aqueles relacionados a pobreza, fome, saúde, trabalho decente e crescimento econômico — será prejudicada pela COVID-19, a menos que o mundo coopere e inclua o resgate de microempresas e pequenos agricultores na tentativa de evitar uma crise econômica global.

A COVID-19 também expôs a fragilidade da interconectividade. O aumento das interações econômicas globais abriu o mundo a fluxos em massa de mercadorias, serviços, dinheiro, ideias e pessoas através das fronteiras. Isso permitiu que muitos saíssem da pobreza. No entanto, conter a rápida disseminação da síndrome respiratória aguda grave-coronavírus 2 (SARS-CoV-2) requer o fechamento de fronteiras ao redor dos pontos críticos de infecção. Esses fechamentos devem ser apenas temporários, e não devem impedir a cooperação entre nações para lidar com a pandemia. Recursos humanos, equipamentos, conhecimento sobre tratamentos e suprimentos, assim como bens não comercializáveis e bens espirituais, devem ser compartilhados, inclusive com os países pobres. Inicialmente, a pandemia inspirou as nações a olharem para o interior de si mesmas. Mas buscar uma solução para a COVID-19 através do isolamento nacional seria contraproducente. A SARS-CoV-2 não reconhece fronteiras. Os países ricos precisam apoiar organizações transnacionais e da ONU em seus esforços globais para controlar a disseminação desse contágio.

A capacidade científica em geral, e especificamente aquela relacionada a doenças infecciosas, é altamente desigual ao redor do mundo. Isso contribui para um maior risco de sofrimento nos países pobres. As causas primordiais de doenças infecciosas causadas por bactérias, vírus ou parasitas que se propagam de animais para humanos, por exemplo, assim como a sua prevenção, exigem pesquisas cooperativas próximas a áreas de risco em potencial, inclusive em países pobres. Agora é a hora do mundo desenvolvido se comprometer a melhorar isso. Se essa lacuna na capacidade científica continuar a crescer, até mesmo o interesse das nações ricas se tornará mais limitado, deixando aos pobres ainda mais o fardo das doenças.

Outras grandes crises globais, como as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade, exigem respostas globais cooperativas que não deixam de fora os pobres. Uma vez que a COVID-19 estiver sob controle, o mundo não pode voltar à rotina como anteriormente. Uma revisão completa de visões de mundo, estilos de vida e problemas de avaliação econômica de curto prazo deve ser realizada. Se quisermos sobreviver no Antropoceno, é necessária uma sociedade mais responsável, mais cuidadosa, mais inclusiva e mais justa...

Esta tradução não é uma tradução oficial feita pela equipe da AAAS, nem tem sua precisão garantida pela AAAS. Para questões cruciais, conferir a versão oficial em inglês publicada originalmente pela AAAS.

Originalmente publicado como The moment to see the poor, Joachim von Braun, Stefano Zamagni, Marcelo Sánchez Sorondo, Science, 17 de abril de 2020, Vol. 368, Issue 6488, pp. 214, DOI: 10.1126/science.abc2255, <https://science.sciencemag.org/content/368/6488/214 >.

Republicado com permissão da AAAS.

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Tradução realizada por Adriano Bechara, João Cortese e Marcos Paulo de Lucca Silveira – Núcleo de Bioética da Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

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Joachim von Braun é presidente da Pontifícia Academia das Ciências, Cidade do Vaticano, e professor do departamento Economic and Technological Change, Center for Development Research da Universidade de Bonn, Bonn, Alemanha.

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Stefano Zamagni é presidente da Pontifícia Academia das Ciências, Cidade do Vaticano; professor de Economia na Johns Hopkins University School of International Studies, Bolonha; e professor de Economia Política, Università di Bologna, Bolonha, Itália.

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Marcelo Sánchez Sorondo é Bispo, Chanceler das Pontifícias Academias das Ciências e das Ciências Sociais, Cidade do Vaticano.
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