por Fabrício Tavares de Moraes
É certo que na maioria das vezes em que as pessoas tratam ociosamente acerca do multiculturalismo, elas, em geral, ilustram os benefícios decorrentes dele com as iguarias típicas de outras culturas e os restaurantes mais exóticos que encontramos em todas as metrópoles atualmente.
Todavia, talvez as pessoas, fazendo do ventre seu deus, se esqueçam do ensino do Cristo, que nos ensina “que tudo o que entra pela boca desce para o ventre e, depois, é lançado em lugar escuso”. Por outras palavras: reduzir a cultura aos seus aspectos mais superficiais, para não dizer perecíveis, revela não somente ignorância dos costumes e modos alheios, mas também filisteísmo, o qual, segundo Nabokov, “pressupõe um certo estágio avançado de civilização, no qual, ao longo das eras, certas tradições acumularam-se num monturo e já começaram a tresandar”.
Novas leis de imigração e atentados terroristas logo antes de eleições presidenciais em países que, visível e reconhecidamente, sofrem com questões migratórias, fornecem o cenário, quando não os protagonistas e antagonistas, para as narrativas da reação. O reacionarismo – que jamais se confunde com o conservadorismo – nasce, nas palavras de Mark Lilla, do casamento, talvez não muito natural, entre as profecias de um apocalipse e os contos de uma era de ouro. Porém, o objeto ao qual se reage, conforme pode-se imaginar, é precisamente o multiculturalismo.
É claro, rechaçamos, de antemão, a ideia aberrante de que todos os problemas no Ocidente, hoje, no tocante à imigração, têm origem somente na crença de que todas as culturas inerentemente são compatíveis entre si, ou que a liberdade, igualdade e fraternidade são não apenas valores já dados, mas também universais e em marcha irrefreável.
Curiosamente, o multiculturalismo, ainda mais em periferias intelectuais como o Brasil, guarda pouca relação com a questão da imigração em massa que se dá em grande parte da Europa. Contudo, para não permanecermos alheios ou à deriva das discussões acadêmicas que grassam nos grandes centros, falseamos, ou antropofagizamos, o conceito, para adequá-lo à nossa realidade. Afinal, é sempre possível deslocar a discussão da coexistência de diversas culturas para a “problemática” da valoração ou hierarquia cultural, dissolvendo as fronteiras entre os distintos estratos culturais e execrando a simples designação de “alta cultura”.
Deixando de lado, porém, a especificidade do caso brasileiro e focando na generalidade da questão, talvez chegaremos às indagações mais pertinentes acerca do multiculturalismo – por exemplo, que substrato é esse que abrigará as mais distintas culturas em harmonia?
Afinal, se a natureza aborrece o vácuo, também as dimensões humanas, não desenvolvendo raízes no abismo, demandam, para sua subsistência e desenvolvimento, um solo ou fundamento. Dito de outro modo, a própria estrutura social e institucional que supostamente comportará esse mosaico de culturas implica e pressupõe uma capacidade não só de contenção, mas também de manutenção das relações que entre elas se estabelece.
Poucos percebem o perigo que espreita sob esse posicionamento, pois, afinal, essa força que supervisiona, retém e amaina as possíveis eclosões e atritos entre essas culturas, deve, necessariamente, regê-las todas, ditando os limites do que, naquele corpo social, é aceitável. Desse modo, o Estado, como invariavelmente se dá nas políticas progressistas, recebe a legitimidade, ao menos moral, como o guardião da cultura. E assim, invertendo-se a ordem lógica e cronológica, a cultura de um povo torna-se consequência da política.
Não é preciso dizer que o multiculturalismo é, em síntese, a simples transposição das ideias desconstrucionistas para o âmbito cultural e social, isto é, parte-se do pressuposto de que, em toda a extensão da realidade, só há diferenças, jamais identidade, especialmente numa sociedade.
De modo paradoxal, aqueles que advogam o multiculturalismo não raro apregoam também a incomunicabilidade intransponível entre as culturas e a inexistência de qualquer valor universal que, sendo-lhes um denominador comum, possibilitar vínculos ou relações.
Todavia, o ponto cego do multiculturalista é sua interpretação da cultura como sendo algo cosmético, e não basilar, à determinada comunidade. Para ele, a cultura é uma simples irradiação ou aura perfeitamente amoldável às circunstâncias mais fortuitas. Se, como Russell Kirk dizia, toda cultura provém embrionariamente de um cultus, uma estrutura ritual que concede sentido às mais diversas ações e momentos da vida de uma comunidade, incluindo aqui a possibilidade mesma de uma ordem social, então é certo que grande parte do tratamento atual das questões culturais é, no mínimo, leviano.
Tomemos um caso concreto: na concepção de um humanista ocidental, todas as obras exibidas numa National Gallery, em Londres, ou no Louvre, em Paris, constituem o ápice da concepção e habilidade estéticas de artistas os mais variados (de neerlandeses a nipônicos); representam, em suma, na definição de Matthew Arnold, em seu Cultura e Anarquia, “uma busca por nossa perfeição total, cujos meios consistem em esforçar-se por conhecer… o melhor já pensado e escrito no mundo”.
Todavia, sabemos que, no mundo muçulmano, toda representação pictográfica ou icônica é proibida por lei, visto que amiúde conduz à idolatria. Há aqui um conflito de visões irreconciliáveis, ambas oriundas da cultura ou mundividência de comunidades distintas: ou estamos perante os valiosos artefatos que sobreviveram ao naufrágio do tempo, ou estamos perante um repertório de ofensas e transgressões – ou, como dizem, haraam.
Isto não implica, evidentemente, que culturas corânicas são inerentemente odiosas à arte ou que agem sempre com o barbarismo de um Estado Islâmico com sua destruição de monumentos budistas ou cristãos – longe disso. O que, porém, torna-se visível é que toda cultura traz em seu bojo seu projeto inato de ordem social. E é aqui que o multiculturalismo deve ao menos pressupor alguns ideais ocidentais para sua própria subsistência (respeito à propriedade privada, liberdade de reunião, de religião, etc.).
Retomando a metáfora bíblica inicial, é o que sai de dentro do homem que o contamina – ainda que sejam as considerações internas, quando não intestinas, de sua cultura.