O Enigma da “Playboy”

Na semana passada a revista Playboy anunciou que voltaria a publicar ensaios de nu integral. O anuncio chegou de surpresa e gerou uma série de reações apaixonadas da mídia e do público leitor. Ademais, em 2015, para o alívio de Gloria Steinem e para a tristeza de muitos solteirões de meia idade, a Playboy anunciou que deixaria de publicar conteúdo explícito.

por Juliana de Albuquerque

Na semana passada a revista Playboy anunciou que voltaria a publicar ensaios de nu integral. O anuncio chegou de surpresa e gerou uma série de reações apaixonadas da mídia e do público leitor. Ademais, em 2015, para o alívio de Gloria Steinem [1] e para a tristeza de muitos solteirões de meia idade, a Playboy anunciou que deixaria de publicar conteúdo explícito.

A justificativa para tanto seria a de que, atualmente, os consumidores da revista poderiam acessar gratuitamente todo e qualquer conteúdo pornográfico através da Internet. Assim, com as vendas em declínio desde a década de 1990, a Playboy precisaria rever a sua estratégia de mercado.

Na época, os seus editores comentaram que a revista estaria voltando às origens. Segundo eles, Hugh Hefner teria criado a Playboy em defesa das liberdades individuais, em uma época em que os Estados Unidos encontravam-se às voltas com toda espécie de conservadorismo; na idade das trevas do macartismo.

Para que o leitor tenha uma ideia do sombrio contexto histórico que estimulou a criação da Playboy, entre as décadas de 1930 e 1950, autores de peso, tal Henry Miller, não tinham condições de publicar seus textos nos Estados Unidos. O mercado editorial americano apresentava-se extremamente conservador e, por isso, muito desses autores, cujos textos esbanjavam erotismo, precisaram migrar para França, um país cujo mercado editorial seguia na época uma linha mais liberal. Miller, por exemplo, só conseguiu publicar Trópico de Câncer em 1934 graças a ajuda de Anaïs Nin que, com dinheiro emprestado do psicanalista Otto Rank, bancou a publicação do livro através da Obelisk Press, uma das muitas editoras em língua inglesa sediadas em Paris durante o período entre guerras.

Coelhinhas da Playboy repaginadas para a Era da Inclusão e da Diversidade.

Assim, quando a Playboy foi lançada na década de 1950, a nudez das modelos teria desempenhado um papel importante no debate sobre sexo e comportamento. Hefner que em 2009, em entrevista à revista Time, declarou ser feminista, enfatiza que a Playboy faz parte da história de lutas pelas conquistas das liberdades sexuais. Ainda segundo Hefner, se hoje a discussão sobre aborto e métodos anticoncepcionais chegou a algum lugar e as leis que incriminavam algumas práticas sexuais relaxaram, nós devemos agradecer, em parte, ao ativismo hedonista da Playboy.

Porém, apesar de toda essa história, os tempos mudaram e, hoje, muito dificilmente, qualquer reviravolta na ideologia da Playboy seria capaz de recriar o sucesso atingido pela marca durante os seus primeiros vinte anos em atividade. Daí porque a volta dos nus integrais assemelha-se à estratégia de marketing de uma marca cansada, cuja ousadia inicial perdeu o apelo para se transformar, querendo ou não, em uma forma de entretenimento para toda a família (i.e., revistas para os pais, calcinhas para as mães e toda espécie de acessórios de coelhinhos para as crianças).

Mas se as Playboys do homem moderno já não estão armazenadas em envelopes de papel, escondidas no fundo de um guarda-roupa, na camuflagem de documentos ou no chão do banheiro por trás do vaso sanitário — marcando território — ou debaixo da cama; se, para chegar até as revistas, hoje, não mais as mulheres precisam revirar gaveteiros ou ameaçar tocar fogo na garagem dos seus namorados; se as Playboys são peças de decoração, lembranças de juventude que emprestam charme e ironia ao quarto dos meus amigos; se os artigos e os ensaios fotográficos nos oferecem a oportunidade de conversar livremente sobre sexo, fantasias e comportamento, por que será que, ainda assim, em algumas ocasiões, essas revistas tanto nos incomodam?

Dentre as reações ao anúncio da Playboy sobre o retorno da nudez que nunca saiu de cartaz, a ativista Megahn Murphy — fundadora do site canadense Feminist Current — afirmou que a decisão da revista demonstra um retrocesso em termos de comportamento: “nós pertencemos a uma cultura cada vez mais pornográfica e misógina (…) o fato é que um homem que consome pornografia e paga por sexo pensa exatamente da mesma maneira que Donald Trump e, por isso mesmo, perpetua e participa da cultura da misoginia.”

Será mesmo? Eu tenho lá as minhas dúvidas. Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche — um dos autores prediletos de Hef— escreve que “dois homens de princípios iguais desejam alcançar, provavelmente, coisas fundamentalmente diferentes.” Ou seja, os princípios que guiam as ações de homens e mulheres devem ser analisados em relação à vida de cada um, levando-se em consideração especificidade do seu desenvolvimento.

Há tempos defendo a opinião de que, sob pena de estarmos cometendo uma grande injustiça contra nós mesmos, o juízo moral sobre a nudez, o erotismo e a pornografia não deve ser abstrato e incondicional. Antes, esse juízo deve ser formado através de um exame cuidadoso de nossas próprias experiências e motivações. Afinal, por trás de toda abstração e incondicionalidade existe o medo de confrontarmos com a origem dos nossos princípios morais a partir de um questionamento sério sobre as nossas “verdades” emocionais.

Dizer que a Playboy me incomoda porque se trata de pornografia seria mentira. Dizer que, para mim, a revista é o símbolo máximo da opressão que o patriarcadoexerce sobre a mulher, também.

Ao dizer isso eu não quero desmerecer o sofrimento de muitas mulheres que se sentem obrigadas a seguir o padrão de beleza e juventude ditado pela nossa cultura. No entanto, não vejo como podemos ajudar a essas mulheres ao transformarmos a discussão sobre a Playboy e outras revistas masculinas, em uma falsa polêmica moral.

Para ser sincera, o que me incomoda na Playboy é a infeliz lembrança de que, apesar de todos os nossos avanços — desde a roda aos quartetos tardios de Beethoven — nós ainda somos humanos: frágeis inquilinos da natureza. Racionais, talvez superficialmente. Mas, nem por isso, menos ignorantes sobre nós mesmos.

Diante de imagens tão bonitas e habilmente compostas, diante de modelos tão belas, exibindo corpos tão extraordinários, lembro-me mais uma vez de Nietzsche e penso cá com os meus botões: “o baixo ventre é a causa pela qual o homem não acha tão fácil sentir-se um deus.”

Descubro então que eu não me sinto ameaçada pela nudez das modelos e seus corpos perfeitos. Também não me sinto ameaçada pelas fantasias dos homens. O meu problema é outro.

Em verdade, o que me ameaça e me envergonha na revista é reconhecer que eu também sou humana, que também tenho um corpo e, que esse corpo imprime em minha razão as suas próprias exigências.

Sobre o papel da pulsão sexual em nossas vidas, o mesmo Nietzsche que vem guiando estas linhas dizia que “o grau e espécie de sexualidade de um indivíduo penetram até o ponto mais alto do seu espírito.” Embora o significado desse aforismo não seja suficientemente claro, ele nos permite pensar que, talvez, toda discussão histérica sobre a pornografia, seja apenas mais uma prova de que, em matéria de sexo, a nossa razão corre o risco de perder a sua própria objetividade.

Esse raciocínio nos remete, quase que institivamente, ao pensamento do filósofo escocês David Hume, para quem “a razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar outra função além de servir e obedecer a elas.”[2]

Em sua obra, Hume nos adverte que a razão sozinha não basta para estabelecer qualquer censura moral. Segundo ele, “a moralidade é determinada pelo sentimento. Ela define a virtude como qualquer ação ou qualidade espiritual que comunica ao espectador um sentimento agradável de aprovação; e o vício como o seu contrário.” [3]

Assim, diante da confirmação das minhas limitações, encontro-me tomada pela perplexidade de um Hamlet — que obra é o homem ou a mulher, também, por assim dizer? — “Em ação, quão parecido a um anjo, em apreensão, quão como um deus! A beleza do mundo! O suprassumo dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta… quintessência do pó?”[4]

Eu, que apesar de mulher, não sou divina nem tenho vocação para guia moral da humanidade, peço apenas para que sejamos tolerantes com nós mesmos.

Nesse debate sobre a nudez que nunca deixou as páginas da Playboy, o nosso maior incomodo não é a revista, mas a intuição de que nós devemos superar a fatal ilusão de que — tal o “moço príncipe” de Shakespeare — nós sejamos bons demais para abraçar todos os aspectos da nossa própria humanidade. [1]

[1] Em 1963, Steinem escreveu uma matéria investigativa sobre a vida e a rotina de trabalho das “coelhinhas”, nos antigos clubes da Playboy. Uma cópia da matéria pode ser acessada aqui: https://goo.gl/PynXpG.

[2] Hume, David. A Treatise of Human Nature, p.462.

[3] Idem. An Enquiry Concerning The Principles of Morals, p.85.

[4] Shakespeare, William. Hamlet. Act 2, Scene 2, lines 303-08.

Juliana de Albuquerque é doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda.

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