por Fabrício Tavares de Moraes
Santo Agostinho, conforme se sabe, atribuía às heresias e, portanto, aos hereges um papel crucial no próprio desenvolvimento da doutrina cristã, já que, por meio dos desafios impostos por seus sistemas, os doutores e teólogos viram-se pressionados e praticamente coagidos a uma resposta à altura. De modo que não é exagerada a afirmação de que, assim como na filosofia, as respectivas histórias da heresia e da formulação doutrinal, além de entrelaçadas, só são de fato compreendidas mutuamente, como indagações e respostas, estímulos e reações.
Mas tal comparação só seria admissível se permanecêssemos dentro do território da teologia das grandes religiões monoteístas, que de fato lidaram com heresias que extrapolavam o simples desentendimento ou discordância doutrinal – por exemplo, o caso paradigmático dos cátaros ou, na Inglaterra, dos adamistas que se despiam publicamente como rejeição ao pecado original – e, de certo modo, exigiam uma contrarreação por vezes imediata.
Uma heresia, entretanto, só é gestada dentro de um sistema religioso já diferenciado, em que cabe a alternativa entre vertentes que existem com base em determinado bloco monolítico de crenças. Daí a própria etimologia do termo que implica a “escolha” deliberada de uma opção que, histórica ou formalmente, mostrou-se falha ou subversiva. E isto se aplica também aos grandes sistemas ideológicos, de igual modo, como se vê na antiga crítica marxista às inovações de um Walter Benjamin, em especial pela sua fusão de materialismo histórico com messianismo judaico.
À vista disso, talvez seja prudente uma análise menos enviesada do modo como Ayaan Hirsi Ali utiliza o termo em sua obra Herege: Por que o Islã precisa de uma reforma imediata, publicada originalmente em 2015. Anteriormente, em Infiel (2006), a somaliana, movida pelo assassinato então recente de Theo Van Gogh, narrou seu afastamento da religião islâmica e defendeu fervorosamente a liberdade de expressão que havia encontrado nos Países Baixos, onde se refugiou após sua recusa de um casamento arranjado em seu país natal.
Neste livro mais recente, no entanto, a tônica de seu argumento é que, assim como o cristianismo passou por uma Reforma que (em seu entendimento) trouxe sua modernização, o Islã, com suas convulsões e crises internas, necessita urgentemente de um processo de renovação – não uma destruição, como querem os secularistas, mas uma reestruturação segundo alguns seus princípios não muito modestos. São eles, nas próprias palavras da autora:
1. A posição de Maomé como semidivino e infalível, juntamente com a interpretação literal do Alcorão, em especial as partes que foram reveladas em Medina;
2. O investimento em uma vida após a morte em detrimento da vida antes da morte;
3. A sharia, o conjunto de leis derivadas do Alcorão, o hadith e o resto da jurisprudência islâmica;
4. A prática de dar a indivíduos o poder de aplicar a lei islâmica ordenando o certo e o proibindo o errado;
5. O imperativo de fazer a jihad, ou guerra santa.
Surpreendentemente, como relata em seu livro, Ayaan Hirsi Ali diversas vezes foi silenciada ou boicotada em eventos não por muçulmanos, mas por progressistas ocidentais. E esta perseguição no próprio Ocidente é uma das forças motrizes que a levaram ao que considera um grito de apelo e alerta sobre o perigo do radicalismo inerente ao Islão.
A bem da verdade, um dos pontos fortes de sua obra é justamente essa afirmação de que o extremismo que atualmente testemunhamos tem raízes teológicas, motivadas por uma jurisprudência e hermenêutica religiosas que estão no cerne mesmo da tradição islâmica. Para os ouvidos ocidentais habituados ao discurso da secularização, a própria suposição de uma religião que extrapola os muros da devoção particular e é responsável pelo ordenamento político e cultural de várias nações já soa incômodo. No entanto, a autora apresenta um esquema sociológico tripartite da Ummah, a comunidade muçulmana espalhada ao redor do mundo: os muçulmanos de Medina, os muçulmanos de Meca e os muçulmanos dissidentes.
Os primeiros são “muçulmanos milenaristas”, e “consideram um dever religioso impor a sharia pela força. Seu objetivo não é apenas obedecer aos ensinamentos de Maomé, mas também imitar a conduta belicosa do Profeta depois que ele se mudou para Medina”.
Já os muçulmanos de Meca são aqueles que, “como os cristãos ou os judeus devotos… seguem os serviços religiosos diariamente e cumprem regras religiosas na alimentação e no vestuário”, isto é, “concentram-se na observância religiosa”. Isto não os impede, porém, de viverem “em incômoda tensão com a modernidade – o complexo das inovações econômicas, culturais e políticas que não só remodelou o mundo ocidental mas também transformou tremendamente o mundo em desenvolvimento à medida que o Ocidente o exportou”.
E, por fim, o grupo em que a própria Ayaan Hirsi Ali se inclui: os “muçulmanos modificados”, os quais, em suas próprias palavras, “são forçados pela experiência a concluir que não podíamos continuar a ser devotos; entretanto, permanecemos profundamente envolvidos no debate sobre o futuro do islã”. A maioria desses dissidentes, de acordo com a autora, são “crentes reformistas”.
Ao longo do livro, a autora apresenta argumentos históricos, filosóficos e políticos como evidência para sua tese de que o problema do terrorismo emerge de uma interpretação teológica que é inerente ao próprio islamismo, e não somente de fatores “exógenos” como a geopolítica e mazelas econômicas. A própria gênese do Corão, por exemplo, segundo Hirsi Ali, dá-se paralelamente às conquistas e vitórias militares de Maomé, daí a variação no tom e abordagens do livro sagrado: “O Alcorão foi revelado junto com a ascensão e as conquistas do Islã. O império de Maomé começou a tomar forma antes que todos os versos fossem compilados em um livro. Assim, para o islã, desde o início fé e poder estão interligados – inseparáveis, na verdade”.
Intelectuais muçulmanos diversas vezes replicaram à argumentação de Hirsi Ali, apelando para sua falta de formação acadêmica na área do islamismo. Ainda que levássemos em conta a leviandade da acusação, veríamos que é justamente o contrário que se evidencia na obra: a autora expõe uma ampla gama de obras de estudiosos ocidentais e muçulmanos, crentes e descrentes, como fundamentação de seu trabalho. Isto é, não lhe falta o conhecimento do Islão; o que poderíamos censurá-la, na verdade, é o desconhecimento ou má interpretação do próprio Ocidente que, com unhas e dentes, defende.
A própria autora, embora utilize a Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero como análogo para seu projeto de reestruturação e eliminação da violência político-religiosa do Islã, diz em determinada parte da obra que “‘reforma’ não é um conceito legítimo na doutrina islâmica. O único objetivo aceito e adequado a um ‘reformador’ islâmico é um retorno aos primeiros princípios”.
De fato, cabe a indagação se o islamismo possui em seu cerne teológico (pois é disto que trata a obra de Ayaan Hirsi Ali) um equivalente aos elementos que Paul Tillich designava de “substância católica” e “princípio protestante”, que atuam reciprocamente e, segundo o teólogo, operam desde sempre na história da igreja. O primeiro termo diz respeito ao fato de que toda a criação, tendo sido originada pelo Logos, guarda em si a Presença Espiritual; já o princípio protestante, nas palavras de Tillich, “contém o protesto divino e humano contra qualquer reivindicação absoluta feita por realidades relativas, incluindo mesmo qualquer igreja protestante… Guarda-nos contra as tentativas do finito e do condicional de usurpar o lugar do incondicional no pensamento e na ação”.
Ora, para Hirsi Ali, “a causa mais profunda da minha crise de fé foi ter sido exposta, antes de 2001, a toda a base do pensamento ocidental que valoriza e cultiva o pensamento crítico”. Uma crítica mais impiedosa diria que o grande projeto de Hirsi Ali, embora movido por nobres intenções, é simplesmente um transplante do islamismo para a Gestalt do liberalismo ocidental.
O próprio pensamento crítico que a libertou do rigorismo moral e teológico muçulmano é um subproduto da ação religiosa no Ocidente, como diria René Girard, e em grande parte uma fórmula a princípio improvisada que serviu de trégua para os conflitos dentro da própria Cristandade que ocorreram até à Paz de Vestfália.
Embora esta afirmação pareça um juízo algo temerário, o projeto de reforma do mundo muçulmano que Hirsi Ali tem conduzido por meio de suas palestras, seminários e livros tem apenas dois caminhos pela frente: ou os reformadores, incluindo a autora, mostrar-se-ão capazes de desenvolver toda uma reparação teológica a partir de um “princípio protestante” embutido no islamismo; ou simplesmente, como é aparente no livro, a dissolução da tradição islâmica num análogo ao nosso liberalismo teológico do século XIX. E, com efeito, a autora desatentamente identifica as características da Reforma com o liberalismo teológico, movimentos que distam pelo menos três séculos.
Ao que tudo indica, e aqui tomamos uma perigosa trilha, o islamismo, por razões teológicas e históricas, não apresenta esse princípio que sempre promoveu reformas (como a gregoriana e a protestante) ou por vezes cisões na igreja cristã. Há de fato uma grande diferença entre as revelações islâmica e cristã. A religião do Corão é, nas palavras de Kenneth Cragg, uma “teologia do imperativo”, ordenanças sobre ordenanças entrelaçadas num magnífico cântico; já a religião bíblica é não propriamente um conjunto de leis, mas um drama cósmico de queda e redenção.
Entretanto, o diagnóstico de Hirsi Ali da violência que subjaz ao próprio sistema teológico e judicial do Islão ainda é um dos mais potentes alarmes que dispomos hoje. Ainda mais tendo vindo de uma mulher que vivenciou a brutalidade da aplicação da sharia no ambiente somaliano. A lição, todavia, permanece: ao Ocidente cabe hoje não apenas a acusação de desconhecimento do outro, mas do esquecimento de si mesmo.