por Vinícius Müller
Alguns domingos atrás, no dia 18 de março, Mario Vargas Llosa escreveu em sua coluna publicada pelo Estado de São Paulo um intrigante artigo intitulado “Novas Inquisições” acerca de suas desconfianças e críticas sobre movimentos que se caracterizam por definições de hierarquias morais e que, por isso, representam um risco à liberdade. Segundo o autor laureado pelo prêmio Nobel, a literatura é e sempre foi um privilegiado palco para que coisas que não são ditas apareçam nas palavras escritas, fazendo dela algo como um espaço livre de barreiras morais e de definições acerca do que pode ou não pode ser publicado. Essa liberdade, certamente, foi frequentemente cerceada por governos tirânicos, fossem eles de matriz política ou religiosa. De certo modo, associamos tal cerceamento ao pensamento autoritário e, no limite, totalitário. Assim também o faz Vargas Llosa, que, em passagem polêmica, ainda afirma que movimentos como o feminismo – ou parte dele, eu diria – reconstroem tal papel de tendência totalitária ao condenar, por exemplo, obras ‘clássicas’ como Lolita, de Nabokov, que, segundo o escritor peruano, é um dos maiores romances já publicados.
O mesmo já ocorreu com obras e autores variados. Desde Monteiro Lobato até, pasmem, autores da antiguidade clássica, como Platão, e de outras filiações, como Voltaire e Montesquieu: todos já tiveram suas obras questionadas (em casos extremos, banidas) em nome de algum valor moral considerado superior por aqueles ‘neocensores’ que, munidos de certa ‘autocapacitação’ ao julgamento, determinam o ‘lugar’ de cada coisa. Pensando em quais seriam os motivos para que isso não tenha ocorrido, ainda, com Montaigne ou Levis Strauss, lembro-me da dificuldade que alguns interlocutores têm em separar seus argumento e seus respectivos entendimentos sobre causas históricas que não os hierarquizando. Mas quando dois argumentos historicamente se aproximam, um não é necessariamente mais importante do que o outro. Muito menos, um é uma ‘desculpa’ ou um pretexto para ‘esconder’ o outro. É razoável argumentar, por exemplo, que os planos religioso e econômico se complementavam na expansão marítima dos séculos XV e XVI; e que o primeiro não servia para camuflar o segundo.
O equívoco, de usarmos nosso tempo e nossa capacidade de julgamento para hierarquizarmos as motivações e, por consequência, escolhermos qual causa é mais importante e/ou verdadeira, torna quase impossível, em outro exemplo, que consideremos que os motivos pelos quais a Inglaterra se posicionou contrariamente à escravidão, ao longo do século XIX, envolviam aspectos religiosos, morais e econômicos, e que não sabemos quais eram, entre eles, os mais importantes. E ainda que, ao insistirmos em afirmar que o mais importante era o aspecto econômico e que, por isso, devemos entender que os outros serviam de ‘cortina de fumaça’, exageramos em nossa capacidade de julgamento do passado. Como se estivéssemos em posição de falar que a Inglaterra fez a coisa certa por motivos errados, distorcendo a lógica kantiana e diminuindo moralmente a posição dos ingleses vitorianos. O ideal, nesse caso, seria a Inglaterra ter se posicionado contrariamente ao tráfico de cativos pela imoralidade e desumanidade que a escravidão carregava. Porém, mesmo que este argumento estivesse presente nos debates da sociedade inglesa, muitos de nós apenas o reconhece como mera distração frente ao suposto motivo real, ou seja, a expansão do mercado consumidor desejado pelos súditos da rainha.
A ironia disso é que tamanho anseio em julgar e hierarquizar nasceu, no mundo contemporâneo, como uma resposta das Ciências Humanas e Sociais a certa ‘colonização’, por assim dizer, que as Ciências Exatas e Naturais estabeleceram sobre o pensamento. Esta colonização, responsável entre outras coisas pela transformação da Economia em algo mais próximo da Engenharia e da Física do que da Filosofia e da Política, nasceu de certa organização das Ciências ‘duras’ e de como seria possível, a partir delas, determinar a verdade. Hipótese, observação, testes e expressão em linguagem matemática seriam, por assim dizer, os itens que comporiam o caminho à verdade científica, livre da distorção contida em qualquer narrativa, nas ideologias, religiosidade, paixões e interpretações delas derivadas. A suposta fragilidade das metodologias das Ciências Humanas e Sociais ante a ‘precisão’ das Ciências Exatas e Naturais deixaria as primeiras mais próximas da literatura e do romance do que da ‘verdade’. O problema é que isso, a que podemos chamar de ‘radicalização da verdade iluminista’, gerou também as teorias de superioridade racial do século XIX, e, em certa medida, sustentou os argumentos ditos ‘da natureza’ de regimes como o nazismo.
Essa legitimidade conquistada pelas Ciências Humanas e Sociais, ao avançarem sobre as ‘verdades’ das Ciências Exatas e Naturais a partir não de sua precisão e organização metodológica, mas de sua capacidade de julgar e hierarquizar o passado e os valores, deu, por um lado, novo fôlego aos historiadores, sociólogos, cientistas políticos e afins. Por outro lado, contudo, escancarou que o mau uso dessas capacidades de julgamento e hierarquização pode promover um sentimento de superioridade moral que, embora seja mentiroso, justifica atentados contra a liberdade de pensamento. Analogamente à arrogância das Ciências Exatas e Naturais, que só percebem como verdadeiro algo que pode ser mensurado ou ‘provado’ matematicamente, a arrogância das Ciências Humanas e Sociais se manifesta na falácia de que não há pensamento crítico fora delas e de sua capacidade de julgamento e hierarquização moral.
Ambas estão equivocadas. Foi exatamente o mau uso dos métodos e a distorção dos princípios das Ciências Exatas e Naturais que possibilitaram a valorização das Ciências Humanas e Sociais. Estas, ao se enxergarem como as únicas aptas ao julgamento e à hierarquização moral, descambam para o cerceamento da liberdade, e, de modo arrogante, para a simples e deletéria censura. Certo é que as Ciências Humanas e Sociais têm muito mais a oferecer do que a presunção de serem as definidoras do que é certo ou errado. Mas, se essa distorção prevalecer, no final, Vargas Llosa terá razão. O nome disso é censura.
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