por Thiago Blumenthal
Bem provável que passamos um terço de nossas vidas nos enganando, de acordo com o meu pai, isso até a nossa morte. Para os sortudos que têm uma saúde mental razoável e conseguem manter uma boa noite de sono, outro terço da vida é gasto dormindo, como se sabe. Já o resto do tempo, temo que o gastemos de maneira um tanto quanto deprimente, decidindo o que jantar, chegando suado no trabalho, contando no calendário os dias para aquele cruzeiro nas férias.
Não estamos aqui para deixar qualquer legado digno, afinal. Foi-se o tempo das grandes belezas, das grandes conquistas, da Humanidade. Hoje publicamos em redes sociais fotos de nossos braços esticados tomando soro com qualquer hashtag na legenda. E os comentários, ah, os comentários… Como dizia Hilel, o ancião, toda a Torá se resume a tratar bem os outros, nada além disso. O resto é comentário…
De modo que prefiro pensar no segundo bloco desse mosaico da vida, posto que o primeiro e o terceiro não renderão um artigo muito feliz: o sono. Desde muito cedo me pergunto por que sinto sono e acredito que essa pergunta deixou de me perseguir um pouco na vida adulta, quando passei a dormir menos, sentindo menos sono, ficando mais alerta, sob vigília.
A psicanálise, há aproximadamente um século, deixou marcas profundas no pensamento ocidental e em toda ciência do sono, em especial com a questão do inconsciente, fundamental para distinguir o que está na superfície e o que se encontra abaixo, muito maior, gigantesco, de difícil acesso, tão complicado. No entanto, fisiologicamente, mesmo Freud não soube pontuar com precisão por que sentimos sono e para que serve mesmo o sono.
A resposta pronta sempre é: “para o cérebro descansar”, mas é o tipo de frase que entra para o rol de inverdades como as que dizem que Santos Dumont inventou o avião ou que só podemos exprimir “saudade” em português. O que sabemos: não conseguimos ficar sem dormir; por mais que resistamos, o sono nos vence no fim; todos os mamíferos e aves dormem; o golfinho tem uma espécie de sono muito curiosa, pois fica com parte do cérebro em alerta; dormir deixa qualquer animal suscetível a ataques, tornando-o presa fácil, e a neurociência hoje já considera o sono como o maior erro evolutivo, dentre todos os outros erros, à frente mesmo daquele do cruzeiro CVC.
O senso comum ainda concorda com a ideia de repouso do cérebro, o que não deixa de ter alguma validade. Mas podemos repousar o cérebro de tantas outras maneiras, sem dormir. E como comprovar esse senso comum de que o sono ajuda de fato o cérebro? Pesquisas recentes, como a do professor Giulio Tononi, uma autoridade que lida com um dos assuntos mais interessantes da atualidade (o “hard problem” da consciência), demonstram que as sinapses redundantes ocorridas durante o sono são extirpadas pelo cérebro. Uma espécie de varredura.
Penso na imagem clássica, um tanto quanto romântica, do sujeito deitado na cama com um livro nas mãos, abajur ligado, devorando aquelas páginas até bater o sono. Adentramos na história, como afirma Proust, nas primeiras linhas da Recherche, e em determinado momento, o sono nos invade profundamente e nos confundimos com a personagem, com seus cenários, fantásticos, próximos ou distantes de nossa realidade. Naquele tempo, na fictícia Combray (inspirada na hoje chamada Illiers-Combray), o jovem narrador, mal apagada a vela, fechava seus olhos tão depressa que nem tinha tempo de pensar “Adormeço”. São dezenas de páginas, em tom ensaístico, dedicadas a essa matéria silenciosa e misteriosa que nos faz aproximar de um mundo ora tão desejado ora tão temido.
Continua Proust que “parecia que eu era o assunto do que tratava o livro [que o narrador estava por ler]: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V.” Para o narrador, nesse ponto, essa confusão mental não lhe chocava a razão, muito pelo contrário, “pairava-me como um véu sobre os olhos”, em uma imagem de uma precisão estética singular. Passado mais algum tempo, a obra que lia se tornava, enfim, ininteligível como os pensamentos de uma existência anterior. O “caleidoscópio da escuridão” de seu quarto, “graças a um lampejo momentâneo de consciência”, integrava-se ao seu espírito, a partir dos estalidos da madeira e do trem que passava ao longe.
O autor francês chama de “mundo dos sonhos” o que o mundo real pouco tem condições de descrever. Como sempre, a literatura, além de nos entreter, nos ensina quando os outros meios falham, de modo que “um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar, consulta-os instintivamente e neles verifica em um segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar”. Essa ordenação toda pode confundir e esta parece ser a questão-chave no sono proustiano: qualquer movimento distinto, qualquer insônia, qualquer braço de mau jeito, pode nos levar a acreditar, no despertar, que passaram-se meses e estamos em terras diferentes.
O que podemos afirmar é que dormimos porque sentimos sono. Por que sentimos sono há ponderações diversas, estudos dos mais variados, inclusive dos mais absurdos, tais quais aqueles realizados na década de 1980, quando pesquisadores da Universidade de Chicago esgotaram de cansaço alguns ratinhos (a cada vez que um deles dormia, caía n’água). Os pobres roedores morreram todos exaustos, mas sem nenhuma causa de morte específica, posto que todos os órgãos estavam intactos.
Infelizmente investe-se pouco nesta área da medicina: durante a graduação, em média, tem-se apenas quatro horas na grade curricular e há faculdades que sequer adentram neste assunto nebuloso. Se um paciente sofre de insônia e vai buscar tratamento, muito dificilmente terá um bom diagnóstico e lhe será receitado alguma droga Z (do tipo Stilnox), alimentando o grande círculo sem fim entre médicos, laboratórios e doentes. Isso para quem vai ao médico. Muitos tomam Dramin, aproveitando-se de seu efeito colateral, para dormir, sem saberem o enorme risco alucinatório que correm, sem contar a dependência também. Uma pequena overdose de Dramin é como um LSD do terror, não recomendo. Não menciono aqui todos os acidentes de trânsito causados pelo sono no Brasil e mundo afora. Parece haver pouca atenção ao assunto, que acho particularmente encantador – e importante.
O tempo, a história, a cultura, os comportamentos, tudo isso mudou também a maneira como dormimos e como encaramos o sono (e os sonhos), é claro. Mesmo de Proust para cá, que não faz tanto tempo assim, havia pouco antes um Dostoievski que via em todas essas condições mentais elementos figurativos de fundo religioso ou espiritual. Epiléptico, encarava suas convulsões como mensagens divinas ou algo parecido. Bem, a própria medicina encarava a epilepsia como uma possessão demoníaca, então não espanta que o sono fosse tratado como uma espécie de portal de contato com o além, como o homem primitivo acreditava.
Pior mesmo é pensar que passamos um terço de nossas vidas dormindo e não sabemos muito bem por quê. E os outros dois terços, voltando ao que afirmei no início, não nos ajudam muito. Contudo, e ao cabo, vale a pena, pois o mistério aí está para ser desvendado, ainda que sob circunstâncias avariadas e dependentes dos humores meteorológicos. Enganamo-nos dia a dia, afirma meu pai, decidimos o que vamos jantar, e vamos dormir sem sequer saber a razão disto. E talvez, se decidirmos apelar ao misticismo – há quem diga que vive-se melhor sob uma névoa mística – até podemos encarar nossos sonhos como premonitórios. O famoso “eu sonhei com isso”. Um messianismo de doer.
Prefiro aceitar alguns mistérios como eles assim se me apresentam. O mistério da imobilidade dos móveis, com o ranger das madeiras à noite, o trem à distância, a pergunta se as coisas são elas mesmas, ou se são produtos de minha cabeça – se a imobilidade está em meu pensamento, não nas coisas em si, como afirma Proust. As paredes que me fogem, em um movimento de aproximação e distanciamento durante a noite, é isso que talvez eu procure sem tatear, muito mais do que o que jantarei hoje.