O Poder Moderador no século XXI: o Judiciário que reina e governa

O Supremo Tribunal Federal exerce o que um dia se chamou de “Poder Moderador” sem a possibilidade de revisão ou responsabilização

Foto: Sérgio Lima

por Gabriel Heller

Em diversas entrevistas e palestras nos últimos anos, o Ministro Dias Toffoli declarou que o Supremo Tribunal Federal (STF) é, hoje, o “Poder Moderador” da República, chamado a resolver os impasses atravessados pelos demais Poderes e pela sociedade. Em coro com o atual Presidente de nossa Corte Suprema, vários juristas e cientistas políticos entendem que, com a queda da monarquia, o Poder Moderador, atribuído ao Imperador pela Constituição de 1824, teria passado tacitamente aos militares e, a partir da Constituição de 1988, ao Poder Judiciário – ou, mais especificamente, ao STF.

Para se avaliar a procedência dessas afirmações e o seu impacto na vida social e política brasileira, impõe-se inicialmente entender em que consistia esse Poder Moderador.

A Constituição do Império, importando a teoria política de Benjamin Constant, reconhecia a existência de quatro Poderes: o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o Moderador (art. 10). Em reprodução quase literal da construção do pensador franco-suíço, o art. 98 da Carta estabelecia o Poder Moderador como “a chave de toda a organização política”, sendo “delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos”. De modo a diferenciar as competências exercidas enquanto Poder Moderador e enquanto Poder Executivo, uma vez que ambos eram entregues ao Monarca, o art. 101 deixava claras as atribuições praticadas na condição de Moderador.

Durante o Segundo Reinado, a presença dessa peculiar figura, a “suprema inspeção da nação”[1], levou publicistas e políticos a embates acerca da responsabilidade pelos atos praticados no exercício do Poder Moderador: de um lado, homens como Pimenta Bueno – o Marquês de São Vicente – defendiam a completa irresponsabilidade do Imperador e de seus Ministros pelas consequências advindas do mau uso do Poder Moderador, cabendo apenas a responsabilização dos membros do Conselho de Estado pelos conselhos dolosos dados em afronta às leis e ao interesse do Estado (art. 143)[2]; de outro lado, a partir de obra publicada anonimamente, Zacarias de Góis e Vasconcelos comandou a corrente que defendia a responsabilidade dos Ministros do Império pelos malogros decorrentes dos atos desse Poder[3].

Não cabe, aqui, descer a minúcias para se advogar uma tese ou outra. Faz-se necessário, contudo, expor os fundamentos da divergência, como condição para que se entenda que espécie de Poder Moderador pode exercer, hoje, o Supremo Tribunal Federal.

Na defesa de sua tese, Zacarias se fiava, precipuamente, na ideia da inafastabilidade do princípio da responsabilidade em uma monarquia representativa e constitucional. Se todos os Poderes, inclusive o Moderador, eram “delegações da Nação” (art. 12 da Constituição do Império), nenhum ato poderia estar absolutamente imune à responsabilização[4]. E, na medida em que a pessoa do Imperador, também por força de disposição constitucional (art. 99), era “inviolável e sagrada”, não estando sujeita “a responsabilidade alguma”, restava imputá-la aos Ministros, que referendavam e davam execução aos atos do Poder Moderador. Entendia que, em razão do caráter inviolável e sagrado do Imperador, sequer a responsabilidade moral ou política podia ser-lhe atribuída, de modo que a responsabilidade ministerial servia como proteção ao Monarca, absorvendo toda culpa por eventuais falhas.

De seu turno, Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai, rebatia o juízo de Zacarias, opondo a responsabilidade moral à legal para arguir que apenas aquela era cabível em face dos atos do Poder Moderador. Em tom provocativo e acusatório, afirmava que “certos políticos nossos dão uma importância exagerada à responsabilidade legal, ao medo das penas. Para alguns são remédios para tudo, a cadeia para os ministros, e revolução para o chefe do Estado. É gente carrancuda, sombria e terrível”[5]. Nada obstante, para minimizar a exposição do Monarca que advinha de seu pensamento, alegava que “dos atos do Poder Moderador não pode vir odiosidade ao Imperador, porque as atribuições desse Poder são essencialmente protetoras e benéficas”[6]. Ora, como “suprema inspeção” dos demais Poderes, velando para que se mantivessem nos limites de suas competências constitucionais e observassem a divisão e a harmonia prescritas, o Poder Moderador apresentava-se como guardião do “mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece” (art. 9 da Constituição de 1824).

Retornemos ao ponto inicial da investigação proposta. Atribui a atual Constituição, ao STF, as funções do Poder Moderador? Se sim, para usar as expressões que dão nome à obra de Zacarias, qual a sua natureza e quais os seus limites? E de que forma o Supremo vem se utilizando de tais prerrogativas?

Parece estreme de dúvidas que a Carta de 1988 confere ao STF, em especial na sua faceta de Corte Constitucional, condições para velar pela independência e pela harmonia dos Poderes da República, embora preveja, em teoria, a possibilidade de o Senado Federal julgar seus Ministros por crime de responsabilidade (art. 52, II). Seja anulando atos do Poder Executivo, seja declarando a inconstitucionalidade de leis, sempre a partir de provocação alheia, o Supremo vem assegurando que os outros Poderes não desbordem de suas competências. Porém, neste quesito, cabe indagar se o STF tem sido bom árbitro de suas próprias atribuições; se vem reprimindo as tentações oferecidas pelos derrotados na arena política de avançar sobre as searas alheias.

Ao discorrer sobre o Poder Moderador em seu Ensaio sobre o Direito Administrativo, o Visconde do Uruguai esclarece que aquele:

“não pode ser invasor, não pode usurpar. Pode embaraçar o movimento, não o pode, por si só, empreender e levar a efeito; o mais que pode efetuar é a conservação do que está, por algum tempo. É poder não de movimento, mas essencialmente conservador. (…). Assim, se a nação quer certo movimento, e o imperador, que a Constituição declara seu primeiro representante, não o quer, o movimento pode, não obstante, realizar-se um pouco mais lentamente, tirada toda a dúvida de que a nação o quer, por meio da renovação de seus representantes eletivos”.[7]

Pelo menos desde 2003, com a aposentadoria do Ministro Moreira Alves, o STF parece ter lamentavelmente se afastado um tanto dessa função “conservadora”. Para evitar mal-entendidos decorrentes do uso do termo, que vem gerando tanta querela de bares a plenários, passando por programas de rádio e TV, convém esclarecer em que sentido se deveria esperar uma atuação “conservadora” da Corte Suprema.

Se “todo o poder emana do povo” (art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal) e se ao Supremo compete “precipuamente, a guarda da Constituição” (art. 102), o primeiro dever dos 11 ministros que o compõem é conservar a Carta Fundamental, isto é, defendê-la dos ataques que lhe forem desferidos. Como sabiamente concluiu o Ministro Hermes Lima, ao tratar doutrinariamente sobre o “direito” de revolução, “quem está com a Constituição? Esse estará na ordem, esse o conservador”[8].

Na posição de destinatário de um poder delegado pela nação, o STF não pode se afastar do que o povo definiu como bases de sua organização social e política. Nisso reside seu caráter representativo, sua delegação de parcela do poder que emana do povo, fortalecido pela regra de que a assunção do cargo de Ministro do STF depende de indicação e aprovação dos Poderes eleitos, quais sejam, o Executivo e o Legislativo (parágrafo único do art. 101).

Muito se fala atualmente sobre uma suposta “função contramajoritária” das Cortes Constitucionais – e, no nosso caso, do STF. Embora não haja espaço, nestas breves reflexões, para discorrer profundamente sobre a questão, vale consignar uma provocação a respeito. Teria mesmo o STF uma função contramajoritária? Parece-nos que não. Cabendo-lhe – e isso é inegável – declarar a inconstitucionalidade de leis que violam a Carta Magna, aí está, novamente, o mero exercício de uma função representativa e conservadora; representativa da vontade da nação reunida em Assembleia Constituinte, consubstanciada na Constituição que ao Tribunal compete proteger. Se tal declaração incide em negativa à vontade da maioria ocasional, isso de forma alguma retrata uma função contramajoritária, mas sim uma decisão contramajoritária pontual por força de uma função de conservação da Lei Maior e dos direitos e garantias que ela instituiu – função esta robustecida pelo fato de, assim como no Poder Moderador de 1824, não ter suas deliberações passíveis de revisão por outro Poder ou instância.

Ainda mais contrária à natureza das coisas – e das Cortes – põe-se a ideia de que o STF teria uma “função iluminista”, tese defendida pelo Ministro Roberto Barroso em sede doutrinária. Argumenta o Ministro que o termo iluminista é empregado no sentido “de uma razão humanista que conduz o processo civilizatório e empurra a história na direção do progresso social e da liberação de mulheres e homens”, relacionada a uma tradição filosófica segundo a qual “a história é um fluxo contínuo na direção do bem e do aprimoramento da condição humana”[9].

Com o máximo respeito ao autor, quiçá o mais preparado dos Ministros da atual composição, trata-se de uma petição de princípio, uma conclusão travestida de premissa. Além de não encontrar respaldo na Constituição, reflete uma visão um tanto presunçosa a respeito do Tribunal, dotada de certa dose de preconceito para com a sociedade e os demais Poderes, carentes das “luzes” que só o STF estaria em condições de conferir.

Ainda que resultados positivos tenham advindo de posturas “ativistas”, “progressistas” ou “iluministas”, tal compreensão vem escancarando uma ampla via para que a Corte Suprema usurpe competências e decida em descompasso não só com a maioria ocasional, mas também com a Constituição. Se decisões ativistas são recebidas de braços abertos em razão de concordância com deliberações pontuais, nada será capaz de refrear o ativismo quando ele vier em prejuízo dos interesses da nação, quaisquer que sejam – e isso não virá sem consequências.

O Visconde do Uruguai, um dos maiores defensores da Coroa no Segundo Reinado, ao discorrer sobre a responsabilidade pelos atos praticados no exercício do Poder Moderador, não foi capaz de livrar o monarca da responsabilidade moral:

“ninguém a pode evitar e produz sempre todos os seus efeitos. Vai direto ao causador do mal, não respeita condições e hierarquias; pelo contrário, quanto mais elevada é a posição do indivíduo, mais o persegue, mais com ele se agarra. Não há soberano, por mais poderoso, que a não tema, porque ela mina e destrói a força moral, sem a qual não pode durar um poder. Não se limita aos atos exercidos em virtude de ofício público, estende-se ainda mesmo aos particulares de funcionários públicos e enfraquece ou destrói o prestígio dos que exercem os altos cargos do Estado”.[10]

Nada obstante, encastelado na Praça dos Três Poderes, incapaz de lidar com a nova dinâmica das relações sociopolíticas, parte do STF parece desejar que, na linha defendida por Zacarias de Góis e Vasconcelos, o suposto atual detentor do Poder Moderador reste imune a qualquer responsabilidade, inclusive a moral. Com isso, chega-se a episódios como o do “inquérito das fake news”, dando a impressão de que a Corte tenta superar até o dito português de que “el-rei tem costas”, isto é, a ideia de que, em sua ausência, mesmo das pessoas mais qualificadas e poderosas se pode maldizer ou, nas palavras de Zacarias, de “que o povo julga e pensa dos reis como eles merecem por efeito dessa responsabilidade moral”[11].

De fato e de direito, o Supremo Tribunal Federal exerce alguma parcela do que um dia se chamou “Poder Moderador” e o faz, na prática, sem possibilidade de revisão ou responsabilização. Contudo, o uso repetido, indiscriminado e irrefletido da expressão gera o risco de arraigar uma percepção equivocada de que, como herdeiro da função moderadora originalmente atribuída ao Imperador, tudo pode fazer e falar, dentro ou fora dos autos – e a consequência, cedo ou tarde, é a perda de legitimidade pelo avanço sobre as competências e as vontades dos demais Poderes e da sociedade. No exercício do “Poder Moderador”, o maior proveito que o STF pode legar ao País talvez seja agir simplesmente como um “Poder Moderado”.

Notas

[1] A expressão é de Pimenta Bueno, cf. PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. In: KUGELMAS, Eduardo (org.)., José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 280.

[2] PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. In: KUGELMAS, Eduardo (org.)., José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 281-282 e 291-292. A responsabilidade dos Conselheiros de Estado teve distintas configurações ao longo do Império, uma vez que o órgão, de consulta originalmente obrigatória, foi extinto, expurgado da Constituição pelo Ato Adicional de 1834, e recriado, como de audiência meramente facultativa, pela Lei de 23 de novembro de 1841.

[3] GÓIS E VASCONCELOS, Zacarias de. Da natureza e limites do Poder Moderador. In: Cecília Helena de Salles Oliveira (org.) Zacarias de Góis e Vasconcelos. São Paulo: Ed. 34, 2002, passim. Zacarias exerceu alguns dos principais postos no Brasil Imperial, tendo por duas vezes lhe incumbido a função de Presidente do Conselho de Ministros (equivalente à figura do Primeiro-Ministro). Embora a primeira edição tenha sido publicada sem identificar seu autor, Zacarias publicou uma segunda edição em que consta como autor, juntando a ela excertos de discursos proferidos na Câmara de Deputados e respostas às considerações feitas sobre o tema pelo Visconde do Uruguai em seu Ensaio sobre o Direito Administrativo.

[4] GÓIS E VASCONCELOS, Zacarias de. Da natureza e limites do Poder Moderador. In: Cecília Helena de Salles Oliveira (org.) Zacarias de Góis e Vasconcelos. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 90-91.

[5] URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre o direito administrativo. In: CARVALHO, José Murilo de (org.). Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 377-378.

[6] URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre o direito administrativo. In: CARVALHO, José Murilo de (org.). Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 372.

[7] URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre o direito administrativo. In: CARVALHO, José Murilo de (org.). Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 345-346.

[8] LIMA, Hermes. Direito de revolução. Bahia: Imprensa Official do Estado, 1926, p. 34.

[9] BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Revista Direito & Praxis. Rio de Janeiro, vol. 9, n. 4, 2018, p. 2208.

[10] URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre o direito administrativo. In: CARVALHO, José Murilo de (org.). Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 377.

[11] GÓIS E VASCONCELOS, Zacarias de. Da natureza e limites do Poder Moderador. In: Cecília Helena de Salles Oliveira (org.) Zacarias de Góis e Vasconcelos. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 120.

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