Há pouco mais de 120 anos e às vésperas da independência, havia uma quase unanimidade entre membros do que, sem muito rigor, poderíamos chamar de elite brasileira, sobre a pertinência da manutenção da escravidão como organização fundamental da economia e da sociedade do país que ali nascia. Um certo temor de ‘haitianização’, ou seja, de que o Brasil vivenciaria uma revolta de escravizados assim como ocorrera no país centro-americano, mobilizava as opiniões de parcela considerável daqueles que tinham influência e voz política durante o primeiro quartel dos oitocentos. Somava-se a isso certo discurso protonacionalista por parte daqueles que se arvoravam na posição de defensores dos interesses nacionais frente às pressões britânicas contrárias ao tráfico de escravizados. E, assim, os argumentos favoráveis à manutenção da escravidão se avolumavam, ora amparados em uma suposta racionalidade econômica, ora em argumentos sociais e racistas.
Em torno disso, uma série de eventos fundamentais na história brasileira ganhou significado. O cuidado daqueles que influenciavam o andamento das relações entre o Rio de Janeiro e Lisboa em evitar uma guerra aberta com a antiga metrópole incorporava em sua motivação o risco de uma ‘guerra social’ pelo fim da escravidão. Nesse contexto, seria prudente que a relação entre Brasil e Portugal não rompesse por um conflito aberto entre eles, mas sim por algum tipo de ajuste ou de acomodação. Embora muitos conflitos tenham ocorrido nesse processo, como na Bahia e no Pará, de fato não houve uma guerra de independência que agregasse uma posição brasileira capitaneada pelo Rio de Janeiro contra o domínio lusitano.
Embora membros destacados da elite brasileira, como o santista José Bonifácio, tenham defendido à época posição contrária à manutenção do escravismo, esse projeto arcaico da elite brasileira em favor da continuidade da escravidão se sobrepôs a outros então apresentados. Aliás, essa é a expressão usada por João Fragoso e Manolo Florentino em obra obrigatória sobre a história brasileira, O Arcaísmo como Projeto (Civilização Brasileira, 2001), na qual apontam a persistência de uma enraizada desigualdade como reflexo desse arcaísmo presente na formação do Brasil.
Uma dúvida razoável que podemos ter é se os tomadores dessa decisão definida há mais de duzentos anos tinham elementos suficientes para identificar ou mensurar, mesmo que de modo especulativo, quais seriam e o quanto durariam os efeitos da decisão que tomaram. Embora essa pergunta possa revelar uma certa complacência com uma decisão que comprometeu boa parte do processo de modernização brasileira, a dúvida é, em tese, uma proteção contra a armadilha do anacronismo. Portanto, será que aqueles que defenderam a continuidade da escravidão tinham elementos suficientes para identificar o quanto essa decisão poderia impactar no desenvolvimento futuro? Será que sabiam que esse impacto seria imenso mesmo depois de tanto tempo? Havia alguma possibilidade de trocarem o resultado de curto prazo que lhes parecia benéfico por uma projeção de longo prazo que os fizesse mudar de ideia?
Essas perguntas poderiam estar no livro O que devemos ao futuro. Como as escolhas de hoje podem garantir o amanhã (Crítica, 2024), de William MacAskill. Filósofo e professor da Universidade de Oxford, o escocês, que também é conhecido por seu trabalho em empreendedorismo social e em defesa dos animais, faz uma provocação a partir de uma criativa combinação entre métodos, filosofia e história.
O valor do futuro
Logo no início, MacAskill faz uma defesa em relação ao imperativo moral de incluirmos em nossas decisões a dimensão do ‘longotermismo’. E ele tem razão, tanto pela dimensão ética quanto prática. Um exemplo simples pode dar a amplitude desse argumento: quantas pessoas foram beneficiadas por algum avanço da medicina no exato momento ou imediatamente depois que foi criado? Quantas pessoas foram beneficiadas por aquele mesmo avanço no longo prazo? Certamente um número muito maior de pessoas foi beneficiado conforme o tempo passou. Nesse sentido, o custo do avanço pode ter sido mensurado no curto prazo, mas seus efeitos se reproduzem e só podem ser percebidos em sua dimensão de longo prazo. Logo, o futuro importa!
Contudo, a incerteza inerente ao futuro limita nossa capacidade de, no presente, mensurar o impacto de longo prazo daquilo que fazemos ou das decisões que tomamos. Essa incerteza ganha certos contornos e suscita algumas questões. Por exemplo, como saber se as decisões tomadas no passado tiveram menor impacto desde que foram tomadas até hoje do que as decisões que tomamos hoje terão no futuro? Impossível saber, embora MacAskill apresenta seu argumento de que, dada a atual disponibilidade de tecnologia e conhecimento, as decisões tomadas hoje terão impactos maiores no futuro do que as decisões tomadas no passado têm sobre nós. Até porque a população será maior no futuro do que é hoje. No entanto, não sabemos exatamente quais decisões nossas mais impactarão as pessoas do futuro e nem quanto as afetarão.
Para lidar com tamanha incerteza, MacAskill oferece uma matriz cujos componentes são o valor esperado, a significância, a persistência e a contingência. Ou seja, qual a chance de algo ocorrer no futuro se eu tomar determinada decisão agora? Qual significado isso terá para mim e para outras pessoas? Os resultados dessa decisão serão impactantes por quanto tempo? É inevitável, no futuro, que tal decisão seja tomada e seus efeitos sejam percebidos mesmo que hoje ninguém tome essa decisão? Ou, pelo contrário, se eu não tomar essa decisão hoje ela provavelmente não será tomada até que as condições que eu tenho para tomá-la agora se repitam em outro momento?
É certo que a preocupação de MacAskill tem fundamento ético, afinal, por que deveríamos hierarquizar as vidas das pessoas que ainda não nasceram como menos importantes do que aquelas que hoje estão sendo vividas? Contudo, suas reflexões servem também às questões econômicas e àquelas relacionadas ao desenvolvimento social.
Hierarquias morais e resultados econômicos
Na parte mais interessante da obra do jovem filósofo escocês há uma certeira preocupação com a cristalização de valores morais ao longo do tempo. A partir de uma abordagem que resume como ‘plasticidade inicial, rigidez subsequente’, apresenta a ideia de que, embora em seus momentos iniciais, as definições sobre o que é certo ou errado e como hierarquizamos o que devemos fazer e o que devemos moralmente condenar sejam ‘plásticas’, assim que um certo código ético se estabelece tende a ser rigidamente defendido. Livros sagrados podem ser bons exemplos disso. O Velho Testamento pode ter demorado para chegar à sua versão mais bem acabada e, também, para ser a referência do cristianismo. Segundo MacAskill, transformou-se no núcleo do ensinamento cristão apenas no século II e só se consolidou com o formato que tem hoje no século IV d.C. Mas, desde então, não passou por grandes mudanças, tornando-se, ao longo do tempo, cada vez mais rígido em seu papel de servir como cerne moral do pensamento cristão.
Analogamente, o fim da escravidão no Brasil, não obstante ter sido primordialmente resultado de uma revolução moral, pouco impacto teve na transformação de outro valor para além da liberdade. Ou seja, todo o debate sobre a imoralidade da escravidão que, em seus dias de ‘plasticidade inicial’, foi fundamental para a construção de uma ética que associava a abolição à liberdade dos cativos, não foi capaz de, a partir dali —ou em sua ‘rigidez subsequente’ —, associar o fim da escravidão à condenação moral da desigualdade. Mais de um século depois, o fim da escravidão e, portanto, da maior representação da desigualdade em nossa história, não se transformou na redução da desigualdade. Ela, a desigualdade, continua sendo um valor moral que antecede às nossas decisões econômicas e políticas e que, visivelmente, afeta negativa e preferencialmente os descendentes daquelas mesmas pessoas que ganharam a liberdade em 1888.
O quanto o valor da desigualdade e de sua ‘rigidez’ contribuiu com certo atraso econômico brasileiro é objeto de estudos ainda inconclusivos. Mas é de difícil refutação a ideia de que a decisão de abolirmos a escravidão sem condenar a manutenção da desigualdade derivada da sociedade escravista comprometeu parte significativa de nosso desenvolvimento econômico de longo prazo. Será quantificável, depois de todo esse tempo, o quanto deixamos de preparar pessoas capazes de criar mais riqueza do que efetivamente criam só porque nasceram com determinada cor de pele? A hierarquia moral criada por uma decisão tomada há mais de um século e que se reproduziu rigidamente ao longo do tempo se transformou em um problema econômico que compromete nosso presente.
Em outras palavras, as decisões que tomamos sem a perspectiva do ‘longotermismo’ podem resultar numa rígida hierarquia moral que será prejudicial às gerações vindouras. Do mesmo modo como somos hoje prejudicados pelas decisões tomadas por aqueles que decidiram manter a escravidão há mais de dois séculos, ou ainda pelos que acharam que deviam abolir a escravidão sem atacar moralmente a desigualdade a ela vinculada. Talvez nossa vida atual fosse melhor se essas pessoas tivessem incorporado em suas decisões o ‘longotermismo’. Portanto, ler William MacAskill poder ser o que nós, hoje, devemos fazer para que as gerações futuras não nos acusem de piorar a vida delas. O passado e o futuro importam.
Vinícius Müller é doutor em História Econômica, professor da Faculdade Belavista, do Insper e da Fundação Dom Cabral.