por Leonardo Coutinho
O número 633 da rua Pasteur, em Buenos Aires, abriga em edifício sem nenhum apelo visual. As linhas ordinárias não se destacam sequer entre os demais prédios da vizinhança decadente. Por essa razão, a maioria dos turistas brasileiros que visitam a cidade não gasta tempo e sola de sapato em uma caminhada de vinte minutos que separa o famoso Obelisco do cruzamento das avenidas 9 de Julio e Corrientes do endereço em questão. Para os desavisados, talvez nem chame a atenção que logo depois da calçada repleta de barricadas, em muro de quatro metros de concreto e aço, jaz um mural negro que traz escritos dezenas de nomes que lembram pichações. Precisamente 85. Este é o número de vítimas do maior atentado terrorista islâmico da história da América Latina, que também resultou em outros 300 feridos. Um pouco acima da lista das vítimas, em um painel discreto que parece improvisado, está escrita a frase “lembrar a dor que nunca passa”.
Há 25 anos, pouco antes das 10 da manhã de 18 de julho, uma van carregada com uma carga de aproximadamente 300 a 400 quilos de TNT explodiu diante daquela mesma calçada. O terrorista era um libanês de 21 anos. As investigações apontaram de forma decisiva para autoria do regime iraniano e sua milícia libanesa, o Hezbollah. A investigação seguiu a pista que havia sido dada pelos próprios terroristas três semanas antes da explosão. Documentos oficiais, gerados pela Embaixada da Argentina em Beirute, descreveram a ameaça. Em um telegrama transmitido em 28 de maio de 1994, o embaixador descreveu o conteúdo perturbador do sermão proferido pelo então líder espiritual do Hezbollah, o sheik Mohammad Hussein Fadlallah. Em um discurso feroz, no qual protestava contra a prisão de Mustafa Dirani – então chefe de segurança de uma organização afiliada do Hezbollah –, Fadlallah proclamou: “A resistência tem muito oxigênio. O inimigo disse que tem tentáculos grandes, mas os combatentes muçulmanos provaram depois do assassinato de Abbas al-Mousawi que suas mãos podiam chegar até a Argentina”. Fadlallah praticamente confessava a autoria de um outro atentado, cometido dois anos antes, contra a Embaixada de Israel, em Buenos Aires.
Ao anunciar a ação terrorista que estava por vir, o clérigo fazia referência a outro atentado que deixou 29 mortos. A explosão da embaixada israelense em 1992, foi um ato de vingança do Hezbollah pela morte de seu fundador e secretário-geral Abbas al-Mousawi. Tal como no caso da Amia, o sheik Mohammad Hussein Fadlallah também havia enviado o seu recado fatal. Apenas dois dias depois da morte de Al-Musawi, ele disparou: “Israel não vai escapar da vingança. Recebemos a mensagem de que não há nenhuma necessidade de responder de forma emocional”. No mesmo pronunciamento, Fadlallah declarou: “haverá muito mais violência e correrá muito mais sangue”. Não passou um mês até a concretização de sua ameaça. Os argentinos viriam a conhecer pela primeira vez a insanidade do Hezbollah.
A escolha da Argentina para ser palco do horror não foi obra do acaso. O país vizinho encaixava perfeitamente no plano de vingança. Uma dupla vingança. Residência da maior comunidade judaica na região, o país havia comprado, também, uma briga do principal patrocinador do Hezbollah, o Irã. O regime dos aiatolás estava furioso com o governo de Carlos Menem que deu para trás em um acordo de transferência de tecnologia e material nuclear para os iranianos. A inflexão dos argentinos, fora impulsionada pelos Estados Unidos, medida que custou caro às ambições atômicas do regime. Até o momento, o Irã atua nas trevas para se tornar uma potência nuclear.
Voltando a falar da sede da Amia, reconstruída no mesmo local da que foi implodida pelos terroristas do Hezbollah, há 25 anos. A irrelevância do prédio para os turistas (aqui, especificamente tratando dos brasileiros) dá a justa dimensão para a forma equivocada, negligente e conveniente com a qual o Brasil, como Estado, sempre lidou com o caso. Tendo a crer que o atentado contra a Amia foi propositalmente ignorado para tergiversar sobre uma realidade indigesta. A de que o Hezbollah operava (e ainda opera) no Brasil e que o grupo terrorista usou o território brasileiro para planejar, financiar e colocar em prática aqueles que foram os dois maiores atentados terroristas islâmicos das Américas – até a ignomínia comanda por Osama bin Laden, no 11 de setembro de 2001.
Não há novidade alguma nisso. O passo-a-passo de como o Brasil foi usado como base operacional para os atentados está presente na farta documentação das investigações. Apesar de públicas, elas nunca serviram para intimar ou para depor alguns dos envolvidos, que ainda vivem impunemente no Brasil. Segundo o procurador Alberto Nisman, assassinado em janeiro em 2015, como consequência de seu trabalho de investigação do atentado contra Amia, o terrorista suicida que pilotou a van carregada de explosivos chegou à Argentina vindo do Brasil. Nisman indiciou o então adido cultural do Irã em Buenos Aires, Mohsen Rabbani, como o principal coordenador local do atentado. A quebra dos sigilos telefônicos de Rabbani demonstrou que ele mantinha uma extensa rede de contatos com outros investigados. Nada menos que doze viviam naquele momento no Brasil. A maior parte em Foz do Iguaçu e outros em Curitiba e São Paulo.
Um dos telefones celulares usados para coordenar o ataque – do qual provavelmente foi emitida a ordem de detonação dos explosivos – foi comprado na cidade brasileira de Foz do Iguaçu. O acusado de coordenar logístico, o libanês Samuel Salman el-Reda, deixou Buenos Aires uma hora e meia antes do atentado. Ainda no aeroporto Jorge Newbery, o Aeroparque, El-Reda falou com os demais membros da célula que, na interpretação de Nisman, eram os ajustes finais para explosão. El-Reda embarcou para o Brasil e seguiu para Foz do Iguaçu, no Paraná, onde viveu até fugir para o Líbano dez anos depois do atentado.
Enquanto viveu no Sul do Brasil, El-Reda foi tratado um herói pelos membros radicais da comunidade local, que desdenhavam do fato de um homem considerado chave para o esclarecimento do atentado terrorista desafiar a Justiça e viver livremente. Além dele, os documentos disponibilizados pela Justiça argentina fazem referência a e trazem detalhes dos vínculos com membros do Hezbollah que vivem no Brasil.
A impunidade é justificada por uma decisão brasileira de não reconhecer o Hezbollah como organização terrorista. Sendo assim, seus membros, financiadores e propagandistas nunca tiveram problema algum por isso. Por sinal, alguns deles sempre tiveram acesso aos corredores do Poder em Brasília e alguns ainda sobrevivem pendurados em cargos de confiança.
Até 2015, o Brasil sequer tinha uma lei que permitisse definir terrorismo e tipificá-lo como crime. Os poucos membros do Hezbollah que a Polícia Federal conseguiu mandar para cadeia foram aqueles que foram flagrados fazendo narcotráfico e contrabando, que são duas das importantes fontes de receita do grupo terrorista. Tendo sido as mesmas usadas para cobrir os custos dos atentados conta e Embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1992, e contra a Amia, em 1994.
Nesta semana, os argentinos celebrarão pela vigésima quinta vez a memória das 85 vítimas da Amia. Com o gosto amargo de 25 anos de impunidade. O presidente Mauricio Macri prepara um decreto inédito que designará o Hezbollah como organização terrorista. Somente depois de todo esse tempo, a Argentina qualificará o seu agressor pelo que exatamente ele é: terrorista.
A lentidão para lidar com as células do Hezbollah na América do Sul ajudou a organização a se alastrar. Somente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, que os acusados de financiar o grupo terrorista na América do Sul passaram a ser incomodados. Dez anos separaram o atentado na Amia da decisão do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos aplicar as primeiras sanções aos apoiadores e membros do Hezbollah que vivem na Tríplice Fronteira, entre o Brasil, Argentina e Paraguai. A medida, ampliada nos anos seguintes, alcançou um total de onze pessoas.
O efeito prático das sanções foi nulo. Como em mais de duas décadas Argentina, Brasil e Paraguai nunca tomaram medidas para investigar ou bloquear bens dos acusados, a rede do Hezbollah se alastrou. Considerando apenas os registros públicos empresariais nos três países, é possível detectar uma complexa teia de pessoas e empresas em torno dos sancionados. São mais 140 nomes – boa parte deles familiares dos acusados – operando os negócios do grupo.
Uma das justificativas do Brasil para não ter feito nada em relação aos suspeitos de envolvimento com o Hezbollah e aos investigados por envolvimento direto com o atentado contra a Amia é que tanto os argentinos como os americanos nunca enviaram oficialmente as provas contra as pessoas que vivem no Brasil. Além disso, o governo brasileiro somente reconhece como terroristas aquelas organizações que estão na lista negra da Organização das Nações Unidas. Como o Hezbollah não faz parte, o grupo não pode ser tratado como tal aqui no Brasil. A designação que será assinada por Macri é um inflexão no comportamento da Argentina. Pode ser uma tendência regional ou um ponto fora da curva, que isoladamente pode ter pouco ou nenhum efeito sobre as ações dos terroristas que usaram o Brasil como base para cometer dois grandes atentados no país vizinho.
Leonardo Coutinho (@lcoutinho) é jornalista e pesquisador do Center for a Secure Free Society. Também é autor do livro “Hugo Chávez, o espectro” (Ed. Vestígio, 2018).