por Felipe Pimentel
A pedra é sem mundo. O animal é pobre em mundo. O homem é formador de mundo. (Martin Heidegger)
As palavras são uma solução. Elas vêm ao mundo depois das coisas. Os homens precisavam comunicar-se mutuamente, e então elas vieram lhes acorrer. Existem vários níveis dessa necessidade.
O primeiro nível corresponde à necessidade de nomear os objetos do mundo real, animais, plantas, pedras, estrelas. O segundo nível já buscava informar dos objetos do mundo interno – pensamentos, intenções, expectativas, alertas. Num terceiro nível, vieram as palavras que vinculavam ações entre esses objetos, como, por exemplo, convidar (intenção) alguém a colher um fruto (coisa). Num quarto nível, surgiram as palavras para as criações humanas: governo, classes sociais, números, parentesco. Num quinto nível, as palavras que representariam a imaginação humana (unicórnios, p.ex.). Com a passagem do tempo, as relações sociais se tornaram mais complexas (a celebre passagem do bando de 10 selvagens para uma sociedade estratificada e organizada como a egípcia), a expectativa de vida avançou vertiginosamente (os primeiros balbuciantes homo habilis tinham expectativa de vida de 18 anos, ao passo que os egípcios mais de 40) e o pensamento humano ganhou autonomia. Surgiram os próximos níveis: o sexto exigiu partículas internas à própria linguagem, que a tornariam mais precisa (advérbios, tempos verbais, preposições, etc.), e o sétimo, e mais abstrato, o momento onde o pensamento humano criou problemas internos próprios, levando à criação de palavras que não se referiam a nada real ou mesmo imaginário (no sentido usado acima), isto é, palavras puramente abstratas e “linguísticas”, tão caras aos fiósofos, que vivem de trabalhar exatamente essas palavras, corretamente chamadas de conceitos (como brinca Wittgenstein sobre o “sintético a priori” de Kant, que não teria referente no mundo).
Tudo isso é muito evidente. Abarca nossa intuição tradicional de que as coisas preexistem às palavras, e que elas são a solução para necessidades de nomear o que quer que seja no mundo. A pergunta é se o vetor poderia ser invertido: se passamos das coisas para as palavras, poderíamos, talvez, passar das palavras às coisas? Teriam, elas, o poder de criar coisas?
Do ponto de vista ontológico, a resposta parece ser negativa: as palavras não criam coisas reais no mundo. Inclusive, dizem os filósofos mais realistas, que teríamos de temer dragões por aí afora. Deixo esse problema para eles, pouco munido que estou das ferramentas para tal questão. Mas trazendo para o meu lado: e do ponto de vista afetivo?
No âmbito afetivo, temos dois níveis distintos. O primeiro diz respeito àquela experiência emotiva da qual não sabemos o nome. Todos já passamos pela circunstância de experienciarmos uma determinada sensação sem saber exatamente nomeá-la. Um sentimento difuso (não nomeado) se assemelha em muito ao mesmo sentimento, se nomeado; porém, quando, ansiosos, encontramos essa denominação já parece haver algum tipo de ganho (por mais abstrato que seja), como se ao circunscrevermos aquele sentimento com a palavra adequada, ele pudesse ser mais profunda e precisamente experimentada.
Assim, este nível começa a se misturar com o próximo. As múltiplas manifestações do amor, por exemplo, podem ser experimentadas e progressivamente nomeadas. E aí uma via de mão dupla começa a agir: nós sentimos e vivemos diferentes experiências, descobrimos seus nomes e circunscrevemos suas singularidades e diferenças diante das outras, e eis que estamos lentamente sentindo de modo mais rico, variado, profundo e preciso. Todos os afetos contíguos dentro da ideia de amor são tanto melhor sentidos quanto maior nossa posse das palavras que as distinguem e multiplicam.
E em pouco tempo atingimos o segundo, e mais elevado nível, quando o vetor se inverte e as palavras são capazes de criar sentimentos em nós. Todos que já lemos aqueles poemas de Drummond, ou a descrição emocional de Stendhal, sabemos que a literatura (oral ou escrita, tanto faz) é a arte maior na capacidade de criar afetos: seja pelo ouvido, seja pela leitura, o conhecimento prévio de determinada palavra é o que permite que sintamos algo, isto é, nalguns casos as múltiplas sutilezas do amor ou da tristeza, por exemplo, não são anteriores às palavras, mas em vários casos são efeitos da posse das palavras que as nomeiam. Quer dizer, será que sentiríamos “ressentimento” sem essa palavra? Saberíamos distingui-lo do rancor? As finas sensações que um artista (ou apreciador de arte com muitas experimentações, conversas e estudos sobre arte) não lhes estão disponíveis por ter vivido não só essas experiências, mas também por possuir as palavras adequadas para elas? Essas palavras não interagem com seus objetos e criam novas sensações? Os gregos, que não possuíam a palavra “pecado”, seriam capazes de tomarem-se por pecadores seja do que for? Isso também não explicaria o fato de não possuirmos palavra para sentimentos que não possuímos? Desde o início dos tempos, os homens lutam contra a finitude, e como é possível que não tenhamos uma palavra para a aceitação da nossa condição finita e diante da perda dos nossos entes queridos? Nós sentimos e não temos palavra ou — não sentimos?