por Daniel Lopes
1.
Para solucionar as desavenças que surgem entre nosso grupo e outros, de modo pacífico e proveitoso, devemos ser utilitaristas. Devemos, para utilizar a definição de utilitarismo proposta em Tribos morais (Record, 2018) pelo filósofo de Harvard, Joshua Greene, “maximizar imparcialmente a felicidade”, apesar de raramente conseguirmos ser imparciais ao pé da letra – mas simplesmente porque a imparcialidade serve como um bom norte moral. Devemos “fazer o que funciona melhor”; “fazer aquilo que realmente funciona no longo prazo”, “mesmo que vá contra os instintos tribais” – isto é, contra os instintos de nosso grupo, seja ele nossa religião, nossa nação, a política com que temos afinidade. Por isso, e até para tirar a carga histórica pesada do termo utilitarismo, Greene acaba por transformá-lo em pragmatismo profundo.
Mas, pergunta o cético, não seria o utilitarismo uma filosofia materialista, amoral? Não, diz o professor Greene. Porque o que define a maximização da felicidade não é o número de superfluidades em nossa vida, mas a qualidade de nossas experiências: a qualidade dos nossos relacionamentos interpessoais, as virtudes pessoais, um ambiente de boa governança que comporte liberdade e justiça, e por aí vai.
Comumente associado ao liberalismo europeu, e ao progressismo ocidental de uma forma mais ampla – e o autor é ele próprio um orgulhoso liberal da Nova Inglaterra –, o utilitarismo de Greene, se observarmos bem, na verdade tem muito de sua raiz na boa tradição conservadora e religiosa. A imparcialidade utilitarista, afinal de contas, é “a essência universal da moralidade que foi destilada na regra de ouro. (…) Isso não significa que todos serão igualmente felizes, mas sim que a felicidade de ninguém é inerentemente mais valiosa que a de qualquer outro”. Há um bocado dos grandes monoteísmos contido nisso.
Joshua Greene está em busca de uma metamoralidade; uma filosofia que possa servir para a resolução de conflitos intergrupais, “nós X eles”, assim como a moralidade comum nos serve para lidar com os problemas que surgem dentro do nosso grupo, os problemas do “eu X nós”. O utilitarismo forneceria a metamoralidade adequada porque está ancorado no tipo de raciocínio correto para os conflitos dos tempos modernos, bem distintos daqueles do nosso passado tribal.
Nossa configuração mental automática– “emoções morais que motivam e estabilizam a cooperação no interior de grupos limitados” – é ótima para resolver os conflitos do “eu X nós”. O problema é que essa configuração mental é contraprodutiva na resolução dos problemas entre grupos, porque cada um deles possui sua própria configuração automática, suas próprias emoções morais, em suma, sua própria moralidade. “Há conflito nos novos pastos”, escreve Greene,
não porque os pastores sejam irremediavelmente egoístas, imorais ou amorais, mas porque não conseguem se afastar de suas perspectivas morais. Como deveriam pensar? (…) deveriam mudar para o modo manual.
A configuração mental manual é mais dependente da razão; mais apropriada para os impasses do “nós X eles”.
Nosso maquinário moral básico, do qual fomos dotados pela história evolutiva da espécie, pode servir para resolver conflitos dentro de um grupo fechado. Todas as evidências apontam no sentido de que evoluímos, psicologicamente, para sermos seres cooperativos no meio ao qual pertencemos. Pense no hormônio neurotransmissor oxitocina. Ele está presente no cuidado materno dos mamíferos, e estudos recentes, citados por Greene, mostraram como a oxitocina também nos torna mais cooperativos com indivíduos do nosso próprio grupo, e apenas com os do nosso próprio grupo. Da mesma forma, pesquisas com o Teste de Associação Implícita¹cada vez mais esclarecem como mesmo pessoas esclarecidas se baseiam na raça de outras pessoas para chegar a juízos sobre elas. Se a outra pessoa parece conosco fisicamente, tendemos a fazer um juízo positivo de sua confiabilidade e valor.
Por isso mesmo, nosso maquinário moral básico não serve como metamoralidade para mediar disputas intergrupais. Greene elenca seis “tendências psicológicas que exacerbam o conflito intertribal”. Por exemplo, cada grupo possui valores morais distintos, e ademais inclina-se à justiça tendenciosa, “permitindo que o interesse próprio do grupo distorça seu senso de justiça”. Resume o autor: “Alguns dos nossos maiores problemas morais são claros exemplos da tragédia da moralidade do senso comum – atritos entre tribos que são morais, mas diferentemente morais” (destaque dele).
Os compromissos que assumimos no interior de nossos grupos – compromissos, entre outras coisas, de fidelidade – podem fazer com que hoje vejamos alguns fatos de uma forma e amanhã vejamos os mesmos fatos de uma forma diferente, porque nosso conflito com outro grupo se acentuou, contaminando nosso juízo sobre esses dados. Meu caso preferido, entre os lembrados por Greene, é a discordância entre democratas e republicanos nos Estados Unidos sobre mudanças climáticas: em meados dos anos 1990, basicamente não havia discordância entre os dois grupos sobre o aquecimento global ser um problema digno de ser enfrentado o quanto antes; em 2010, com o acirramento da disputa intergrupal em outras áreas (raça, economia etc.), o debate das mudanças climáticas acabou sendo contaminado por tabela, e um democrata tinha duas vezes mais chances de reconhecer o problema climático do que um republicano.
2.
Joshua Greene – que além de filósofo é psicólogo experimental e neurocientista – defende que há uma convergência filosófico-psicológica que acaba por recomendar um modo de raciocínio mais efetivo para a solução das disputas quentes que envolvem nosso grupo versus outros.
Há modos diferentes de pensar, mais ou menos adequados a depender do tipo de problema que se está tentando resolver. São os modos mentais manual e automático citados anteriormente. O modo manual envolve principalmente o córtex pré-frontal dorsolateral (CPFDL); é o modo da razão, do controle cognitivo. O modo automático ativa o córtex pré-frontal ventromedial (CPFVM); é o modo da emoção.
Pegue o conhecido dilema do bonde². As pessoas são apresentadas a dois cenários. No primeiro, você precisa decidir se ativaria um interruptor para mudar a trajetória de um bonde elétrico que, se seguisse seu rumo natural, atropelaria 5 indivíduos; mudando o caminho, ele atropela apenas 1. No segundo cenário, para interromper a trajetória multiassassina do bonde, você precisa empurrar uma pessoan os trilhos e parar o bonde, trocando 5 mortos por 1.
Greene e sua equipe montaram uma série de experimentos parecidos com o dilema do bonde, e estudaram as imagens cerebrais dos participantes produzidas enquanto eles passavam pelos experimentos. Os cenários mais “impessoais”, como o ativar um interruptor, aumentava a atividade no CPFDL – a preocupação principal do participante é, por exemplo, a diferença entre o número de pessoas que serão beneficiadas se ele praticar determinada ação e o número das que serão prejudicadas. Os cenários mais “pessoais”, como o que, no dilema do bonde, envolve empurrar uma pessoa, ativavam o CPFVM – há mais emoção envolvida aí, para além dos cálculos do tipo quantas pessoas a menos morrerão.
“Nossas configurações automáticas não são utilitaristas”, escreve Greene, “mas, se eu estiver correto, nossos modos manuais são”. O autor detalha esse cérebro dual porque é exatamente de uma mudança de marcha que precisamos quando nos deparamos com conflitos entre grupos. Nessas situações, nosso instinto é usar o modo emocional, automático. Mas o que é necessário é o modo manual, utilitarista – por ser um modo que nos dá a habilidade de “visualizar possibilidades que não são automaticamente sugeridas pelo que quer que esteja à nossa frente”.
Saber o que aumenta a felicidade no longo prazo é obviamente impossível. Algumas pessoas veem nisso uma falha fatal do utilitarismo, mas, se pensar a respeito, você verá que isso não faz sentido. Todo mundo precisa dar algum tipo de palpite – informado ou não – sobre o que produzirá as melhores consequências de longo prazo. (Todo mundo exceto as pessoas que não se importam com elas.) O utilitarismo não se distingue por sua preocupação com as consequências de longo prazo. Ele se distingue por dar total prioridade a elas.
O utilitarismo é uma metamoralidade modesta. Não é uma verdade moral absoluta, “mas um bom padrão para solucionar desacordos morais no mundo real”. É uma metamoralidade que não exige perfeição moral daqueles que a adotam; exige apenas “que enfrentemos nossas limitações morais e façamos tudo que for humanamente possível para superá-las”. Isso não quer dizer que, em algum lugar, não possa existir uma verdade moral – mas o professor Greene não acredita que algum de nós tenha acesso a tal verdade. A solução realista e demasiada humana a que podemos nos apegar é “capitalizar os valores que partilhamos e buscar neles nossa moeda comum”.
É uma forma melhor de resolver conflitos do que partirmos de metamoralidades baseadas em pilares mais ambiciosos como, por exemplo, ciência ou religião. A ciência, é verdade, mostra que a função da moralidade é promover a cooperação. Mas não podemos nos fiar nesse dado para extrair uma metamoralidade, porque, como vimos, a cooperação favorecida pela evolução é a cooperação intragrupal– “a evolução pode favorecer pessoas que são gentis com seus vizinhos”, observa Greene, “mas também aquelas com tendências genocidas, e pelas mesmas razões subjacentes”.
E a religião? Aqui, o problema mais evidente talvez seja o do escopo: até que ponto devemos obedecer, por exemplo, às injunções dos livros sagrados? Até o ponto em que condena a homossexualidade (Levítico 18:22)? Até o ponto em que não podemos comer moluscos (Levítico 11:10)? Até o ponto em que é justificado vender uma filha como escrava (Êxodo, 21:7)? E quais autoridades religiosas deveríamos obedecer, se existem muitas com visões simplesmente incompatíveis em áreas vitais?
Um teste de fogo para a metamoralidade utilitarista proposta por Joshua Greene é a questão do aborto.
A criminalização do aborto retira a rede de segurança de milhões de pessoas, leva mulheres carentes a buscar procedimentos que aumentam seu risco de morte e atrapalha a vida de outras tantas que terão que ser mães sem vontade. Um alto custo em termos de sofrimento. Portanto, há um argumento de base utilitarista a favor da legalização do aborto. Por outro lado, criminalizar o aborto daria o direito à vida a várias pessoas, e salvar vidas é um bom argumento utilitarista.
Na balança do professor Greene, os argumentos “pró-escolha” acabam por vencer. Mas você não precisa concordar com essa conclusão para reconhecer que o utilitarismo é um bom campo para se pensar uma solução para o conflito. Na base da ciência ou da religião, provavelmente usaremos argumentos que convencerão apenas os já convertidos e manterão o conflito em aberto e provavelmente cada vez mais radicalizado, refém do nosso modo mental automático. Como disse Barack Obama, em discurso citado por Greene:
A democracia exige que os religiosamente motivados traduzam suas preocupações em valores universais, e não especificamente religiosos. Exige que suas propostas estejam sujeitas à argumentação e sejam receptivas à razão. Eu posso me opor ao aborto por razões religiosas, mas, se busco aprovar uma lei banindo essa prática, não posso simplesmente indicar os ensinamentos de minha igreja ou [evocar] a vontade de Deus. Preciso explicar por que o aborto viola algum princípio acessível a pessoas de todas as crenças, incluindo aquelas que não professam nenhuma.
Se, ao ler o trecho acima, você começar a pensar que isso é apenas a opinião de um abortista malandramente defendendo um modo de debate que favorece suas crenças assassinas, ou algo do tipo, não se preocupe: é o seu modo mental automático falando. Sugiro que respire fundo, mude para o modo manual e, se me permite uma dica de leitura, agende para o mais breve possível a leitura de Contra o aborto (Record, 2017), livro de Francisco Razzo que segue à risca o convite de Obama, com admirável poder de convencimento. Se algum dia chegarmos a uma política consensual para o aborto, acredito que terá sido pelo debate produzido sempre no modo manual, nunca no automático.
¹ Você pode explorar o Teste de Associação Implícita no site da Universidade Harvard: implicit.harvard.edu/implicit
² A versão moderna do dilema apareceu na Oxford Reviewem 1967, em um artigo sobre o aborto, de autoria da filósofa Philippa Foot: www2.econ.iastate.edu/classes/econ362/hallam/Readings/FootDoubleEffect.pdf
Daniel Lopes é psicólogo clínico e editor da Amálgama (revistaamalgama.com.br). Vive em Teresina.