Depois de recepcionados pelas boas-vindas do ator, cantor e compositor Seu Jorge no imenso painel de LED, as portas se abrem e entramos no grande hall. A primeira expressão é de espanto, logo seguida de admiração. Há um carro quase suspenso no ar, sobre um cajueiro revestido de crochê. Ouve-se uma trilha de cantos de pássaros, fragmentos e ruídos sonoros que nos dão a sensação de que entramos na floresta. E entramos!
O carro sobre o cajueiro é o raro Brasinca Uirapuru de 1964, caprichosamente pintado com as cores do pássaro amazônico que lhe dá nome. A instalação é obra do artista indígena cearense Rudá Jenipapo. Na parede do hall, gigantescas pinturas do também artista indígena Caripoune Yermolay, do Oiapoque, reproduzidas em crochê — compondo no hall um primoroso trabalho de cerca de duzentas crocheteiras do projeto Tecendo a Vida, do Instituto Proeza. Fechando a composição do hall, o quadro Alegoria da América (1590), um óleo sobre tela do renascentista italiano Niccolò Frangipane.
Estamos no hall de entrada do CARDE — Arte, Design Museu, que une carro, arte, design e educação, e acaba de abrir as portas para o público. Em Campos do Jordão, na Serra da Mantiqueira, no interior de São Paulo.
Corta.
Memória
Fim de tarde. O menino se acomoda no banco de trás do automóvel; vai começar mais um dos passeios dominicais no Aero Willys. Com seus irmãos a bordo, o automóvel dirigido pelo seu tio Antoninho parte de Osasco e segue por ruas e avenidas até chegar ao seu destino, o Parque do Ibirapuera. Estamos em 1966, ele tem sete anos e está há menos de dois meses na primeira série do curso Primário, o que hoje se denomina ensino fundamental. Pelo menos uma vez por mês o passeio automotivo percorre trajetos que o fascinam e ele sabe que ao chegar no parque vai tomar um sorvete, comprado em um dos carrinhos da Kibon; e, quem sabe, coroando a noite de domingo, se deliciará na Pizzaria Tarantela, em Pinheiros, ou na Miramar, no bairro da Lapa. A descoberta de uma metrópole, com seus luminosos, cartazes, carros, muitos carros por toda parte e, também, já muito trânsito. Talvez venha dessa época a sua completa identificação com o cenário totalmente urbano.
Pela janela do carro, o menino vê um mundo. Mais do que isso. De repente, ele percebe que já lê o que está escrito nos outdoors da Avenida Rebouças; já entende o nome das ruas que estão nas placas a cada esquina. Está pronto para uma das grandes emoções de sua infância: está alfabetizado. Já sabe ler e com essa conquista está pronto para ler o mundo.
Nos passeios de domingo, pela janela do Aero Willys azul, vejo uma cidade, um país. Vejo um Brasil.
Assim como eu, todos carregam lembranças afetivas com os automóveis. Memórias que fazem parte de nossas vidas e atestam as trajetórias pessoais de cada um. Também dos anos 60 do século passado vêm as lembranças do arquiteto, cenógrafo, designer e artista gráfico Gringo Cardia quando ele vê um DKW Belcar 1963. Seu pai o comprou para ser o carro da família e, por seu formato, faz o menino imaginar que agora ele também pode andar e viajar no carro voador de Os Jetsons, a família que vive muitos anos no futuro, na série de desenho animado da produtora americana Hanna-Barbera.
A emoção da lembrança toma conta de Gringo e sua irmã quando, há quase três anos, não só veem, como entram no DKW da coleção de Luiz Goshima, em Campos do Jordão. O filho de Goshima, também de nome Luiz, tem um sonho, que gera uma ideia, que por sua vez se torna um projeto: um museu do carro a ser instalado ali mesmo, na Serra da Mantiqueira, na cidade mais alta do Brasil. Luiz, o filho, quer mais do que automóveis de todas as épocas e de todos os lugares colocados lado a lado em um prédio, apenas com plaquinhas de identificação. Ele quer um museu do carro diferente, onde o automóvel possa ser uma forma de conexão — de pessoas, de histórias, de arte, de design, de tecnologia, de cultura. E, finalmente, tudo isso a serviço do mais nobre dos objetivos: ensinar. Em outras palavras, o carro como um veículo de educação.
A emoção toma contas dos irmãos Cardia, e Gringo aceita o desafio da curadoria do novo museu. Com sua experiência e com a ajuda de sua equipe, ele sabe que poderá contar histórias embaladas pela magia da interatividade e dos recursos audiovisuais, em que o carro é o fio condutor de memórias afetivas e, mais do que isso, um veículo para contar e ensinar a história do Brasil.
Pausa.
O desejo de Luiz, claro, não vem de algum capricho de um jovem empresário rico, cujo pai formou ao longo dos anos uma grande coleção de carros e, ao mesmo tempo, no paralelo, adquiriu obras de arte e de design. O sonho do filho é resultado do conceito que norteia a atuação da Fundação Lia Maria Aguiar — FLMA, da qual é Conselheiro. A FLMA é uma entidade com forte presença filantrópica em Campos do Jordão e há dezesseis anos atua nas áreas de Educação e Saúde. Com mais de 700 alunos, cujas idades variam entre 6 e 18 anos, forma jovens em três núcleos artísticos — Dança, Música e Teatro. Em modernas instalações, o Núcleo de Saúde presta serviços ambulatoriais, com várias especialidades médicas. Sob a gestão do Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês, o núcleo atende também pacientes renais, com 10 estações de hemodiálise, as únicas na cidade e com os mais avançados equipamentos do país.
A fundação é obra da senhora que lhe dá nome — Lia Maria Aguiar, filha e herdeira do banqueiro Amador Aguiar, fundador do Bradesco. Dona Lia, como é conhecida na cidade, doou parte de sua fortuna para criar a entidade, com o propósito de melhorar a vida de jovens e suas famílias de Campos do Jordão, cidade em que tem casa e ali residiu por muitos anos. Ela encontrou no amigo Goshima — o pai, que morreu em 2023 — o parceiro ideal para tornar o desejo em realidade. Também ela amante de carros antigos e suas histórias, abraça a ideia do filho do amigo e vê nela também um projeto de educação e cultura, em total sintonia com o propósito da sua fundação.
Corta para plano americano do curador.
“Ao visitar o acervo do senhor Goshima, encontrei o mesmo Belcar da minha infância. Idêntico! O cenário era igual ao da minha casa no interior do Paraná. Cheio de araucárias, uma das árvores mais lindas do Brasil. Eu e minha irmã ficamos emocionados, e percebi, naquele instante, como os carros trazem memórias, sonhos e fazem conexões com muitas histórias.”
Gringo lembra que, ao tomar contato com aquela coleção incrível de automóveis e nas longas conversas com Luiz Goshima, eles decidem que o museu deveria contar essa história de conexão de forma “leve e divertida” e, claro, contextualizada com a História do Brasil. Para o arquiteto, designer e curador, o caminho é “criar espaços que refletissem cenograficamente as muitas histórias com provocações visuais e sensoriais. Seduzir também pela beleza dos objetos e dos veículos. O poder do design”.
Esse desafio de fazer do automóvel um “elo que nos conecta às nossas próprias narrativas passadas” como uma reflexão sobre nossa história e um local “onde a brasilidade se revela em novas e emocionantes expressões” exigiu a participação de outros profissionais que contribuíram para a formatação do novo museu.
Gringo Cardia destaca que para isso “convocamos parceiros e mestres em suas áreas”: a professora Heloísa Starling e o Projeto República da Universidade Federal de Minas Gerais, com sua visão crítica da história do Brasil; os professores Carlos Castilho e Francesca Córdova e a história do design dos automóveis; os curadores e professores Felipe Scovino e Keyna Eleison, com suas visões sobre arte da coleção e da obra de Emanoel Araújo; o historiador automotivo João Pedro Gazineu e a diretora teatral e atriz Stella Miranda, “que me ajudou nas intervenções teatrais e musicais com os jovens da Fundação no espaço do museu”.
História
Se tudo no Carde pode atiçar nossa memória, em um cenário em que o automóvel, mais do que razão, é o gatilho para lembranças pessoais em meio aos grandes acontecimentos que forjaram nosso país nos últimos 130 anos, o seu diferencial está mesmo em fazer do carro o fio condutor da história brasileira. Afinal, como destaca a professora Heloísa Starling, “há sempre uma história a ser contada sobre o cotidiano, a cultura, a política ou a economia da sociedade brasileira, em que o automóvel participa — e pode puxar o fio da narrativa que confere sentido ao acontecimento”.
É exatamente nesse vai e vem que o carro se torna, sem trocadilhos, um veículo que transporta também a vida cotidiana, a qual, inserida em um contexto político e econômico mais amplo, adquire novos significados a partir das relações de consumo. Diz Heloísa Starling: “o automóvel é um coadjuvante, mas astuto: permite enxergar a história do Brasil também por outras perspectivas”. Em uma delas, diz a professora, “as histórias apontam as razões pelas quais determinadas escolhas foram feitas, posições foram assumidas, seu motivo e entendimento; revelam igualmente as suposições, crenças e ideias que oferecem sentido aos eventos de uma determinada época”.
Por sua vez, o automóvel é, ele mesmo, um objeto que transcende a sua própria função. Muito além da sua mera perspectiva, o carro conta também a sua própria evolução de meio de transporte à peça que se permite ser artística. Como o cientista Jacob Bronowski destaca em sua monumental série documental A Escalada do Homem, “mesmo na pré-história o homem construía ferramentas com corte mais afiado do que era necessário”. Desse modo, o corte mais fino destinou a ferramenta a um uso mais delicado, ou seja, “um refinamento prático e uma extensão de uso para a qual a ferramenta não havia sido construída”. Por isso, não há incentivo mais poderoso do que o prazer que podemos extrair de nossa própria habilidade. Bronowski conclui que, se ficamos felizes com aquilo que fazemos bem, obtendo esse resultado o ser humano “delicia-se em aperfeiçoá-lo”.
No Carde, em que vemos a contextualização do automóvel como conexão e repositório de experiências e transformações sociais e artísticas, podemos não só observar como sentir a força do design como forma de expressão e, assim, também como meio de comunicação. Nesse sentido, o professor de design automotivo e consultor do museu, Carlos Castilho, destaca que “poucos se dão conta de o quanto o design do automóvel influenciou e foi influenciado por áreas como as artes plásticas, a arquitetura, a música, a moda e o comportamento”.
Se o automóvel é veículo para a nossa história, e ele mesmo objeto cultural, o novo museu coloca, também em evidência, a sua conexão com a Arte e, por meio dela, a nossa própria forma e possibilidade de expressão. Por sua vez, como o Carde se propõe a ser um meio de educação, a arte exposta no museu ganha contornos que extrapolam o mero conceito expositivo. A arte é também a forma pela qual nos vemos e nos identificamos nos contextos históricos narrados.
E como se dá esse vínculo com a arte?
O curador Felipe Scovino explica que podemos pensar primeiro nas pinturas iniciais da coleção, que reportam um Brasil sendo visto e pensado pelos conquistadores, pelos dominadores, “portanto, um Brasil selvagem, um Brasil bárbaro”. Quando deslocamos o foco para o final do Século 19, começo do Século 20, temos o início da ideia de industrialização e, posteriormente, da chegada da indústria automobilística. “Primeiro, podemos pensar no marco histórico que é o artista negro Heitor dos Prazeres, que nasceu em 1898, dez anos depois do fim da escravatura. É a primeira geração de artistas negros a pensar o seu corpo como autorrepresentação; pensava a conquista do espaço social pelo corpo negro. Quando um museu que fala de design de automóveis se preocupa em colocar esse contexto todo, a ideia é trazer o passado de forma crítica”.
Por sua vez, a curadora Keyna Eleison destaca que ao adquirir a coleção do artista e curador Emanoel Araújo, a Fundação que criou a Carde traz para dentro do museu uma poderosa ferramenta de educação e sobre o papel da arte na sociedade. Ela conclui que “por meio desse acervo, Emanoel Araújo não apenas preserva o passado, mas também incentiva uma reflexão crítica sobre as questões contemporâneas que envolvem raça, identidade e cultura no Brasil”.
Mas, claro, se o carro é o fio-condutor das histórias narradas, cada um deles foi “criteriosamente selecionado para representar fielmente os temas centrais do museu”, destaca João Pedro Gazineu, historiador automotivo do Carde. Ele lembra que, por isso, a maior parte dos automóveis exibidos no museu é formada por modelos únicos no mundo, “ou exemplares de destaque na produção nacional e internacional”.
Magia
Para além de sua representação inicial como produto, o carro carrega significados que estão em constante mudança ao longo do tempo e dos contextos em que ele está inserido. Se no início ele simbolizava o “brinquedo do homem rico”, sua produção em massa tornou-o essencialmente um veículo de transporte. Essa popularização do carro fez com que variados significados emergissem dele, com identidades e papéis sociais atribuídos ao seu usuário. O sociólogo britânico John Urry (1946-2016), estudioso do turismo e da mobilidade, concluiu que deveríamos “abandonar a ideia do carro como uma coisa, um simples objeto de produção e consumo, e considerá-lo como um sistema de práticas sociais e técnicas interligadas que reconfigurou a sociedade civil”.
Exatamente por isso, por meio do diálogo instigante entre formas e conteúdos, entre arte, design, história e memórias, que o Carde opera sua magia, porque tudo isso nos é mostrado também embalado por muita tecnologia, interatividade e, principalmente, surpreendentes apresentações teatrais e musicais ao vivo.
Ao orquestrar tudo isso, o curador Gringo Cardia diz que qualquer coisa que envolve informação e conhecimento, hoje em dia, tem que se dar pelo sentimento. “As pessoas só entendem as coisas se elas sentem”, ou seja, pela emoção. Daí o conceito de museu interativo, que também é um museu imersivo, “porque trabalhamos para gerar em cada um a mais forte emoção aqui dentro. Na sua casa, com a televisão, por exemplo, você sente um tipo de emoção; mas quando o espaço, o objeto que você vê ao vivo te dá emoção, você fica arrepiado, porque ela vem do seu subconsciente, ela estava escondida e a lembrança trouxe à tona”.
Assim, conclui Cardia, “você chega, você tem uma coisa muito emocional com o carro, porque o carro é a sua família, sua casa. É a sua casinha andando pelo mundo. E você andou pelo mundo literalmente. É memória pura”.
Aquele menino que pela janela do Aero Willys Azul, em 1966, percebeu que podia ler o mundo, está agora dentro do Carde. Dentre todas as salas temáticas do museu, uma em particular lhe traz fortes lembranças, atiça a sua memória. Ele entra na sala Arquitetura do Futuro, que fala da nova capital federal, da visão de JK, das linhas de Niemeyer; de construções e candangos; da poesia de Vinicius de Moraes e a música de Tom Jobim; da Sinfonia da Alvorada ao samba Alvorada do carioquíssimo Cartola.
Nessa sala estão, para seu espanto, os carros de sua infância, perfilados lado a lado: o Gordini, o DKW Belcar, o Karman Ghia, o Opala, a Rural Willys e, claro, a Romi-Isetta. Não vê o Aero Willys porque este está exposto do lado de fora, logo na entrada do museu — e é azul como o da sua memória.
No imenso painel de LED começa o vídeo em preto & branco, com roteiro da atriz e diretora Stella Miranda. Surge Seu Jorge, de terno e gravata, personificando o presidente Juscelino Kubitscheck e ele fala pela poesia de Vinicius:
— Convoco todas as forças vivas da nação, todos os homens que, com vontade férrea e confiança no futuro, possam erguer, num tempo novo, um novo Tempo!
Ao lado, também encarnado por Seu Jorge, aparece um candango:
— E à grande convocação, começamos a chegar de todos os cantos do Brasil. Nos, os Candangos com pés de raiz, rosto de couro e mãos de pedra! Fomos chegando em grandes levas, com nossa áspera doçura, em nossa mudez cheia de esperança! Em carros de boi, em lombo de burro, em paus-de-arara, começamos a chegar de todos os lados da imensa pátria!
Ao final, o candango Seu Jorge, à capela, entoa Cartola: “Alvorada lá no morro, que beleza/Ninguém chora, não há tristeza/Ninguém sente dissabor/O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo/E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo/”.
Alvorada…
Cinco músicos, postados no canto do telão passam a tocar ao vivo. E logo surge um cantor que, diante de nós, os visitantes, canta os lindos versos de Cartola. O menino, agora com quase 66 anos, fica arrepiado e, de repente, vem lágrimas da mais pura emoção.
Sim, Gringo Cardia está certo, a gente só entende o que sente. E no momento em que assino o Cord branco, posicionado em uma redoma de vidro, como um livro-carro, lembro-me, sabe-se lá por quais sinapses, de T.S. Eliot. Em seu poema Burnt Norton, em Quatro Quartetos, na tradução de Ivan Junqueira:
O tempo presente e o tempo passado/Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/E o tempo futuro contido no tempo passado./Se todo tempo é eternamente presente/Todo tempo é irredimível./O que poderia ter sido é uma abstração/Que permanece, perpétua possibilidade,/Num mundo apenas de especulação./ O que poderia ter sido e o que foi/Convergem para um só fim, que é sempre presente./Ecoam passos na memória /Ao longo das galerias que não percorremos /Em direção à porta que jamais abrimos/Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras/Em tua lembrança.
Jeffis Carvalho é editor do Estado do Cinema. Jornalista, roteirista, pesquisador de cinema e consultor de comunicação. Integra a equipe de Jornalismo Audiovisual do CARDE.