por José Eduardo Faria
A ideia de enxugamento constitucional é engenhosa à primeira vista. Ela vem, justamente, num momento em que o Executivo, impulsionado pelo ultraliberalismo do ministro da Economia, quer enfraquecer o STF, para que não tenha a força política para acatar as ações de institucionalidade contra sua pauta de reformas. E tem, igualmente, a simpatia daqueles que, desde a promulgação da Carta, em 1988, tentam desqualificá-la, classificando-a como uma simples somatória de reivindicações e de anseios desencontrados. Contudo, enxugamento não se confunde com simplificação. São coisas distintas, com resultados não necessariamente convergentes. Juridicamente, além disso, a proposta despreza problemas de hermenêutica constitucional e temas fundamentais sobre o futuro da democracia. Uma questão envolve a especificidade do direito, que é a de se obrigar a decidir todos os casos qualificados como jurídicos. Outra diz respeito ao Judiciário, que exerce atribuições preordenadas por esse direito. Do entrecruzamento dessas questões resulta a figura jurídica do non liquet – a proibição de denegação de justiça que obriga os tribunais a decidir os casos que lhes são submetidos, mesmo quando há incerteza sobre as regras aplicáveis a eles.
Por causa do non liquet, os tribunais não podem deixar de julgar recursos impetrados por minorias derrotadas no plano político, tentando revertê-las judicialmente. Ainda que não caiba à Justiça tomar para si escolhas próprias do Executivo e do Legislativo, muitas vezes ela é chamada a fazê-lo. Os tribunais também têm de suprir omissões do legislador, quando provocados, e exigir de governantes medidas que concretizem a vontade constitucional. Têm, ainda, o dever de fiscalizar a submissão dos atos governamentais e legislativos às decisões judiciais. E se encontrarem inconstitucionalidades em atos do Executivo e leis aprovadas pelo Legislativo, podem bloqueá-los. No passado, as Constituições se limitavam a assegurar a separação dos Poderes e a definir garantias. Agora, incorporam direitos sociais e princípios. E não são mais apenas instrumento de limitação do poder estatal, buscando, também, criar condições de realização de justiça substantiva.
Nesse cenário, há um ponto que a tese do enxugamento não dá valor. Para escoimar os princípios da Carta, é preciso que houvesse na sociedade brasileira práticas sedimentadas e expectativas comuns de justiça. Mas, dado seu dinamismo, rotinas são difíceis de serem formadas nessa sociedade. E como ela é marcada por fortes desigualdades, os mecanismos de formação de vontades coletivas estão erodidos. Em vez de práticas sedimentadas e compromissos de reconhecimento recíproco, o que se tem são fraturas sociais, instabilidade e uma crescente anomia da vida urbana, em cujo âmbito não há valores comuns enraizados e parte do poder é estabelecida fora dos espaços institucionais, pelo narcotráfico e pelas milícias. Essa realidade já existia à época da Assembleia Constituinte. Diante do desafio de obter algum consenso, os constituintes recorreram a regras objetivas, quando disciplinavam comportamentos rotineiros, e a normas programáticas, quando tinham de legislar para comportamentos não habituais. Por serem vagas, as normas programáticas consistem numa técnica de estabilização das expectativas normativas. Essa técnica permitiu aos constituintes persuadir os cidadãos que, apesar de suas divergências, todas suas reivindicações foram por eles acolhidas. Mas, quando aplicam normas indeterminadas, os juízes têm de lhes dar sentido, o que os converte em co-legisladores, ampliando os conflitos entre os Poderes.
Enxugamento não se confunde com simplificação. São coisas distintas, com resultados não necessariamente convergentes
É certo que o STF tem tomado decisões desencontradas causadas por interpretações polêmicas de uma Carta que lhe conferiu mais poderes. Mas isso também decorre tanto da conduta de alguns ministros, como se viu nas recentes lambanças tanto de seu presidente e do ministro ao qual atribuiu o papel de impor censura à imprensa, quanto da falta de uma liderança que viabilize entendimentos hegemônicos na corte. E não, exclusivamente, de falhas de uma Constituição que, se por um lado contém normas desestabilizadoras das finanças públicas, especialmente as baseadas na lógica de interesses corporativos, por outro contempla regras que institucionalizam o princípio da responsabilidade fiscal, impondo restrições orçamentárias à União, aos Estados e aos municípios. Que a Constituição tem de ser revista para permitir redução de gastos obrigatórios com corporações privilegiadas e assegurar flexibilidade para a gestão econômica, é evidente. O problema está no modo de reformá-la, o que pode trazer problemas e não soluções.
A comemoração do 30° aniversário da Constituição, no final de 2018, teve como contraponto dois fatos conexos. Por um lado, a eclosão de novas críticas contra o Supremo Tribunal Federal (STF), no sentido de que seus ministros estariam exorbitando ao interpretá-la – a ponto, inclusive, de cercear direitos e de pôr em risco a liberdade de expressão. Por outro, a vitória de um capitão reformado cujas políticas públicas mais dia menos dia terão sua constitucionalidade questionada nessa corte, o que exigirá de seus magistrados, por consequência, mais conjecturas sobre hermenêutica jurídica.
No debate que vem sendo travado desde então sobre as competências do STF em matéria de controle de constitucionalidade, destaca-se uma proposta polêmica para restringi-las e, ao mesmo tempo, evitar as dificuldades políticas comuns aos processos de revisão constitucional. Essa medida, que consta do pacote da reforma previdenciária, consiste em desidratar a Carta, mediante a supressão de vários artigos e a subsequente transferência das matérias por eles tratadas para a legislação ordinária. Formalmente, a justificativa é de que a exclusão de regras previdenciárias do texto constitucional facilitaria outras reformas na área por meio de leis cujo quórum para aprovação é menor do que o das Propostas de Emenda Constitucional (PECs). Politicamente, contudo, o intuito é claro e potencialmente perigoso: quanto mais enxuta for a Constituição e mais normas e princípios dela forem expurgados, menor seria o poder do STF. A proposta é uma resposta a ministros acusados de invadir a jurisdição dos demais Poderes.
Em vez de práticas sedimentadas e compromissos de reconhecimento recíproco, o que se tem são fraturas sociais, instabilidade e uma crescente anomia da vida urbana
Constituições precisam estar abertas a revisões e reformas – até porque, se não forem atualizadas, impõem a concepção de poder de uma geração sobre as seguintes de modo ilegítimo. Mas, ao sugerir a desidratação constitucional para tirar dos ministros do STF a base jurídica para classificar como inconstitucional políticas públicas do Executivo, os proponentes dessa estratégia desconsideram os riscos inerentes à supressão de garantias institucionais e de laços normativos que ainda vinculam cidadãos numa sociedade conflitiva. Parecem esquecer-se do esgarçamento do contrato social, revelado pelos números do Atlas da Violência de 2018, e das ameaças à institucionalidade democrática implícitas em algumas propostas que têm sido apresentadas pelo governo do capitão reformado a pretexto de promover o “bem geral do povo brasileiro” – seja lá o que isso possa significar.
José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor da Fundação Getúlio Vargas (Programa FGVLaw). É autor de “Justiça, Moralidade Pública e Corrupção”, que será lançado em junho pela Editora Perspectiva.