Ricos em alto-mar

Ultrapassamos os ricos, ultrapassamos o dinheiro, ultrapassamos a dor. A vingança da classe média é a desforra do nerd de classe média.

por Thiago Blumenthal

Acabo de comprar uma Lacoste. Fabricada na China, ou em alguma costuraria do Bom Retiro, 15 reais. Comprei do Silas, moçambicano, que já se tornou um amigo leal, confiável, de quem sempre adquiro minhas Lacostes e Nikes para os domingos de calor, para jogar futebol ou basquete com os amigos. Por vezes até me atrevo em situações sociais, como quando vou ao HC ou quando vou prestigiar algum autor que lança livro. Penso em ir a um evento na ABL com a Lacoste preta por baixo do traje “passeio completo”, exigido para a cerimônia no convite.

Piadas à parte, alcançamos os ricos. O que antes era um privilégio inatingível, a polo Lacoste de 400 reais, o cruzeiro marítimo passando pelas Malvinas, a passagem aérea a Paris, o jantar no Ici, tornou-se liquefeito. A família da filha que se forma vai jantar no Ici; seu namorado veste Lacoste; e aguarde uma viagem a Paris ou a Buenos Aires a caminho.

Não são os anos de bonança das políticas irresponsáveis da tríade mágica FHC-Lula-Dilma. It’s not the economy, stupid, é uma conjunção de fatores em escala mundial de ordem mais geracional do que local.

Não é o Brasil, são os tempos. Ficou mais fácil ganhar, e gastar, dinheiro. Meus pais ainda acham um Big Mac caríssimo. Eu acho caro. Os filhos (que não terei) acharão barato e meus netos, uma pechincha. Não estarão eles mais ricos ou mais pobres, é que o dinheiro passa a representar com o tempo uma ideia abstrata onde o bem de consumo lhe ultrapassa.

Não por acaso moedas como o bitcoin ou o ethereum, atente para o nome, é que baterão o martelo da vez. Compra-se codeína em alguns minutos com alguns trocados de bitcoins e ignoramos a dor do corpo, a dor do mundo. Etéreo. Ultrapassamos os ricos, ultrapassamos o dinheiro, ultrapassamos a dor. A vingança da classe média é a desforra do nerd de classe média.

No livro Generation Wealth, de Lauren Greenfield, há uma gama de jovens endinheirados de Los Angeles. Mas não só. Há jovens de classe média também, como aqueles que cabularam aula para passar o dia com seus conversíveis. Para a revista Wired, trata-se de “obscene wealth”, mais do que “real wealth”, em um universo onde os ricos querem mais querer do que propriamente ter. Em um mundo onde os seus concorrentes da camada mais abaixo da pirâmide podem ter as mesmíssimas coisas, é preciso querer coisas diferentes. Quando os ricos me veem com minha Lacoste do Silas, de 15 reais, idêntica à original, eles precisam querer algo distinto, de acordo com a tese, e a principal tendência é a de buscar espiritualidade e alta cultura.

A publicidade responde, como sempre, às ânsias de qualquer público e, para isso, criou nas últimas décadas fenômenos como as TED Talks (soube recentemente que já há as USP Talks), as Schools of Life, as Casas do Saber. São respostas às demandas aparentemente exclusivas de uma camada privilegiada da pirâmide, que, diferentemente, do populacho, passou a preocupar-se com alta cultura, com psicanálise, com história da arte, antropologia, e literatura.

Há gente (ricos) se formando em cursos de psicanálise, podendo clinicar. Conheço uma pessoa, cristã, que pretende falar dos evangelhos com seus pacientes assim que ele terminar seu curso e abrir seu consultório de tendência junguiana. Eu poderia falar, recriminá-lo, mas aquiesço, baixo a cabeça, me lembro do senhor K., que não era nem do castelo, nem da aldeia, não era ninguém. Então quem sou eu para falar algo? Há ricos que se convertem ao judaísmo por motivos muito menos dignos, oras. Divago, contudo.

Os ricos buscam hoje se diferenciar com cultura, mas, em conversa ontem com um professor amigo meu da Columbia University, que está em férias em São Paulo, ele reiterou um movimento da rainha que está abalando inclusive o jogo da cultura: o populacho está chegando à cultura. As TED Talks têm milhões de visualizações (até pouco tempo estava no Netflix – hoje há palestras relacionadas de “gurus”), a madame dos Jardins precisa sentar-se do lado do adolescente hipster que se endivida para pagar o curso de história da arte do Rodrigo Naves, a classe média lota o Masp para ver Toulouse-Lautrec, já lotou a Pinacoteca, lota a Bienal de Veneza para ver Damien Hirst. De modo que ontem, já no terceiro café, nos perguntamos: mas e aí, quando o rico não conseguir mais se distinguir nem culturalmente da classe média, para onde ele vai? Pulará em alto-mar?

Me, I’m a loner, como diz Clint Eastwood. Não paguei um tostão para aprender sobre os dybbuks que atormentam minha alma, nunca tive muita grana para correr atrás do que Freud dizia sobre mim mesmo, então era o dinheiro da condução para a biblioteca. Nem nunca paguei universidade, ou curso para me ensinarem sobre as reais motivações do capitão Ahab. Porque aquelas motivações doentias eram minhas, à noite, à meia-luz, páginas virando furiosamente, arpão à mão esquerda e meu coração estraçalhado à direita.

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