por Thiago Blumenthal
Em tempos de muita gente, em especial góis, falando muita besteira sobre as declarações recentes de Natalie Portman, e em tempos de comemoração dos 70 anos de Israel, achei que seria necessário um resuminho do que é sionismo, do que foi e do que é Israel. Fico só devendo um ensaio sensual sobre Natalie Portman, com fotos de toda a sua filmografia. Fica para o próximo artigo do Estado da Arte.
O extermínio sistemático de milhões de judeus durante a ascensão ao poder do nacional-socialismo alemão implica em um tema, logo de início, penoso, pois lida com questões de ordem traumática, de um certo pudor que exige atenção, cuidado e domínio do que se trata. Nesse artigo, pretendo partir de uma perspectiva histórica em relação ao sionismo e às lideranças do yishuv[1], de como a Shoá (palavra hebraica comumente utilizada para se referir ao Holocausto, dado o sentido por muitas vezes pejorativo que esse significante carrega) foi assimilada por essa sociedade e pela ideologia sionista.
Tomando três caminhos distintos, não-excludentes e imbricados, este texto abarca: em que sentido a Shoá legitima o Estado de Israel e possibilita sua criação; o ambíguo jogo ideológico sionista, enquanto apropriação de um evento e rejeição do mesmo; e o reflexo no campo lingüístico, na rejeição da língua iídiche, como língua da judiaria ashkenazita vitimada pelo nazismo.
De minha parte, adoto uma posição pós-sionista; fazendo uma leitura do sionismo, esse movimento contemporâneo tem uma postura crítica à organização que deu as bases para a criação do Estado judeu na Palestina. Porém, algumas dessas leituras são aqui discutidas, a fim de haver uma melhor apreciação desse tema tenso e nevrálgico.
Uma vez legitimado o Estado de Israel em sua Declaração de Independência pela Shoá, o sionismo passa a usar tal referência histórica para ratificar a necessidade desse estado.
“O holocausto nazista, que aniquilou milhões de judeus da Europa, demonstrou tragicamente, a urgente necessidade de se resolver o problema da falta de uma pátria judia, através da criação do Estado na Terra de Israel, que abriria suas portas a todos os judeus e que lhes outorgaria plena igualdade de direitos no seio da família das nações.
Os sobreviventes da catástrofe européia, e judeus de outros países, reivindicando seu direito a uma vida de dignidade; de liberdade e de trabalho na pátria de seus antepassados, e sem deixar-se intimidar por obstáculos ou dificuldades, procuraram incansavelmente voltar à Terra de Israel.”[2]
A destruição de uma enorme parte da judiaria ashkenazita vem apenas intensificar a visão negativa que o sionismo tinha da diáspora exilada, a Shelilat Hagalut. Ou seja, a Shoá funcionava como prova cabal e definitiva e final de que uma vida bem integrada ao meio na diáspora era problemática, já que instável, insegura e ameaçadora.
Posicionamentos pós-sionistas veem todo o processo de construção desse discurso sionista em relação à Shoá de maneira crítica, no intento de desmitificar a história israelense e de sua criação e desenvolvimento.
Boaz Evron, colunista de dois jornais importantes de Israel atualmente, o Yediot Ahoronote o Haaretz, lembra que, quando a sugestão da criação de um Estado judeu na Uganda é negada, há aqui uma indicação de que os sionistas buscavam não somente salvar os judeus, mas, prioritariamente, a criação do Estado judeu na Palestina. Para ele,
“Zionism ceased being a territorial movement aimed at the solution of the problems of the Jewish people, and as a matter of fact ceased being zionist in the Herzlian sense of the word.”[3]
Aqui cabe fazer duas observações referentes à afirmação de Evron. Primeira: quando faz referência ao sentido herzliano da palavra, temos que apreciar qual é esse sentido.
No primeiro Congresso Sionista realizado em Bâle, a 29 de agosto de 1897, adota-se, pela primeira vez, um programa cujos termos e bases seguem abaixo:
- o objetivo do sionismo é criar um Estado seguro para os judeus;
- encorajamento ao desenvolvimento desse ideal;
- organização e federação de todo o judaísmo nas sociedades locais;
- instigação da consciência judaica;
- obtenção do consentimento dos governantes;
- a criação de uma organização sionista mundial.
Por mais que houvesse (e sim havia) um certo consenso de que esse Estado seguro para os judeus devia ser na Palestina, não há uma explicitação nesse sentido – acima de tudo, um Estado seguro para os judeus. Esse parece ser o sentido herzliano da palavra a que Evron se refere.
Porém, enquanto esse primeiro ponto parece coerente, nossa segunda observação refuta o argumento pelo colunista utilizado, o de que a negação da solução em Uganda poder ser tomada como um índice de displicência em relação aos judeus vitimados, refletindo o contexto do extermínio nazista.
Trata-se de uma afirmação que não leva em conta o período histórico nem de uma situação nem de outra. Quando Lord Chamberlain sugere a Uganda e Herzl e toda liderança sionista recusa, estamos em 1903, ou seja, trinta anos distantes da ascensão do nazismo ao poder na Alemanha, e quase quarenta anos distantes da solução final empregada pelo totalitarismo de Hitler. A distância não é só temporal, mas sim de urgência. Por mais que os ashkenazitas já viessem sofrendo discriminações por toda a Europa, é impossível comparar sua experiência até então àquela que se daria sob a máquina nazista.
O que queremos dizer é que utilizar a recusa da Uganda como índice de indiferença em relação ao sofrimento judeu na Europa recai no erro justamente evitado pelos pós-sionistas: o histórico. Sim, havia o desejo da criação do Estado judeu na Palestina, porém essa discussão já se dava muito antes do massacre nazista e, à época do mesmo, já havia uma comunidade judia fortemente estabelecida na região.
Voltando à leitura pós-sionista, o sionismo acabou por utilizar a judiaria sobrevivente e despedaçada (mais o peso simbólico dos milhões de mortos) da Shoá como instrumento ideológico de justificação do Estado. Fica implícito aí o interesse nos imigrantes em potencial e, especialmente, no apoio financeiro e político à causa vindo de fora, que se sensibilizariam com o sofrimento passado na Shoá.
O primeiro a criticar o comportamento sionista durante a Shoá foi o crítico Shabtai Beit-Zvi, em seu controverso livro sobre a crise do sionismo pós-Uganda[4]. Para ele, há uma transição de um movimento supostamente com fins de salvar os judeus para uma organização cujo único objetivo era criar um Estado judeu na Palestina.
Estudos referenciados em seu livro mostram a resistência de líderes sionistas a tomarem iniciativas diplomáticas em favor da judiaria europeia e o não investimento de recursos para a causa, se isso não fosse de interesse direto do yishuv.
Seu posicionamento, como já dito, é controverso e implica questões como: que tipo de iniciativa podia ser tomada diante da máquina sistemática nazista que usava uma codificação que tonteava, não só a Europa mesma mas como os próprios judeus vitimados?
Voltando a Boaz Evron, a ideologia de negação da diáspora exilada, a Shelilat Hagalut, deu o tom ao modelar o comportamento sionista durante a Shoá e mesmo posteriormente: a rejeição total do exílio judeu criou nos líderes sionistas uma espécie de barreira psicológica entre eles e a catástrofe judia. Interessante observar que se trata do mesmo tipo de comportamento em relação aos judeus de origem oriental, que acabou por estratificar uma sociedade israelense de classe plenamente ocidentalizada.
A rejeição do trauma do passado
Quero observar, agora, o contraste entre a imagem do Sabra israelense com o judeu vitimado pela Shoá, e como essa dicotomia mitifica o primeiro e minimiza o segundo.
A origem do termo Sabra vem do fruto de vários cactos originários da região litorânea da Palestina, carregando em si uma simbologia de resistência e força. Desse modo, o novo israelense, o Sabra, veio para derrubar aquele passado exilado judeu, visto como subserviente – mitifica-se esse novo israelense, elegendo um herói-símbolo coletivo, processo característico de toda luta nacional em nome de um ideal comum.
Na concepção sionista, o contraste entre o Sabra israelense e o judeu exilado, diaspórico (visto como improdutivo, fraco e parasita), é realçado dentro do contexto do extermínio nazista de milhões de judeus. Assim, a Shoá é tida e recebida ao mesmo tempo como covardia e falta de ação, mas também como o argumento perfeito para a legitimação do estado.
Traça-se, assim, o axioma de que não há esperança para a judiaria exilada: o que ajuda a legitimar o Estado judeu se mostra justamente nessa rejeição de seu exílio. Acaba-se tendo a oposição fatal do herói Sabra com o judeu da Galut (exílio e dispersão), fracassado e impotente. Em um processo binário, a derrota e a impotência do exílio legitima primeiro o Estado judeu, depois mitifica o Sabra, que se sobrepõe ao exílio, rejeitando-o e esquecendo esse passado traumático.
Yael Zerubavel[5]vê a Shoáe a criação do Estado de Israel como uma dicotomia histórica, sempre de exílio-retorno, durante todo os momentos do povo judeu. Dissociar esse retorno do passado exílico e da tragédia da Shoáé parte do discurso sionista no intento de formar um novo judeu, uma nova sociedade e uma nova judeidade, acima de tudo. Porém, ao tentar-se realizar essa dissociação, fica estabelecida uma hierarquização: o Sabra sempre superior ao europeu, ao judeu exilado.
A ideologia da mudança, presente no novo nome do judeu recém-chegado, carregava em si uma fragmentação identitária que ia muito além da troca de nome. Zerubavel nota um reverso identitário, mais o retrato das identidades espelhadas pelo tempo e pelo espaço dentro de um quadro a-histórico.
Com isso, há uma clara demonstração do fracasso das narrativas sionistas homogêneas. Ao trocar-se o nome e deixar um passado para trás, aniquilava-se uma identidade intrínseca europeia, criando um conflito subjetivo, perseguido pelo eterno fantasma da memória. A falha do intento sionista de uma sociedade una, plenamente israelita, bem ilustra como a tensão envolvida era de certo modo permanente e nevrálgica.
Essa atitude de rejeição só começaria a mudar após o processo de Eichmann em 1961 e, especialmente, na Guerra de Yom Kipur, de 1973, primeira experiência verdadeiramente traumática de Israel, que aumentou o interesse na história da Shoá, um maior respeito em relação à mesma, e uma maior simpatia para com as vítimas. O que parece ter ocorrido foi uma identificação e um sentimento de coletividade, de um destino comum.
Ídiche como idioma das vítimas
A ideologia sionista de dissociação do passado europeizado em nome de uma identidade plenamente una de ordem israelita tem um de seus reflexos mais diretos no confronto lingüístico que se deu entre o iídiche e o hebraico.
Buscando a base religiosa, a escolha do hebraico teve duplo significado: além do reavivamento do da língua da Bíblia, havia a busca de um novo paradigma, dessa vez distanciado de tudo que lembrasse um passado exílico e polilíngue.
O iídiche, em sua essência, apesar do alfabeto hebraico, tem em sua estrutura influências alemã, lituana, eslava e até russa, representando, desse modo, esse passado heterogêneo do qual o sionismo intentava se distanciar.
É importante ressaltar aqui que o principal momento desse confronto linguístico no yishuv se deu durante a segunda aliyá[6], e que o evento histórico da Shoá serviu, mais uma vez, como confirmação da negação do exílio, ligando o dialeto ashkenazita à impotência diante do massacre.
Esse conflito linguístico, dentro dos parâmetros sionistas no que concerne o novo judeu, o Sabra, pode ser lido como mesmo uma questão de polaridades sexuais em tensão. O gráfico que temos, então, toma o hebraico como uma língua forte, masculina, e o iídiche, como frágil, feminino.
Ben-Yehuda, mentor hebraísta na Palestina, tinha uma concepção de cunho extremamente radical em relação ao iídiche, uma negação e uma repulsa dignas de um Sabra, que buscava criar as bases para um novo judeu, mais forte. Vendo o dialeto ashkenazita como “leve, fraco, sem a força especial que as consoantes enfáticas dão à palavra”[7], Ben-Yehuda afirma seu caráter feminino.
De fato, o iídiche tem, sim, toda uma formação e um caráter histórico ligado às mulheres judias, desde a educação dada às meninas, com um conteúdo calcado no folclore e na poesia iídiche, até o próprio contexto de seu teatro, no qual as mulheres judias ashkenazitas alcançaram uma maior representividade artística, tomando papéis que antes eram exclusivos dos homens, como no caso do shmendrick[8].
Porém, como lembra Naomi Seidman[9]em um ensaio sobre o conflito linguístico, a ideologia sionista ia além dessa ligação mesmo cultural do dialeto ashkenazita e pressupunha uma verdadeira reorganização nas estruturas sociais, que deviam ser mais masculinas. Basta lembrar do Muskeljudentum de Max Nordau, tipificado no judeu com músculos, idealizando e assumindo o mito heróico de uma nação e de um coletivo.
Desse modo, fica claro notar como o iídiche, que já vinha sendo derrotado no yishuv desde a segunda aliyá e que foi praticamente exterminado com o regime nacional-socialista, serviu como um argumento extra e uma refutação por parte dos sionistas: o hibridismo lingüístico de conotação feminina não poderia ser aceito naquela nova sociedade que se pretendia formar, naquela nova proposta de judeidade.
Shoá e sionismo
Tratar do tema da Shoá e, especialmente, de sua relação com o cenário e a ideologia sionistas, aí incluída a sua recepção nesse contexto, sempre é arriscado, dadas as múltiplas leituras que são feitas desse período e dessa tensa relação, havendo a necessidade de um certo crivo crítico e acurado antes de considerar todo o material existente, tanto do lado sionista como da posição mais contemporânea pós-sionista.
São muitas as questões, muitos os conflitos, muitos os argumentos que partem e vão de e a todas as direções. Neste artigo, pretendi somente analisar como o sionismo agiu e reagiu frente à emergência do extermínio nazista, como o pós-sionismo vê esse passado, finalmente, ilustrar a questão com um breve comentário sobre o conflito linguístico e como a catástrofe judaica ajudou a enterrar ainda mais o dialeto ashkenazita, apenas para mostrar como esse tema é amplo e pode ser trabalhado a partir de vários focos e de vários agentes catalisadores.
O que parece ficar claro é que, sim, o sionismo utilizou um evento histórico, em que milhões de judeus foram cruel e friamente assassinados, para chegar, tanto de modo indireto como direto, a seus fins, no caso específico, o da criação do Estado judeu na Palestina. Se as lideranças sionistas e do yishuv foram omissas ou não, fica difícil afirmar, por mais que a abordagem pós-sionista leia dessa maneira.
Fato é que o genocídio levado a cabo pelos nazistas foi de tal modo sistemático e tão bem organizado dentro de sua lógica interna que a resistência, fosse ela sionista ou não, embora brava, seria insuficiente. Gloriosa, porém impotente. A codificação do horror permitiu, de certo modo, o acesso à barbárie sem que nenhuma pessoa, organização ou nação pudesse decodificá-la e, mesmo que podendo, resistir vencendo.
Visualizar os sionistas e suas lideranças aos moldes do vilão ou da displicência seria conceber uma judiaria displicente e fria até mesmo para com os próprios parentes, o que definitivamente, não foi o caso. Sim, o interesse sionista era criar um estado judeu na Palestina e isso era questão de honra, mas dificilmente não se pensava no drama vivido na Europa naqueles anos.
A questão da rejeição do passado igualmente não pode ser lida como uma rejeição e um desprezo pelos judeus sobreviventes e mesmo os mortos da Shoá. Ali sim havia uma ideologia da formação de uma nova judeidade que buscava um distanciamento do passado traumático, o que não quer dizer, um desprezo total pelas vítimas do tormento nazista.
Como em todo grupo político, interesses permeavam a questão da judiaria vitimada. Porém elevar esses interesses à décima potência e criar uma imagem vilã de um sionismo bruto, vil e preocupado tão somente com o mito do Sabra é, no mínimo, caminhar na direção contrária ao contexto e aos fatos históricos.
Ah, em tempo: Natalie Portman continua sendo minha musa eterna. Ela pode falar o que quiser. Ela pode.
Bibliografia
Beit-Zvi, Shabtai. Sionismo Pós-Uganda na Crise da Shoá(tradução nossa do hebraico). Tel Aviv: Bronfman, 1977.
Evron, Boaz. Jewish State or Israeli Nation. Bloomington: Indiana University Press, 1995.
Jabotinsky, Zev. O Mundo de Jabotinsky(tradução nossa do hebraico). Tel Aviv: Merkaz, 1972.
Seidman, Naomi. “Lawless Attachments, One-Night Stands: The Sexual Politics of the Hebrew-Yiddish Language War” IN Jews and other Differences(org Boyarin, Daniel & Jonathan). Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
Silberstein, Lawrence J. The Postzionism Debates: Knowledge and Power in Israeli Culture. New York: Routledge, 1999.
Zerubavel, Yael. Recovered Roots: Collective Memory and the Making of Israeli National Tradition. Chicago: University of Chicago Press, 1995.
[1]Yishuv: palavra hebraica que representa a comunidade judaica antes da criação do Estado na Palestina.
[2]Sexto e sétimo parágrafos da Declaração de Independência.
[3]Evron, Boaz. Jewish State or Israeli Nation. Bloomington: Indiana University Press, 1995. p. 155
[4]Beit-Zvi, Shabtai. Sionismo Pós-Uganda na Crise da Shoá(tradução nossa do hebraico). Tel Aviv: Bronfman, 1977.
[5]Zerubavel, Yael. Recovered Roots: Collective Memory and the Making of Israeli National Tradition. Chicago: University of Chicago Press, 1995.
[6]Aliyá: leva de imigração judaica para Israel antes do estabelecimento do Estado. Tem origem no termo usado nas sinagogas quando um homem é honrado ao ser chamado para a leitura da Torá.
[7]Jabotinsky, Zev. O Mundo de Jabotinsky(tradução nossa do hebraico). Tel Aviv: Merkaz, 1972. p. 205
[8]Shmendrick: papel de trapalhão e inapto, como o shlemiel, no teatro iídiche.
[9]Seidman, Naomi. “Lawless Attachments, One-Night Stands: The Sexual Politics of the Hebrew-Yiddish Language War” IN Jews and other Differences(org Boyarin, Daniel & Jonathan). Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.