Sobre a violência e a nova repressão

Desde que os pensadores investigam a natureza humana, uma das linhas constantes de pesquisa foi a comparação de nossa condição com a dos animais.
Cinturões contra o onanismo, vendidos na época de Freud em vários formatos, tamanhos e materiais

por Felipe Pimentel

Desde que os pensadores investigam a natureza humana, uma das linhas constantes de pesquisa foi a comparação de nossa condição com a dos animais. Mesmo antes de Darwin destronar a majestade do homem no reino dos animais, muitas semelhanças eram apontadas nos comportamentos de ambos, especialmente a percepção óbvia de que também habitam no homem instintos “selvagens”: não somente as sensações e necessidades fisiológicas, como a fome e o frio, mas também a agressividade e o sexo, ou, para falar em outros termos, a violência e o desejo. A maioria dos autores percebeu que, deixados à mercê dos seus instintos, os homens não conviveriam em paz (nem o otimismo de Rousseau deixou de perceber que a escassez dos recursos fazia aflorar a competição e a acumulação, e não a cooperação e a partilha na sociedade). Porém, pelas mais diferentes hipóteses, os filósofos também perceberam que os homens possuíam algo a mais em relação aos animais, a saber, ferramentas psicológicas que inibiam esses instintos e permitiam uma mínima convivência pacífica, isto é, mecanismos que permitiam a civilização. Freud, que era um hobbesiano, compartilhava dessa noção, e elaborou uma das mais complexas teorias sobre esses instintos e tais mecanismos civilizatórios.

Freud avançou da mera concepção de que nossa mente seria habitada por instintos reprimidos por valores morais (no famoso embate id superego), pois também percebeu que (a) os valores da cultura organizavam os instintos (permitindo-lhes ter livre curso sob determinadas circunstâncias e lhes proibindo em outras); e (b) essa repressão sobre os instintos enclausurava a libido, forçando-a a retornar através de sintomas, atos e outras manifestações. Quer dizer, a libido sexual reprimida retornava como sintoma psíquico (transtornos, conversões, inibições) ou mais em surdina como ação (práticas de perversão diversas, por exemplo).

Contudo, atentemos às peculiaridades da época de Freud e às transformações todas que passamos nos últimos tempos: não declinaram as repressões morais? Não estamos mais livres de interdições? Mas isso nos fez ceder aos instintos? Vivemos em anarquia? Somos… selvagens?

A época de Freud padecia de interdições morais severas, especialmente no âmbito da sexualidade: monogamia, celibato, patriarcalismo, proibição do divórcio. Não à toa, suas primeiras descobertas, que se deram com os sintomas histéricos, Freud imputou à repressão dos instintos sexuais, deixando sua teoria com uma ênfase tamanha na sexualidade que lhe caiu a acusação de pansexualismo teórico. Os tempos mudaram, e a sexualidade aparentemente se libertou: estamos livres da repressão? Caminhamos rumo à autonomia plena?

Não que Freud não tenha tematizado a agressividade, como o fez na sua célebre troca de cartas com Einstein, intitulada Por que a guerra?, porém ela terminou em segundo plano nas suas formulações. Sua época estava afundada em violência: não só os conflitos privados eram envoltos em violência, sendo comum homens portarem armas e as pessoas defenderem a entrada de seus países em guerras e a ida de seus filhos para as zonas de combate. Além disso, Freud também passou pelos grandes eventos de violência, como a Primeira Guerra, as guerras intestinas da Europa e pelo início do ataque nazista contra os judeus, que lhe forçou a fugir da Áustria e se instalar na Inglaterra, tendo falecido no mês de eclosão da Segunda Guerra Mundial a tempo de assistir a devastadora blitzkrieg hitlerista contra a Polônia.

O tempo de Freud expunha a violência e reprimia o sexo. Não invertemos as coisas?

Minha hipótese, frágil como tantas outras generalistas, é que por razões várias, do tempo de Freud para cá, passamos a execrar a violência e a reprimi-la: os homens não andam mais armados, todo ato agressivo é repudiado, nenhuma morte é comemorada e o pacifismo é a pedra de toque do senso comum. Por outro lado, a sexualidade, de modo intenso a partir da revolução de costumes dos anos 1960, atingiu grau radicais de libertação, renovada diariamente com as possibilidades múltiplas de exercício da sexualidade – sexualidade essa que é diariamente exposta dos mais diversos modos possíveis. Tanto melhor para o exercício da sexualidade, claramente mais múltiplo, mas não necessariamente mais desejante; mas fica a pergunta: para onde vão nossos instintos agressivos? Teriam sido sublimados e extirpados de nossa constituição? À primeira vista, rechaçamos toda forma de violência, admiramos políticos, países e instituições pacifistas, repudiamos exercícios de autoritarismo e virilidade arcaica, apostamos nos acordos multilaterais de paz, rechaçamos as armas, as palmadas e até mesmo as formas mais sutis de comunicação violenta. Teria o pacifismo vencido nossa disponibilidade à violência, permitindo-nos descansar? Não assistimos mais violência no cotidiano? Enfim, vivemos em paz?

Não parece.

A violência na contemporaneidade é, do ponto de vista psicanalítico, a sexualidade da época de Freud: o tema para o qual devemos voltar a nossa atenção, pois é sobre ela que tem agido a repressão e, como ocorreu com a repressão sexual da era vitoriana freudiana, é ela que retornará (e tem retornado visivelmente) como sintoma e ato.

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