Somos reféns de nossa liberdade

Fanáticos da liberdade e da dissolução de tradições, passamos de eufóricos indivíduos libertados das regras alheias para desesperados narcisistas em busca de singularidade
“Le Désespéré” de Gustave Courbet

por Felipe Pimentel

O homem é sempre o mesmo: amor, amizade, família; instintos, valores e religião; emoções, interdições e crimes; dinheiro, poder e guerra; palavras, escrita e arte; vida, saúde e morte. As vestes que cobrem este esqueleto variam com o tempo e espaço – é o que faz a beleza das culturas. E é na beleza da cultura em que vivemos que podemos nos realizar.

A nossa época, contudo, é curiosa. Desde fins dos setecentos, alçamos à divindade a ideia de que somos indivíduos livres. Primeiro, fizemos isso muito bem-intencionados, para dissolver os valores cristalizados em tradições, que, ainda que nos oferecessem algum abrigo com suas certezas, limitavam nossa esfera de ação. Em segundo lugar, para ampliar nossa individualidade, acachapada pela ideia de que a comunidade é superior ao indivíduo. Depois, por descuido ou vício, fizemos da liberdade (e também da individualidade) um fetiche, e conseguimos, paradoxalmente, fazer dela uma regra. Quer dizer, ser livre e quebrar tradições tornou-se obrigatório, e todo modelo social passou a ameaçar nossas escolhas como indivíduos.

Os tempos avançaram e a tendência se intensificou. O século XX assistiu às mais distintas lutas de libertação, erigiu os mais distintos altares para os indivíduos, travestiu em autoritarismo qualquer tipo de autoridade, promoveu o declínio das figuras patriarcais, afastou as tentativas de comunitarismo e estimulou o conflito de gerações. Por um lado, tudo isso é ótimo, podemos criar, experimentar e sonhar; por outro, devemos reconhecer que a liberdade também cobra seu preço.

As tradições são ideias compartilhadas, um modo de pertencimento e laço social. Mas, mais ainda, algumas áreas da vida só existem porque compartilhadas com a cultura na qual vivemos. Porém, progressivamente começamos a tomar tudo advindo do social como uma concepção pré-pronta que atenta à minha liberdade e individualidade. Tudo aquilo que me adequa a um modelo prêt-a-porter dissolve a individualidade que aspiro. Para atingi-la, preciso romper com todos os modelos vigentes – ficamos viciados na individualidade e escravizados ao olhar alheio: para ser “eu mesmo”, mergulho em todos os ditames sociais para depois rechaçá-los e criar algo novo absolutamente singular.

Contudo, preciso manter-me próximo da sociedade o tempo inteiro, pois é somente no diálogo e na comparação com o comum que eu posso ser diferente. Fanáticos da liberdade e da dissolução de tradições, passamos de eufóricos indivíduos libertados das regras alheias para desesperados narcisistas em busca de singularidade. Nosso desprezo pelas tradições transformou-se em repúdio por áreas inteiras da vida que poderiam nos trazer realizações, pois tudo aquilo que é compartilhado fere o princípio da individualidade livre e singular.  Primeiro matamos a religião e depois dissolvemos a família; depois, esquecemos da cultura e fragilizamos o amor. No lugar destas possíveis realizações, postamos, olímpica, a individualidade autêntica, angustiada em fazer algo novo quando tudo já foi feito, escravizada pelo reconhecimento do olhar que anseia repudiar.

No capitalismo que dissolve o que quer que haja de sagrado, que incorpora em suas mercadorias não só a moralidade, mas até mesmo aquilo que lhe faz oposição; na era da técnica uniformizante de pessoas e cidades, que leva ao limite a heterogeneidade de objetos e indivíduos para, numa entropia, tudo homogeneizar, terminamos solitários e desamparados, num laço social de fingido reconhecimento mútuo – esvaziados de sentido e repletos de ansiosa autenticidade.

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